O terror anda na rua, são mortos que passeiam pelas estradas, cadáveres que ganham movimento e atacam os incautos cidadãos; não são os ditos zumbis com quem se anda, é o senhor Ulrich. Mas sobre essa saga de diatribes podemos dizer que a realidade mete mais medo que os filmes de meter medo. Mas porque mete medo um filme (é engraçada a expressão, meter medo, como se fosse algo que se introduz por debaixo da pele)? Um filme é um filme, uma peça estática num ecrã, não nos pode tocar (o 3D ainda não chega a tanto). Porque raio havemos de penar com uma série de imagens e sons sincopados e termos gosto nisso? Mete medo, mas não faz mal, o espectador aguenta. Aguenta, aguenta!
Recentemente vi três filmes de terror que me fizeram pensar sobre porque motivo os filmes hão-de meter medo: Halloween (O Regresso do Mal, 1978), A Nightmare on Elm Street (Pesadelo em Elm Street, 1984) e The Silence of the Lambs (O Silêncio dos Inocentes, 1991). Independentemente dos seus defeitos e virtudes, é curioso perceber quais são os mecanismos do receio, isto é, de que forma se gera no nosso interior a primitiva emoção do medo. Em cada um destes filmes, os motivos são diferentes, e os resultados equivalentes. Carpenter fez algo tão velho como a Sé de Braga, construir o horror através do desconhecido; o vilão é um homem que não vemos (e ver é algo fundamental no cinema – trivialidade), que não conseguimos por isso encaixar numa faixa aceitável de comportamento. Não conhecer até onde irá o maníaco permite a Carpenter infectar-nos de um receio constante por não saber o que virá depois. A utilização dos planos subjectivos acompanhados da respiração do assassino é uma solução que se repete no filme de Jonathan Demme, no entanto o propósito é intimamente diferente. Para Carpenter a solução é uma forma de criar no fora de campo um mundo de possibilidades (tudo se passa nos 240º que o enquadramento não alcança), enquanto que para Demme o plano subjectivo é cume de uma luta que se vinha desenvolvendo; entenda-se, a questão de pactuar com o mal.
Na cena final de The Silence of the Lambs, vemos a nossa protagonista indefesa através do olhar homem que a vai matar, nós tomamos o corpo do assassino, tomamos parte no horror e isso é visceralmente rejeitado. Nós não queremos ser maus e portanto horroriza-nos não podermos evitar o horror (aliás, o assassino vive nessa mesma dualidade entre o querer e o fazer e a sua ambivalência sexual não é mais que uma manifestação física disso mesmo). Mas se nestes filmes o medo é algo concreto, no filme de Craven o medo é a incógnita. Quando devemos ter medo? Sabemos que o Krueger só existe nos sonhos e só lá ataca as suas presas, então quando as personagens estiverem acordadas não haverá nada a temer. O que Craven entendeu, foi que esta segurança é apenas aparente, o trabalho de construção do terror parte da constante dúvida, estamos acordados ou estamos a dormir? O medo vem de não sabermos se devemos ter medo, e por isso não estarmos preparados para o susto. Questiono-me então: virá o terror apenas da relação física entre a narrativa e o espectador? Criar-se-á o medo apenas pela provocação dos instintos básicos como o receio do desconhecido e a aversão ao mal? (RVL)
A tendência é para se responder que, na composição das narrativas de medo, a narrativa no sentido clássico não vale um chavo. Porque o medo é, em si, uma narrativa de possibilidades infindas, pelo que o fora de campo sempre foi a instituição número um no território dos (melhores) scary movies. Ou seja, a história ou o storytelling sempre disse pouco ao grande cinema de terror, da mesma maneira que a exploração dos instintos básicos – de recusa ou de atracção tentadora, sexy e letal, pelo desconhecido ou de desconfiança em relação ao “outro” e, também, por contágio, ao próprio “eu” – será porventura a fonte primordial, ontologicamente precisa, da grande narrativa do horror. Ontologia, grandes narrativas, fontes primordiais… Não se espante se ler que os primeiros espectadores de L’arrivée d’un train à la Ciotat (A Chegada de um Comboio, 1896) dos Lumière se atiraram para o chão, acometidos pelo maior dos pânicos, com a chegada do dito cujo: apenas um comboio no trilho da sua actividade corriqueira. Esta imagem “banal” meteu medo e, diria mais, se os cineastas modernos se esforçarem verão como o banal, esse monstro, pode bem ainda – ou mais do que nunca! – meter medo. De novo: reveja-se – e faça-se deles escola – os vários passeios “narrativamente” inconsequentes – de Michael Myers? Não, da câmara – de Halloween. (LM)
Se virmos o medo de um ponto de vista transversal à história da arte, há narrativas na literatura, no teatro, na pintura, que fazem aquilo que o cinema faz ainda sem intencionalidade, apenas por “virtude” do dispositivo: construir uma imagem de sugestão que quebra expectativas e põe em risco (erótico e real, sempre os dois), a sobrevivência do humano. É este o medo primordial do qual derivam todos: o medo que cesse a nossa existência. E por isso reacções epidérmicas ao terror. É que não há meio de contornar a fisicalidade do nosso fim. E o cinema percebeu cedo que, por sobre as suas narrativas do medo, os seus gestos poderiam conter elementos que espoletassem em nós essa reacção de alarme ante o perigo de morte. Mas não nos enganemos: há uma “narrativa vivencial” que o cinema explora quando por exemplo John Williams usa notas graves para a aproximação do tubarão em Jaws (O Tubarão, 1975) de Steven Spielberg. É que esses são os sons típicos de aproximação de uma ameaça na natureza (seja um furacão ou um elefante descontrolado). Ou os passeios inconsequentes da câmara de Carpenter que mimam a narrativa do quotidiano de uma invisibilidade causal, do fortuito como o momento do perigo. É por isso que a velhinha ideia de Lotte Eisner do cinema como uma espécie de “espelho negro e distorcido da realidade” parece perder força no cinema contemporâneo. O seu carácter pornográfico, a sua máxima visibilidade, não produzem muito espaço para efectuarmos a distorção. Não há espaço de invisibilidade e a seguir a uma imagem-indício (de imaginação) produz-se imediatamente uma imagem-explicação. Acaba-se o mistério, acaba-se o terror de não podermos sentir terror face a nada. O mundo sem essa perspectiva de desconhecido (o tudo presente) acaba por fazer-nos pensar numa experiência de imortalidade: talvez comece aí o verdadeiro horror. (CN)
Apesar de tudo, esse risco parece longínquo. Continuo a ter medo, muito medo numa sala de cinema, às vezes até face a um pequeno ecrã de computador (quem é que eu quero enganar?, mesmo face a um pequeno ecrã de computador). Tantas vezes ponho os dedos à frente dos olhos, não para os tapar totalmente – todo o espectador de cinema é um voyeur empedernido: nada o impedirá de ver, principalmente aquilo que o assusta mais -, apenas para me “poder” proteger, caso seja necessário (mas a necessidade de ver será sempre maior). Do quê, se, como antes escrevi, estou longe de perigo (ou estava; acontecimentos recentes, como o tiroteio durante uma sessão de The Dark Knight Rises (O Cavaleiro das Trevas Renasce, 2012), demonstram que a sala de cinema não é um lugar seguro)? Para me proteger do medo. Ou será daquela sensação de prazer, daquela descarga que se dá quando a violência finalmente irrompe depois de alguns minutos de tensão (ou deverei tirar o n?) E a relação entre morte e prazer (não é por acaso que haja quem chame “pequena morte” ao orgasmo) é uma das raízes da cinefilia, que é coisa perversa e doentia. O género do Terror, nesse caso, será o mais límpido, uma vez que põe a nu a sexualidade malsã que o cinema representa. O espectador aguenta? Aguenta, aguenta! Até que se vem de medo. (JL)