Há muito que certamente há por aí mãozinhas a aquecer as palmas para a recepção a mais um gigante que chega finalmente às nossas salas. Mas refreemos os ímpetos. Cloud Atlas, dos irmãos Lana e Andy Wachowski [The Matrix (Matrix, 1999)] e de Tom Tykwer [Lola rennt (Corre Lola Corre, 1998)] adapta o best seller de David Mitchell e, destilando hype por todos os póros, parece destinado a um falhanço magistral. O seu enorme cast (17 nomes entre os quais Tom Hanks, Halle Berry, Susan Sarandon, Hugh Grant, Jim Broadbent, etc), enorme duração (172 minutos!) enorme ambição temática – nada menos do que a compreensão da humanidade – tudo isto parece rodear o filme de uma prosápia que me convida a criar uma expressão igualmente fanfarrona para desmontar a sua eficácia. Ei-la: Cloud Atlas parece um “irrequieto monólito de superficialidade”. Expliquemo-nos a partir daqui.
Um: irrequieto
O britânico David Mitchell confessou que quando estava a escrever o romance pensou que era uma pena por estar a fazer algo que seria infilmável. A realidade veio a desmenti-lo (ou não) e eis que foram precisos três realizadores para visualizar e cruzar seis histórias, do passado ao futuro, mostrando com as acções dos homens estão interligadas, se influenciam ao longo dos séculos tornado a morte numa “porta que dá para outra vida” e assim sucessivamente. A estrutura surge assim como um mosaico de personagens (Tom Hanks e Halle Berry entre os dois asseguram 12 papéis) num primeiro momento de redundância: para que serve o mosaico narrativo se o intuito é explicar como o que seria próprio do humano é precisamente agir em mosaico? Esta duplicação de informação, que tem a ver com a metafísica humanista pela qual este dispositivo enveredou (mas já lá iremos), tem contudo outra explicação. É que o andarmos “todos ligados” é também uma nova paisagem mediática que se mostra na rede ou em anúncios de telemóveis. No caso concreto do cinema, a montagem em mosaico anda como nunca nas bocas do mundo porque dá corpo formal a novos esquemas de atenção, sobretudo aos chamados “digital natives”. Algo que o modelo neoclássico norte-americano vem vindo a fazer progressivamente. A dimensão é tal que Mitchell talvez até tivesse razão. Haverá uma verdadeira estrutura em Cloud Atlas? Isto além da fragmentação e dispersão genética, new age, que transforma o filme numa espécie de montage sequence de quase três horas e se converte numa máquina de homogeneização formal (e de conteúdos) na passagem entre passado, presente e futuro? Mas haverá mesmo uma passagem ou essa “montagem” anula essa ambição de viajar do século XIX, nas ilhas do pacífico, ao século XXII em Seoul, num segundo? Viajar para ficar no mesmo lugar? É a rede? Não, é a nuvem.
Dois: monólito
Além dos valores de produção, o filme que se destina sobretudo ao mercado adolescente, soube reunir-se de uma aura monolítica. Por isso, se falamos na essência do humano (que merece ser contemplada e venerada) é preciso construir-se como objecto omnívoro, não deixar nada de fora, nenhuma pessoa, nenhum género, nenhum sucesso de bilheteira. Por isso, há “histórias de escravos” no século XIX nas ilhas do pacífico. Como o melhor de Amistad (1997). Por isso, há um jovem homossexual amanuense que se liga a um célebre compositor em busca de reconhecimento nos anos 30. Lembremo-nos no universo de Amadeus (1984), por exemplo. Uma jornalista que investiga um esquema no mercado de energia na Califórnia dos anos 70. Há muitos mas por exemplo The Pelican Brief (Dossier Pelicano, 1993). Um editor de livros preso num lar no presente. Como o melhor de One Flew Over the Cuckoo’s Nest (Voando Sobre um Ninho de Cucos, 1975). E as duas cerejas no topo do bolo. Tom Hanks num futuro mesmo distante, pós apocalíptico claro, primitivo claro, de xaile, a subir montanhas em busca de Cloud Atlas. A fazer lembrar o universo de…? Adivinharam: Lord of the Rings (O Senhor dos Anéis). E por fim, ou não fosse este um filme dos irmãos Wachowski, em 2144, na Nova Seoul, uma história de clones e rebelião [Blade Runner (Blade Runner – Perigo Eminente, 1982], mas com Jim Sturgess a lembrar Keanu Reeves e Hugo Weaving a repegar o seu agente Smith (Matrix). Como se pode ver está cá tudo. É o Atlas? Não, é o marketing.
Três: superficialidade
Como escreveu Margarida Rebelo Pinto há mais de uma década, não há coincidências. E a acreditar nela e em Cloud Atlas (há uma cicatriz em forma de cometa que atravessa as personagens através dos tempos que explica isto mesmo) estamos mesmo todos ligados. “From womb to tomb we’re bound to each other” diz-se, construindo-se uma metafísica da boa vontade, uma espiritualidade para todos, da acção que provoca a reacção através dos tempos. Se não há tempo para a verosimilhança, as cambalhotas narrativas mostram como o complexidade não produz necessariamente um objecto denso. E ao contrário da naiveté de Babel (2006) de Iñarritú há um lado perverso nisto tudo. É que sob a pretensão de falar da Humanidade, acaba por falar-se da Unanimidade. Se começamos e acabamos com o cosmos num sentimento “somos todos iguais mas nós não somos nada”, esse esperanto cinematográfico, homogeneiza tudo. É porque também se ouve no filme, num resquício pós orwelliano: “honor thy consumer”. Como quem diz, não estamos todos ligados, estamos é todos fu(n)didos.