Há muitos muitos anos vi um filme na televisão, uma obra tão esdrúxula e esquisita que pensei que a sonhara. Começo mal o texto, com um pedaço de “prosa poética” que porá logo alguém de pé atrás (e tentarei tratar desse pé nestas linhas). Começo também como quem conta uma história, uma história pessoal, e esta “crítica” é capaz de ter mais a ver comigo do que com o filme que tento agora recuperar. Para mim e para os leitores.
Hoje difícil de encontrar (há apenas uma edição de DVD americana, encaixotada com outros filmes de Gary Cooper), Peter Ibbetson (Sonho Eterno, 1935) foi à época objecto do “amor louco” dos surrealistas (pegando numa das noções basilares do movimento) e não só. Repare-se como a tradução portuguesa do prosaico título original, correspondente ao nome do protagonista, dá largas a um romantismo desbragado. E foi assim um pouco por toda a Europa: em Espanha, por exemplo, chamou-se Sueño de Amor. De algum modo, o filme de Henry Hathaway (conhecido pelos westerns finais de John Wayne) é menos americano do que europeu. Contudo, não se enquadra facilmente no onirismo germânico que os exilados do nazismo trouxeram para a Hollywood dos anos 30 e 40. Peter Ibbetson é um corpo estranhíssimo na cinematografia americana (no cinema, pode escrever-se): uma obra totalmente rendida ao Amor (assim com maiúscula, absoluto e literalmente eterno), um dos filmes mais Românticos (também com letra grande) de sempre.
Passe-se a trama a correr: duas crianças muito apaixonadas são separadas e muito tempo depois, já adultas, re-apaixonam-se sem saberem que uma é a outra. Quando descobrem, prometem nunca mais separar-se. Só que há um marido ciumento à mistura e Peter Ibbetson (Gary Cooper de bigodinho e sofrível sotaque britânico) é acusado injustamente de o matar. Leva prisão perpétua. E ainda lhe partem as costas. Está pronto para morrer. É então que Mary, a amada, lhe diz que podem encontrar-se nos sonhos, viver lá para sempre.
Antes de tudo acontecer (antes do reencontro), o patrão de Peter, um arquitecto cego (um arquitecto cego?), diz-lhe que a visão interior é mais importante do que a outra, pois permite vislumbrar coisas só imagináveis. Quando Peter lhe responde que não acredita nessas crendices, o arquitecto compreende-o, riposta que ele, Peter, nunca precisou de preencher esse vazio. Há-de precisar. E ainda assim não acredita (de alguma maneira, os amantes perderam-se para a vida terrena por nunca terem acreditado). E é necessário um anel que provar a realidade do sonho. A partir daí, e diz-se que a sequência onírica é mais de Charles Lang, o director de fotografia, do que de Hathaway, vale tudo: Peter e Mary passeiam-se pelo jardim da infância, brincam as mesmas brincadeiras de outrora (a carroça), sobem a um monte onde Peter construiu um palácio feito de nuvens, que se desmancha numa terrível tempestade que os separa momentaneamente (a tempestade é a dúvida, o medo). Quando se reencontram no jardim, crentes nessa felicidade, decidem que viverão até morrerem nessa terra dos sonhos. Grande elipse, muitos anos passam, e eles, envelhecidos, mantêm o encontro nocturno, ainda se vêem jovens. Quando Mary morre, Peter segue-a de pronto. Desta vez, para se reencontrarem no Céu.
Seria impossível fazer um filme assim hoje em dia. Não porque faltem meios técnicos para recriar as sequências de sonho (embora fosse de temer o abuso de CGI em vez do feliz aproveitamento de cenários naturais) mas, sim, porque os olhos estão poluídos de todas as tretas do pós-modernismo, cansados pela inteligência dos que analisam tudo e a esperteza dos que apontam o dedo a qualquer coisa que fuja da norma, e no lugar da beleza vêem ou manifestações de um ideário manipulador ou então kitsch puro (este vídeo é exemplificativo). Seria impossível fazer um filme assim hoje em dia, porque ninguém se arriscaria ao ridículo, com medo de se expor ao riso do público, ao riso dos pares (repesco ideias que deixei aqui).
E aqui entro eu. Mais do que do filme, cujos contornos se foram esfumando, um pouco como se esquecem os sonhos ao acordar, nunca esqueci a sensação que me provocou. Ao revê-lo, já não o vi. O encantamento quebrou-se. Os meus olhos não são os mesmos, poluídos como os outros; vêem só defeitos (não me lembrava quanto o filme era palavroso), irritam-se com o excesso (ou pedem mais excesso, como drogados aos quais esta dose não chega), querem o sossego da convenção realista (que trata o amor como assunto corriqueiro). Pode ser que a ideia do filme seja melhor do que o filme propriamente dito, pode ser que Hathaway fosse demasiadamente trôpego para voos destes, pode ser… pode ser… Mas não consigo deixar de me culpar. Peter Ibbetson é para quem ainda tem os olhos limpos. Para quem ainda tem fé em tempo de dúvidas.