No final da década de 80 do século passado, começou a febre das adaptações de banda-desenhadas ao cinema. Na altura, nem era bem uma febre, antes um resfriadozito (as temperaturas só atingiram valores preocupantes em inícios do novo milénio). E a verdade é que algumas das obras mais interessantes a aumentar o tamanho dos quadradrinhos para o grande ecrã apareceram exactamente nesses anos. O exemplo mais gritante é Batman (1989) de Tim Burton [a que se seguiria o ainda melhor Batman Returns (1992)]. Se quiser ser mais abrangente, ainda incluo Who Framed Roger Rabbit (Quem Tramou Roger Rabbit?, 1988), a extraordinária versão animada de Chinatown (1972) [ou o The Two Jakes que Robert Towne nunca conseguiu fazer] por Robert Zemeckis. Dick Tracy (1990) de Warren Beatty, o eterno galã de Hollywood, não estará à altura destes. Aliás, é algo desequilibrado, o que é outra maneira de escrever que tem momentos altos (para compensar os baixos ou os mais sensaborões).
Desde logo, Dick Tracy é um filme com tiques megalómanos. Repare-se na quantidade de estrelas (e grandes actores) no elenco: o próprio Beatty (já entradote de mais para o papel), Madonna (sua namorada à altura), Al Pacino (no seu prodigioso overacting), Dustin Hoffman, James Caan, Seymour Casell (para os mais cassevetianos) [só falta para aí o De Niro]. Ou na extravagância da fotografia de Vittorio Storaro (e Storaro é sempre extravagante, que o diga Coppola), que enche o filme de vermelhos, verdes e azuis e faz o noir mais colorido da história. Ou a da banda-sonora, que conta não só com a partitura de Danny Elfman (a lembrar muito a de Batman) como também com as canções de Stephen Sondheim (que luxo). Ou a da maquilhagem, que pinta a alma e o nome das personagens nos corpos (inesquecível o William Forsythe de cabeça quadrada ou R. G. Armstrong com cara de ameixa). Os nomes, esses, revelam completamente as personagens – Dick (detective) Tracy divide-se entre duas mulheres: a Trueheart (a comezinha Glenne Headly) e a Breathless (a espampanante e maryliniana – ou será marleniana? – Madonna).
A grande qualidade de Dick Tracy é o estridente anti-naturalismo que ostenta: as montagens musicais como nos velhos filmes de gangsters da Warner, o matte painting que parece o que é (cenário de papelão), os fondues, as íris; é cinema que faz lembrar cinema, cinema que se lembra que é cinema, e não uma cópia chatíssima da realidade, o aparente objectivo das últimas adaptações de BD (lá estou eu a dar-lhe com o Nolan). De resto, o filme entrega-se totalmente à estética da nona arte para melhor ser a sétima. É artificioso pelo artifício, o que, se não era à época (Dick Tracy foi bem recebido pelo público e pela Academia, não tanto pela crítica), é bastante resfrescante hoje em dia. A louvar por apenas uma coisa, que seja essa. Tenho ideia (posso estar enganado) que um blockbuster tão arrojado seria impossível agora. Teria de ter, pelo menos, uma caução de qualidade: a actualidade, a “inteligência”, o negrume e outros que tais. Não teria, com certeza, este gozo em ser prazeroso, em ser uma delícia visual e sonora. De certa forma, representa o fim de uma era ou é mesmo o seu último estertor. Porventura mais do que o filme, interessa recuperar essa vertente espectacular do cinema.