Por muitos laivos de comentário social que tenha — os muçulmanos, os independentistas corsos, a vida nas prisões —, Un prophète (Um Profeta, 2009) é, muito mais do que um marco do realismo social francês, um magnífico filme de gangsters. Que remonta a todas as obras do género mas sobretudo ao primeiro tomo da trilogia de Francis Ford Coppola: The Godfather (O Padrinho, 1972).
Como na obra-prima americana, o protagonista é um criminoso relutante. Malik é um arruaceiro que bateu nuns polícias e é condenado a seis anos de prisão, muito novinho, muito inexperiente, muito vulnerável. Nem tem como Michael Corleone a frieza no olhar, a obstinação — não esquecer que quando Michael aparece no filme, de farda no casamento da irmã, já matou, mesmo que só na guerra. Malik, não, muçulmano não praticante (desenraizado), sem família, encontra-se na prisão, sem aliados, sem protectores, sem saber ler nem escrever (literalmente), exposto a todos os predadores.
Como na obra-prima americana, o protagonista é obrigado a matar alguém. Michael para salvar o pai. Malik para salvar a pele. A máfia corsa precisa de eliminar uma testemunha e encontra no jovem árabe o assassino perfeito, pois ninguém os poderá ligar. Para mais, a (futura) vítima parece ter engraçado com ele. A punição caso não aceite a proposta é a própria morte. Como diria o outro, é uma proposta que ele não pode recusar e, apesar de tudo fazer para fugir à situação, acaba por cumprir o que lhe é pedido. Ganha a confiança dos corsos, para os quais passa a trabalhar (mesmo que não o respeitem). Ganha a “amizade” do fantasma de Reyeb, a vítima, que lhe faz companhia e dá conselhos [sempre com a goela aberta, como Griffin Dunne em An American Werewolf in London (Um Lobisomem em Londres, 1981)]. E, ao matar, passa uma fronteira para um território sem volta (começa a formar-se a ideia da prisão como escola do crime).
Como na obra-prima americana, o protagonista é um discreto jogador de xadrez que antecipa as jogadas do seus adversários. Ninguém dá muito por Michael, ninguém dá muito por Malik. De Michael, duvidam que ele tivesse a força e a inteligência do pai. De Malik, nem sequer lhes ocorreria que pudesse ser mais do que rapaz submisso, que varre o chão e faz recados. Só que ele é bom ouvinte (tanto que aprende a falar corso) e bom observador. Aproveitando-se da sua discrição, vai montando o seu negócio à parte, enquanto se torna cada vez mais indispensável para o chefe. Aos poucos, controla quase tudo.
Como na obra-prima americana, o protagonista livra-se dos seus inimigos quando não está presente. Michael encena a sua vingança contra todos os que se lhe opuseram durante o baptizado do sobrinho (naquela sequência operática, que Coppola haveria de levar demasiadamente à letra no terceiro capítulo da saga), Malik enquanto está preso em solitária durante 40 dias e 40 noites. É o profeta, que prevê o futuro (como na cena do veado). É o profeta, que não precisa de olhar, nem de se mexer, para ver o seu poder tornar-se absoluto, inquestionável.
Como na obra-prima americana, o protagonista apresenta-se no final como dono e senhor da situação. Em vez do beija-mão a Michael e a porta a fechar-se a Kay, Malik encosta-se a umas grades a fumar um cigarro rodeado pela irmandade islâmica que o protege, observando a humilhação do seu antigo chefe (com a tal frieza no olhar). Depois, irá sair da prisão para os braços da viúva do seu amigo, seguido por um autêntico exército.
Ao contrário da obra-prima americana, e de muitas fitas do género — The Roaring Twenties (Heróis Esquecidos, 1939), Goodfellas (Tudo Bons rapazes, 1989), os dois Scarface (o de 1932 e o de 1982) — falta-lhe a segunda parte da tragédia: a queda do protagonista. Un prophète não tem sequelas e Malik não sofre as sequelas (consequências) das suas acções. Ou se as terá, estas ficam em off, ainda que o espectador as possa antecipar. Algum dia aparecerá alguém mais esperto do que ele que tomará o seu lugar. É sempre assim.
Ao contrário da obra-prima americana, é filmado com câmara à mão, nervosa, a seguir os personagens ou partes das personagens (as mãos). Jacques Audiard nega, portanto, o classicismo de Coppola e o chiaroscuro de Gordon Willis, substituindo-os por um certeiro desenfreamento, que se ajusta ao magnífico argumento. Passe a heresia, a interpretação de Tahar Rahim (repare-se na evolução da sua linguagem corporal, do indefeso Malik para o poderoso Malik) ombreia com a de Al Pacino (irrefutavelmente, uma das melhores interpretações de sempre). Um clássico instantâneo.