A depuração de Traveling Light (2011), filme realizado por Gina Telaroli, parece anunciar como é nas formas da simplicidade que se responder ao presente – coinstruir um manifesto discreto contra a saturação de sons e ritmos artificiais no cinema contemporâneo.
“The face is the index of the mind.”
William Hoghart, citado por Martin Kemp, in The Human Animal in Western Art and Science, p.62.
“O close-up objectificou, no nosso mundo de percepção, o nosso acto mental de atenção, assim recheando a arte de um meio que transcende largamente o poder de qualquer encenação teatral.” Hugo Munsterberg, in The Photoplay: A Psychological Study (1916)
“Os bons close-ups são líricos; foi o coração, e não o olho que os captou.” Béla Balázs, in Teoria do Filme
“O close-up não arranca o seu objecto do cenário de que faz parte, (…) pelo contrário, torna-o abstracto em relação às suas coordenadas espácio-temporais, o que significa que o faz evoluir até ao estádio de Entidade”. Gilles Deleuze (Cinema 1: Imagem-Movimento)
Entramos num comboio e preparamo-nos para uma viagem que atravessa o solo americano – de Nova Iorque a Pittsburgh. Esta viagem é uma evasão através do espaço, mas também através das variações da luminosidade, através do clima. A viagem faz oscilar as luzes e as cores, atravessa o dia até à noite.
Os actores estão lá mas a sua presença foi suplantada pela narrativa da luz: à medida do avanço da locomotiva, a luz que entra recorta-lhes os rostos e transforma-os em sequências de novas feições em re-desenho constante. As mínimas actividades amplificam-se; perante a inércia a que o corpo está destinado, os olhos são o centro da acção da fisionomia.
De repente, o comboio parece tornar-se um grande dispositivo de visibilidade em travessia – os olhos dos que observam a janela são os olhos do espectador de cinema, sentado na sala escura entre uma plateia de desconhecidos, com quem partilha o espectáculo que corre diante de todos os olhos. Em Traveling Light, estudamos rostos em contemplação uníssona, a lembrar a Nana de Vivre sa vie (Viver a Sua Vida, 1962) a emocionar-se enquanto vê um filme de Dreyer e a provar que o cinema também foi inventado para o rosto humano.
Mas aqui é a paisagem o primeiro espectáculo: lá fora as naturezas acontecem, lá fora a cidade corre. E nesta panorâmica, às vezes tudo corre tanto que todas as formas e coordenadas se perdem: estamos perante linhas em fuga e manchas de cor, unidades de constituição de uma imagem em movimento. A recordar que o cinema, como uma longa viagem, é também uma travessia através da luz.
Sempre tive esta alucinação em que os comboios encaixados sobre os carris que se sucedem e cruzam a paisagem se parecem com fitas de filme que encaixam as suas perfurações na mesa de montagem ou no projector. Que – como já estava inscrito no primeiro filme do mundo, o L’arrivée d’un train à la Ciotat (A Chegada de um Comboio, 1896) – qualquer filme não passa de uma locomotiva que atravessa uma sala escura durante uma momento de duração variável, carregando um outro tempo que se evade da linha do presente, levando o espectador numa viagem ao passado a cada visionamento…
Um filme construído entre omissões e revelações, Traveling Light é, acima de tudo, um ensaio sobre as várias modelações da proximidade e da distância. Vemos quem vê e o que é visto. Percebemos as oscilações entre o passageiro-espectador e as imagens em fuga nas janelas. Observamos as particularidades desses com quem partilhamos a mesma viagem e a mesma paisagem – como numa viagem de comboio, a proximidade física àquelas pessoas parece contradizer o facto de serem desconhecidos. Uma dualidade a que Telaroli sabe dar uma forma, na concentração da sua câmara-olho que descreve o detalhe. Ainda assim, falta-nos praticamente tudo o que se particularizaria pela narrativa: os nomes e histórias atrás de cada rosto, a motivação individual que incitou àquela viagem, o destino que cada qual prevê à chegada…
“The whole point about cinema, surely, is the close-up of the human face. Huge images such as the Sphinx, Mount Rushmore and the colossal statues in Greece and Rome established the sense of wonder to be had in gazing at magnified physiognomy, but until the movies, such depictions were rare.” Mark Cousins, in “Widescreen”
Esperar sentado num comboio é, afinal, um estado partilhado de suspensão – cada qual aguarda que se cumpra o seu projecto de chegar. E é nessa suspensão que o olhar da afeição se liberta – a sinceridade curiosa de quem quer conhecer o outro, todos os outros. Uma carruagem transforma-se num mundo concreto, disponível a ser visto e ouvido. Durante um momento pode atingir-se realmente um estado de contemplação.
Um gesto de pacificação do olhar contra a superabundância do mundo material, onde cada dia equivale hoje a um encontro massivo e supérfluo com todo o tipo de imagens e sons. Porque não há fuga para esta vastidão, a dúvida deve atravessar qualquer impulso criador. Assim, a jovem realizadora nova-iorquina reconhecerá constantemente as tendências desmobilizantes deste clima de saturação: “É esmagadora a quantidade do que está cá fora e, por estes dias, até tenho dificuldades em ter ideias para novos filmes. Não consigo evitar questionar-me: será que precisamos realmente de novas imagens e sons? Eu suspeito que já tenhamos que chegue…”
Procurando analisar este excesso nas formas, Telaroli evoca uma consideração que ouviu a Robert Zemeckis acerca do estatuto actual do produtor, explicando como as “pessoas que tomam todas as decisões sobre os filmes já não os vêm entre uma multidão, mas antes sós, nas suas próprias condições de visionamento, ocorrendo uma desconexão acerca do que é realmente apelativo.” Assume que esta tende a ser uma condição dos próprios realizadores que, “vendo também filmes sozinhos, por sua vez sentem a necessidade de preencher o vazio com o máximo possível. Como se apanhássemos boleia com uma pessoa que tenta preencher cada segundo da viagem com conversa em vez de apreciar somente o silêncio.”
A resposta activa, reflexiva, às imagens que já existem complementa-se com o seu trabalho de divulgação de cinema, de análise, video-ensaio e crítica, e em estudos onde uma consequente justaposição das imagens do cinema procura novos significados. Se, em todas as direcções, concepções de realidade aumentada ou expandida nos demonstram como à informação dos sentidos não cessam de se adicionar mais camadas, qualquer procura por um minimalismo das formas refresca-nos a percepção, e argumenta como as imagens e os sons devem ser compreendidos e não consumidos. Os olhos e ouvidos treinados no sobrestímulo regeneram-se, para melhor ver e melhor ouvir. Para encontrar vestígios de real. Assim, é exactamente na sua falta às convenções formais que Traveling Light é mais do que actual e – para lá das dúvidas da sua autora – necessário.
Faltam filmes assim.
(Este texto foi em parte possível devido à entrevista exclusiva que Gina Telaroli deu À Pala de Walsh.)