O novo filme da série James Bond marca os 50 anos da série e ocupa a 23.ª posição na lista cronológica. Desde Dr. No (007 – Agente Secreto, 1962) até agora vários foram os que deram corpo ao agora mítico agente de Ian Fleming. Independentemente dos actores e dos seus filmes, pareceu a todos os que acompanham a série que Daniel Craig tinha sido uma total inversão. O habilidoso e engenhoso agente, de sedutor e irreverente virou homem das obras, gorila de tripa forra. Toda a personagem pareceu ser implodida. E pareceu bem, Casino Royale (007 – Casino Royale, 2006) foi um sucesso (de público e crítico). Pois bem, a produtora Barbara Broccoli, vistos os resultados (críticos e de público) de Quantum of Solace (007 – Quantum of Solace, 2008) achou por bem carregar no botão do reboot e começar tudo de novo. Correndo o risco do insulto temos aqui o primeiro episódio, 007 Begins e a seguir virá o 007 Rises.
Skyfall (007 – Skyfall, 2012) vive sobre esse jugo terrível que é a saga do senhor Nolan. Desde do sucesso de The Dark Knight (O Cavaleiro das Trevas, 2008) que tudo o que é filme de acção parece estar desejoso de mimetizar o herói negro e acabado que vive entre as malhas da lei e da moral. Tudo tem que ser muito escurinho e Sam Mendes cumpre a missão: James Bond aparece-nos acabado, embriagado, com a barba por fazer. Chumba os testes de aptidão física e mostra-se em fim de carreira. Claro, quanto mais fundo se desce, maior parece a subida. Toda este encenação da queda é feita com enquadramentos onde Craig surge em contraluz, como uma sombra ambulante. A fotografia de Roger Deakins ajuda (e muito) a empresa, e de facto o homem do requinte vira aqui homem perturbado, pelo trauma infantil e pelo esquecimento geral. Aliás, tudo se concentra tão fortemente no homem que não há espaço para mulheres, entenda-se, não há espaço para Bond Girls. Anda por lá uma menina bonita, mas para além de acessório decorativo serve para pouco mais que depósito de fluidos seminais.
Mas é aqui que a coisa se desmancha (não muito, mas o suficiente para se notar): toda a série é um roteiro de locais luxuoso: são os apartamentos e os hotéis e os casinos, mas são também as farpelas e todos os décors. Como pode sobreviver um homem acabado no meio de tanto decorativismo? Citando João Rui Guerra da Mata na entrevista que deu aqui ao estaminé:” A direcção de arte é um complemento narrativo e é por isso que eu detesto o Wong Kar-wai: estou a ver um filme dele e, em vez de estar a olhar para o sofrimento do actor, estou a pensar onde é que o gajo arranjou aquela gravata.” Pois bem, tenho a dizer que o senhor Bond usa a certa altura um fato com uma barra de cetim na lapela que me desviou a atenção durante toda a cena.
Mas um realizador que filma Revolutionary Road (2008) não pode ser tão incapaz. E a verdade é que não é. Há neste filme um desejo de classicismo que vem do próprio Sam Mendes, que sempre se banhou nessas águas, e de John Logan [argumentista de Rango (2011), The Aviator (O Aviador, 2004), The Last Samurai (O Último Samurai, 2003) e Gladiator (Gladiador, 2000)] que vem escrevendo as mais clássicas histórias que a máquina de Hollywood vem produzindo.
Vista a correspondência entre as imagens acima, perguntar-se-á o leitor: então o classicismo é tanto que se justifica ir buscar o Johnny Guitar (1954)? Ou será isso apenas heresia? Se a heresia é uma coisa que me apraz sobremaneira, tenho que admitir que aqui a correspondência se justifica, e muito. Johnny Guitar é um filme sobre duas mulheres que disputam um homem, e nessa disputa desenvolvem uma relação homo-erótica que chega ao inesquecível confronto final. Pois bem, a estrutura de Skyfall é a mesma, onde os géneros estão trocados. Dois homens, Craig e o vilão (Javier Bardem), competem pela atenção de uma mulher, M (Judi Dench). Talvez nunca antes M tenha sido o acrónimo de Mom, mas é-o aqui. Quer o herói, quer o vilão são filhos de M (entenda-se isto no parentesco próprio das agências de serviços secretos), o segundo naturalmente proscrito e portanto desejoso de vingança. Cada um dos homem disputa a atenção da progenitora e nessa batalha seduzem-se. A homossexualidade da personagem de Bardem é manifesta e isso revela algo que só promove a desenvoltura dos personagens; incapaz de amar a mãe, este odeia-a e portanto odeia-se também. Talvez valha a pena lembrar um outro filme psicanalítico do senhor que dá nome a esta casa, Pursued (Núpcias Trágicas, 1947) de Raoul Walsh (o mais atípico dos Walshs), nesse Robert Mitchum, perturbado por um evento da sua infância via-se obrigado a regressar à casa onde crescera, para lá se purgar dos horrores da perturbação.
Skyfall é igualmente um regresso à casa da partida, à casa onde o menino Bond viu os pais morrerem e, escondido no túnel subterrâneo, virou senhor Bond. Nesse local de trauma é que tudo se desenrola, é lá que a batalha final tem lugar. Um regresso à origens (em todos os sentidos). Não há engenhocas neste filme, há o regresso dos carros clássicos e há um gosto pelo analógico (de notar que o vilão é um ciber-mercenário); espingardas de canos cerrados e punhais são as armas de preferência. Tudo termina num incêndio, a casa da infância reduzida a cinzas, para que delas se possa erguer a fénix, renovada. Mas como em Johnny Guitar a casa que arde é o fim de um sonho, aqui parece-me que também o sonho morre, o meu: crescendo a adorar 007 vejo agora “à luz eléctrica do criticismo moderno” um personagem que já não me encanta, que já não me faz sonhar.
Nota: a cena de perseguição no metro é uma clara referência à de Le Samouraï (O Ofício de Matar, 1967) de Jean-Pierre Melville, o que revela que Sam Mendes não é, de facto, um simples tarefeiro.