Quand il me prend dans ses bras
Il me parle tout bas
Je vois la vie en rose
Il me dit des mots d’amour,
Des mots de tous les jours,
Et ça me fait quelque chose.
É esta a música que toca na rua, por baixo da janela de Sabrina Fair (Audrey Hepburn), e que esta abre para poder ouvir melhor e escrever uma carta ao seu pai. Este, a viver do outro lado do mundo, gastou as suas economias numa viagem de avião para a sua filha, com destino a Paris, para resolver um desgosto de amor. Uma questão da maior importância, defendemos. Sabrina senta-se e recorda-o, já segura do que sentiu e de como deseja viver a sua vida a partir de agora. Um pouco como a luz que vem depois dos momentos mais escuros e que nunca vemos chegar até sentirmos, de repente, que já sabemos quem é que nós somos. Não exactamente a pessoa que tínhamos sonhado há alguns anos, mas alguém de diferente e que possuímos totalmente. Tal como no momento, para resolver esse desgosto, em que sentimos que a nossa paixão, afinal, vivia pelo amor que tínhamos à imagem que criámos de uma pessoa, e não tanto, porventura, de quem ela era realmente.
Em Sabrina (1954), de Billy Wilder, Paris tem uma extrema importância no surgimento da personalidade de quem falamos. Curiosamente, foi la vie en rose, a vida sonhada, que fez com que Sabrina visse mais claramente a vida que tinha e a vida que queria na realidade. Paris tem esse efeito, e admitimos a nossa grande quota de romantismo. Bogart, o seu par no filme, já nos tinha dito anos antes, nesse país chamado cinema, que Paris era a cidade que teríamos sempre (Casablanca, 1942). Andar nessas ruas é deixar que a cidade – uma cidade que vive pelo e para o seu encanto – nos diga esses mots d’amour, des mots de tous les jours, qui nous font quelque chose. Até que terminando os nossos longos passeios por entre as suas luzes (mesmo de noite), percebemos que não foi tanto a cidade a falar connosco, mas nós mesmos a falar para nós, como num sonho encantado em que tudo o que acontece não vem porque o pedimos, mas porque trazemos esse desejo dentro de nós. Como quando a personagem de Midnight in Paris (Meia-Noite em Paris, 2011), a pensar em Cole Porter, na chuva, e numa certa paixão, vislumbra tudo isso à sua frente, como que por milagre, tal como todos os encontros fantasiosos que tinha tido com os seus escritores preferidos, em viagens temporais, nessa mesma cidade. Mas dessa vez, esse encontro é mesmo real (será?). Vida e sonho confundem-se nessa cidade, e é sempre para nos apaixonarmos um pouco mais.
Porque a experiência de Paris tem a ver com os nossos sonhos, é a cidade onde sentimos poder ser aquilo que quisermos. E muitas vezes, sair de lá com essa memória (uma projecção, outra vez, um sonho), e lá voltarmos para nos reencontrarmos. É um pouco esse o ar que se respira. Uma cidade que não se alimenta de nós de forma vampírica – uma cidade que nos dá percursos, ideias, mostras, arte e encanto para ganharmos a vida que desejamos.
Tal como Sabrina escreve ao seu pai, tive o privilégio de também ir viver dois anos na cidade. A minha cinefilia já tinha nascido antes (da solidão de se viver em frente a uma sala de cinema, num outro país bem longe), mas terá sido aí, talvez, o seu momento mais ardente. Não porque precisava dessa cinefilia, mas porque a cidade assim me chamava para tal, tantos eram os sonhos que viviam nas suas pequenas e inúmeras salas para as quais tantos espectadores faziam fila para entrar. Aqui, todos desejam sonhar. Em Paris, é como quem diz – todos desejam viver.
Os pequenos regressos à cidade são como a música que Sabrina ouve (e que ainda ouvimos, por outro arranjo, já de regresso à sua cidade natal): sair do metropolitano e chegar às suas ruas, deixando que a cidade nous prenne dans ses bras. O resto são carícias, e deixar que o dia se desenrole como num sonho: sem planos, porque o encontro natural com o que a cidade nos mostra acaba por ser, sobretudo, um encontro com aquilo que nós próprios guardamos dentro de nós. Não por acaso, Paris é também a cidade do surrealismo – uma ode ao amor, ao poder subconsciente de imaginar.
Nos escritórios dos Cahiers du cinéma, para os lados dos Champs Elysées (há já algumas décadas atrás), sonhava-se também antes de se escrever textos e críticas. Entre os seus redactores, dividiam-se as identificações. Truffaut escolhia Gloria Grahame, Rivette escolhia Jean Seberg, e Doniol-Valcroze dizia, “Audrey Hepburn, c’est moi”. Nunca conhecemos a pessoa, apenas a imagem que temos dela enquanto actriz e que vive nos nossos sonhos. Paris existe por uma ideia semelhante – é aquilo onde nos encontramos e o que desejamos ser. Uma vida en rose, imaginada, mas com as palavras de todos os dias.
Et ça me fait quelque chose.