Desaparecido deste mundo na passada quarta-feira, Kôji Wakamatsu foi um dos cineastas mais prolíficos da história do Cinema. Ao todo, deixou-nos mais de 100 títulos, sendo que, por exemplo, no ano de 1969 realizou 11 filmes, entre eles, o emblemático Yuke yuke nidome no shojo (Vai, Vai Virgem pela Segunda Vez, 1969). A quantidade nunca afectou a construção da sua obra ou a formação do seu universo autoral, nem tão-pouco se tornou indissociável do mesmo, já que nos últimos anos a sua hiperactividade esmoreceu ainda que os seus filmes tenham revelado grande vitalidade cinematográfica. Em Portugal, a sua morte parece ter sido chorada antecipadamente com a estreia de dois dos seus filmes mais aclamados dos últimos anos – Kyatapirâ (O Bom Soldado, 2010) e Jitsuroku Rengo Sekigun: Asama sanso e no michi (Exército Vermelho Unido, 2007) – e o lançamento de uma especialíssima caixa de DVDs com alguns dos seus mais importantes filmes produzidos nos anos 60 e 70, quando no Japão ganhava forma um tipo de cinema (mais conhecido por pink) que fazia do erotismo a sua principal arma para a desconstrução ou mesmo dinamitação das formas clássicas. Vai, vai Wakamatsu…
Quem viu pelo menos um filme de Wakamatsu deverá ter reparado no papel ambíguo que o sexo desempenha no seu cinema: se este por vezes parece servir de “cimento relacional” ao grupo de personagens, quase de único condutor da sua “razão de ser” social e política, também noutras tantas ele conduz esse grupo, muitas vezes composto por jovens revolucionários, à autodestruição. O espectador atento também detectará uma igual relação ambígua com as personagens femininas: mesmo acabando no centro dos grupos de homens, elas polarizam-nos através do vício, do abuso e do ciúme – e mesmo que o abuso seja cometido sobre elas, raramente Wakamatsu as mostra como “simples vítimas”. O trauma infligido às mulheres parece equivaler quase sempre ao trauma que elas infligem aos homens, aliás, desde a sua vinda ao mundo, tal como enuncia um estranho filme, sobre esse primordial “horror à mãe”, chamado Taiji ga mitsuryô suru toki (O Embrião Caça em Segredo, 1966).
Não poderão então encontrar em Wakatmasu um produto acrítico do seu tempo marcado pelas ideologias de esquerda, que, ora conflituais ora pacifistas, tendiam a ver o sexo como arma ideológica de libertação e as mulheres como grandes símbolos da revolução. Pelo contrário, há no cinema deste cineasta nipónico inclusivamente um certo olhar desgastante sobre as relações da carne e pouco ou nenhum espaço para o amor. Veja-se o recentemente estreado entre nós Kyatapirâ, história de um homem mutilado nas pernas e nos braços que é considerado um herói de guerra pela comunidade mas que, na sua vida matrimonial, está reduzido à sua inevitável “meia-masculinidade”. A sua mulher vê-se sujeita – e não vítima de…, como podia se é o seu homem que ficou sem braços e pernas?! – à encenação de uma normalidade impossível – a sociedade, aliás, coloca-a nessa posição que é ingrata mas também, não podemos negar, moralmente elevada. Ela é a primeira sacrificada, antes do seu marido estropiado?, a pergunta não vingará nunca e por isso a empatia pela pobre mulher fica, também ela, incompleta, leia-se, pateticamente “sem membros”.
A misoginia de Wakamatsu não é a razão para o nosso deslumbramento, mas ela não nasce do vazio, na realidade, tal não poderia ser num cinema onde a sociedade japonesa do pós-guerra é retratada, sem qualquer tipo de concessões, em todo o seu exaspero nihilista. A revolução para quê? O amor para quê? A vida para quê? Enquanto tantas perguntas não nos conduzem a nenhuma resposta concreta, os seus filmes “entretêm-nos” com imagens da co-habitação desconfortável dos corpos, que tantas vezes se mostram aprisionados em apartamentos-gaiola que guardam “segredos” tão terríveis e tão iguais aos do vizinho. Vimos isso nitidamente em Kabe no naka no himegoto (Os Segredos Atrás das Portas, 1965) e voltamos a encontrar tudo isso no lirismo atormentado de Vai, Vai Virgem pela Segunda Vez, provavelmente, o seu filme mais popular e decerto um dos seus retratos mais impressivos da juventude japonesa, espelho perfeito de toda a sintomatologia social que contamina o cinema de Wakamatsu. Uma rapariga é violada por um grupo de jovens delinquentes no telhado de um edifício alto de Tóquio. A assistir passivo estava um rapaz, o mesmo que depois vai estabelecer uma ligação com a rapariga, cumplicidade que nasce de um trauma sexual experienciado também por ele… no mesmo edifício.
Vai, Vai Virgem pela Segunda Vez conta este suicidário boy meets girl num estilizadíssimo preto-e-branco muitas vezes interrompido pela cor (mais notavelmente, um azul sublime) que põe a nu a carne e o massacre. A cor em Wakamatsu sinaliza amiúde o trauma e o trauma é frequentemente sinalizado pelo sexo. Ele e ela tornam-se cúmplices mais que amigos, porque, como vamos percebendo, nenhum dos dois acredita na amizade, tal como nenhum dos três – e já estou aqui a incluir o realizador, Kôji Wakamatsu – acredita verdadeiramente no amor. É preciso dar um salto, “sair do filme”, para que uma relação – mais que uma cinzenta cumplicidade – se possa gerar entre os dois. A vingança acontece sem sentimento de vingança, porque isso – o “sentimento” – implicava esperança em qualquer coisa, pelo que Vai, Vai Virgem… também não é uma obra sobre um crime e o seu payback moral. Quer dizer, usando aqui uma terminologia barthesiana, dir-se-ia que o seu studium talvez se reduza a isso, mas o seu punctum reside por inteiro no último plano em que ela e ele estão juntos, estendidos na estrada, apenas separados por um traço contínuo que, numa linguagem de descodificação simbólica, diríamos que representa o tempo, “aquilo ” que o casal – e a sua “força revolucionária” terá sido essa – conseguiu romper além-vida.