É tão bonito estar apaixonado. E desde que não seja por uma mulher ou homem, ainda melhor. Assim se poupam desgraças do coração e desesperadas tentativas para se cortarem os pulsos, clamando por mil injustiças e lançando maldições para o ente amado. Se se quer lançar nessa aventura do desejo, abrace antes algum objecto aparentemente inanimado: uma banana, um alicate, um Cavaco, um qualquer livro do George Orwell ou do Pedro Juan Gutierrez. Garante-se reciprocidade absoluta e nenhuma dessas questiúnculas que por vezes separam duas pessoas da mesma espécie humana, uma lástima. Repare bem neste belíssimo exemplar fumarento por quem pode despejar mil cantigas de amor:
Já palpita o seu coração, certo? Mas tenha atenção: esta bandalha, de seu nome Christine (O Carro Assassino, 1983), destroçou a vida a muitos dos seus anteriores amantes, hipnotizando-os com mil encantos até à destruição fatal, “um autêntico rasto de destruição”, como afirmaria um “jornalista” televisivo enviado para qualquer cenário onde haja mais do que um ferido. Belas e nostálgicas canções no rádio, o flamejante vermelho, assentos de cabedal, jantes de puríssimo branco: tudo isto o pode levar à loucura. A si, não ao “jornalista” televisivo. A esse já basta qualquer dia sem acidentes para lhe fazer explodir a cabeça. Agora vamos escrever coisas sérias.
Escolher um momento musical na obra de Carpenter tem a dificuldade da abundância, tal é a quantidade e qualidade com que o compositor/realizador nos tem brindado nos quase, quase quarenta anos de filmografia musical. Uma pessoa pensa no John e vem logo à mente um amontoado de barbas br…perdão, aquele registo musical minimal, marcial, metálico, quatro palavras começadas por m e todas umas atrás das outras, não se via tal coisa desde aquele filme que estreou no início do ano. Carpenter também conseguiu essa proeza de, em The Thing (Veio do Outro Mundo, 1982), ter transformado a partitura de Morricone em algo indistinguível do que Carpenter fez antes ou do que faria depois. Isso sim, algo digno de um Homem.
Posto isto, escolher Christine e um dos seus (vários) momentos memoráveis tem a condição do sentimento. Primeiro filme visto do Senhor, ainda os 80 não tinham terminado, numa noite chuvosa (serial killers alert) de Sábado. Numa altura da vida onde os filmes “ainda metiam medo” e em que qualquer imagem fora da normalidade quotidiana encravava-se na cabeça até à próxima imagem fora da normalidade quotidiana a deitar ao lixo. Como um carro a reconstruir-se a si próprio, depois de estar todo partidinho. Coisa parva para contar na escolinha, no dia seguinte. Mas na altura era apenas isso, um carro a reconstruir-se. Absurdo, mas apenas isso.
Só mais tarde, quando comecei a desenvolver pensamentos pecaminosos e perversidades que me enchem de vergonha, é que essa cena me pareceu conter mais coisas. Um strip-tease automobilístico a que só faltam as ligas, as rendas, etc a cobrirem o capot. Um arranjo musical apropriadamente fumegante e a cheirar a whisky e a mulher fatal renascida das cinzas. E o “show me” de Keith Gordon não é mais do que um pedido guloso para o deboche do seu amor. Vergonhoso.
E assim terminamos. Não sem antes enviar um grande bem haja e beijinhos aos responsáveis das revistas de automóveis. Têm efectuado um trabalho meritório e inaudito na consolação de inúmeros machos. Tal como aqueles senhores responsáveis por aquelas revistas das ferramentas e tecnologias, com as suas capas oleosas e informativas. São pessoas como estas que garantem o equilíbrio emocional de grande parte da população masculina. Viva estes senhores. Viva as tecnologias. Viva as carripanas. Viva o Carpenter. Viva a Cristina de lingerie vermelha. Vergonhoso.