Não poderá deixar de ser com alegria que se lê nos jornais e revistas estrangeiros os sucessos dos filmes nacionais. Se outros motivos não houvesse, este vem-se tornando coisa comum. Todos os anos vemos os filmes de realizadores portuguesas serem recebidos de formas entusiásticas nos festivais do mundo inteiro. Deste Lado da Ressurreição (2011) foi um desses casos, apresentado no ano passado no festival de Toronto, foi considerado pelo crítico Haden Guest da Film Comment um dos 10 melhores filmes do ano. O entusiasmo que o filme gerou levou que o Harvard Film Archive dedicasse uma retrospectiva a Joaquim Sapinho (e a pedido deste uma restrospectiva a António Reis e à relação deste com os alunos do conservatório de cinema, no qual se pode incluir Sapinho mas também João Pedro Rodrigues). Por tudo isto era este um dos filmes mais esperados do ano (a utilização do imperfeito já me denuncia).
Se o entusiasmo alegra as gentes, o excesso de entusiasmo levanta suspeição (quando a esmola é grande…). Por isso o que aqui se assina tem por norma sentimentos mistos de alegria e receio para com objectos como estes – já a excitação em torno de Sangue do Meu Sangue (2011) se comparava ao das meninas que recebem uma beijoca do despenteado do Tokio Hotel. A verdade é que, por aqui, era menos o receio e mais o desejo de ver a obra-prima; daí que visto o filme a desilusão esteja potenciada (ou exponenciada) pelo descalabro que é o dito cujo.
Mas vamos ao filme. De início o espectador entendido poderá perceber como dignos de nota uma série de aspectos que a câmara de Sapinho filma, aliás, como filma: a recusa sistemática do contra-campo, a recusa de movimentos de câmara estridentes ou de planos aproximados pornográficos (será curioso reparar que os ditos grandes planos das faces são oferecidos porque os actores se aproximam da objectiva e não porque Sapinho se aproxima deles, como se a própria posição da câmara fosse ela mesma um posição de distanciamento só quebrado pela necessidade dos personagens se deixarem ver), a utilização apenas de luz natural (ou da iluminação de velas). Todos estes aspectos técnicos salientam-se pelo seu rigor, percebemos que todo o trabalho de Sapinho é resultado de um programa ético e estético de respeito para com as personagens e para com o conhecimento das coisas. Todo o filme é sobre o não saber (palavras de Sapinho no Câmara Clara de domingo), não saber para onde se vai, não saber quem se é nem saber como descobrir.
Dito isto, percebemos que o filme sofre de tudo isso que quer ser, é um filme que não sabe para onde vai nem o que é nem como há-de lá chegar (onde quer que seja que pretende chegar). Primeiro porque todo esse trabalho de rigor parece ser torpedeado pela última hora do filme que sistematicamente vai destruindo, ponto por ponto, as conquistas do início. Os contra-campos vão surgindo (veja-se a cena da menina que visita a escola e o ex-namorado); a recusa pela aproximação da câmara é destruída com um traveling lento em direcção aos rostos da mãe e da filha no meio de uma discussão; a ausência de iluminação artificial torna-se num motivo de simples inabilidade, ou seja, o breu profundo que invade certos momentos do filme impossibilita que o espectador compreenda o que se está passando (confundimos a relação mãe-filha com um incesto, ou a relação irmão-irmã com a obsessão juvenil dela pela imagem do namorado fugidio – ajudado pela igual inabilidade dos actores e da sua direcção).
Na mesma entrevista ao Câmara Clara, dizia Sapinho que a coisa que servira de cola no seu filme (entre o lado ancestral/medieval do convento de franciscanos e o lado moderno/pop do surf e do colégio secundário) fora a natureza. Isto porque os franciscanos procuravam deus através da Natureza, e na escola procura-se explicar o mundo através da ciência que é o estudo do natural. Se o argumento parece coxo, o resultado é visivelmente contraditório: não há cola que ate as pontas do filme. Como exemplo dou a montagem paralela da discussão da mãe e da pretensa morte/ressureição do monge surfista através da inanição/auto-flagelação. Se o filme parecia ridículo essa cena eleva toda a empresa ao ponto de desmoronamento. Se o respeito pelos personagens era uma questão de moral, como se explica que o nosso protagonista se esteja a chicotear durante perto de meia hora e que os outros monges acompanhem o ritual numa espécie de orgia de sofrimento?
Nem toda a poesia do mundo pode esconder os desequilíbrios do filme. Foram precisas quatro pessoas para desencantar a história de um surfista franciscano – ridículo? pois com certeza – imagino Jerry Lewis a interpretar tão estranho bicho (e desencantávamos a Beatriz Costa para fazer de freira paraquedista). Mas aqui o ridículo é tomado à letra – até temos um cristo subaquático em fato neoprene [inacreditável é que exactamente no mesmo ano temos um outro cristo de neoprene no derradeiro filme de Fernando Lopes, Em Câmara Lenta (2012)]. Se refiro Fernando Lopes não é só pela mera coincidência figurativa, Joaquim Sapinho diz que filma à procura de qualquer coisa (de um milagre ?), enquanto que Fernando Lopes filma exactamente o mesmo mar (e o mesmo confronto com as ondas) sem qualquer desejo de divino. Esse é o problema do cinema de Sapinho: desejar tão fervorosamente filmar o invisível que acaba por filmar apenas o nada.