“A arte é uma força dissidente.” Herbert Marcuse
Vimos colectivos de combate. Vimos a luta dos operários franceses, as reivindicações feministas em Itália, os gritos das minorias étnicas nos Estados Unidos, os caminhos da libertação do pós 25 de Abril. Vimos multidões agrupadas, vozes em uníssono e a consciência de que a união dos esforços é a base do processo de luta. E o cinema estava presente a dar voz aos que gritavam por ser ouvidos – um cinema ele próprio tão colectivo quanto a História que testemunhava. Os cineastas agruparam-se, empunharam as câmaras e os microfones como armas, conscientes de que a imagem e a palavra são direitos, são poderes que devem ser reclamados.
Na recente edição do Doc Lisboa, o importantíssimo ciclo UNITED WE STAND, DIVIDED WE FALL, comissariado por Federico Rossin, trouxe-nos um percurso que, entre 1968 e 1986, acompanhou simultaneamente a história do cinema colectivo e o progresso do vídeo, demonstrando a importância deste meio – mais económico relativamente à película – de documentar e assim construir uma memória de vários ganhos da luta humana pela emancipação na segunda metade do último século. Mas, principalmente, assistimos a uma viragem das estratégias do poder contra si próprio. Com os mesmos meios do sistema dominante (usados para hipervigilância, difusão televisiva, captação e exibição…), a chegada do vídeo permitiu uma democratização crescente da acção através do filme, a que a revolução digital se acrescenta com renovada rapidez – com a expansão do acesso aos meios de produção e difusão (sejam pequenas máquinas de filmar, fotográficas e até telemóveis), a luta no presente reforçou a sua expressão. O filme é um modelo já percebido como um exercício de cidadania, como uma arma de intervenção na realidade circundante. Um triunfo do cinema enquanto gesto agrupador torna possível, explica Rossin, “por um lado, que as pessoas olhem juntas para a sociedade com outros olhos, por outro, recusar a noção de autor e a ideia de obra singular e única” (1). Na urgência comum a cada um destes filmes, o valor da desaprendizagem das formas conhecidas – a imediaticidade do real entrou no processo. Capturar imagens e sons é compreender as situações que decorrem no presente, é focar rapidamente a atenção nos seus intervenientes. (Esquecidos os gestos ensaiados, os planos cronometrados e as escolas estéticas. Esquecido o estatuto irredutivelmente narcísico do artista-autor e a rigidez dos estilos fixados. Esquecida qualquer abjecta análise mercantilista em que se possa considerar um filme em função do seu consumo – os novos filmes de combate “transformam-se” num cinema indigesto.)
A união faz a força e o primeiro exemplo é a direcção colectiva do próprio Doc Lisboa, este ano composta por Cinta Pelejá, Cíntia Gil e Susana de Sousa Dias que às adversidades que se conhecem à conjuntura portuguesa, responderam excepcionalmente – a força do programa do Doc 2013 será lembrada na sua manifesta resistência. Além da retrospectiva United We Stand, pudemos ver nascer outras propostas absolutamente centrais, como a nova secção de “Cinema de Urgência” que, em sintonia com o espírito contestatário que varre o globo, apresenta os filmes contemporâneos que concretizam as denúncias.
Poderia servir de cartão-de-visita a toda a retrospectiva a certeira citação que Federico Rossin trouxe de Marx: “A história repete-se, primeiro como uma tragédia, e depois como uma farsa.“ E hoje é a idade da farsa, acrescentou. Não há como discordar. Assistir ao cadaverismo de um modelo socio-económico que, a cada dia, engole mais a sua própria cauda, é testemunhar na primeira pessoa uma grande sátira do Homem perante o Homem. Onde o cúmulo dos esforços do progresso tem para lhe oferecer hoje, em reverso, a miséria; onde a insistência nos sistemas decadentes ilude a queda livre. Rever estes filmes à luz de hoje é perceber as tendências cíclicas da história mas também as bases comuns das necessidades e expectativas humanas, para lá das respectivas inserções geo-temporais. Os mesmos slogans esquecem-se e retomam-se, entre as multidões e em várias línguas: cerram sempre no ar os punhos e falam de povos unidos e de resistência.
(A sequência cronológica em que os filmes foram exibidos, e o agrupamento entre secções internas da programação foram respeitados na organização deste artigo, que falará sobre cada um dos filmes particularmente.)
CAPÍTULO 1 | HERÓIS DA CLASSE OPERÁRIA
Le train en marche (1973), curta documental de Chris Marker em torno de Medvedkine, 1973
“A história do cinema é tão injusta como a história geral da humanidade quando se trata de reconhecer os seus heróis reais.”Nicole Brenez
“Maio não é só o seu sujeito mas sobretudo o seu projecto, o projecto de um cinema colectivo, que toma um papel activo na História.” na capa da colectânea ‘Le Cinéma de Mai 68’ (Editions Montparnasse)
” (…) Realizados a quente pelos estudantes da Escola Vaugirard e do Idhec, ou cuidadosamente montados anos mais tarde por profissionais, todos estes filmes-testemunhos participam num projecto inconsciente : filmar a chegada da palavra a um mundo até então silencioso…”David Vasse in “Nascimento de uma palavra – a propósito dos filmes de Maio”
Ao longo das revoltas de Maio de 1968, os cineastas envolveram-se no coração das manifestações, filmaram dentro do que estava a acontecer. A proximidade às revoltas estudantis ou da classe operária compreendia a força da unidade colectiva, igualmente essencial para o fazer cinema. Ao contrário das câmaras de televisão, o papel do cinema era o de contrariar o autismo do privado – contra um sistema de canais televisivos que gerem o que é dito e quando, contra uma economia alicerçada nas trocas privadas. A acção colectiva, não hierárquica, cumpre um projecto de crítica social, de reflexão conjunta. De dialéctica permanente entre quem filma, quem é filmado, e quem vê os filmes, reconhecendo a responsabilidade colectiva no papel da representação. Uma oposição directa ao ventriloquismo praticado pelos media em relação aos que protagonizam as relações sociais, e à alienação da sociedade do consumo e do espectáculo – à procura de um cinema do real.
1968. LA REPRISE DU TRAVAIL AUX USINES WONDER
(Colectivo de Estudantes do Institut des Hautes Études Cinématographiques)
A acção de Wonder, Mai 68 decorre num só plano-sequência, uma só cena, “a cena primitiva do cinema militante, a saída das fábricas Lumière ao contrário, um momento miraculoso na história do cinema directo” (Serge Daney e Serge Le Peron, 2001). Escrevera Jacques Rivette em 1969 que este era “um filme verdadeiramente revolucionário. Talvez por ser um momento em que a realidade se transfigura de tal modo que permite condensar toda uma situação política ao longo de dez minutos de uma intensidade dramática louca.” O contexto : depois de três semanas de “grêve et des rêves” (expressão de Edgar Roskis, em 1996), na rua por melhores condições de trabalho na fábrica, é na eminência da dissolução do protesto que a jovem trabalhadora da Wonder se recusa, num tom desesperado: “Não! Não voltarei a entrar lá dentro ! Se entramos agora, poderemos não ter mais nada!”. Gesticula e explica como “é tudo tão negro lá. Nem um lavatório há”. Em redor da sua não-rendição, um pequeno grupo indeciso permanece, mas só os dirigentes sindicalistas de fato e gravata insistem em acalmá-la, garantindo que o diálogo com o patrão trouxe uma “vitória”. Conquistas insuficientes quando a indignidade permanece, percebemos. Mas, asfixia, já é tarde: entretanto, a maioria dos operários já reentrou sob o olhar impaciente de um patrão, apressado em desmobilizar o motim. Eis que um jovem estudante de passagem intervém, reforçando o discurso da rapariga. Alheio à luta mas tomando a palavra com outra eficácia, própria da sua formação, a participação daquele jovem parece equivaler ao papel do próprio cinema – o dever de trazer as suas possibilidades e técnicas à intervenção nas realidades a que, à primeira vista, é alheio.
1969. CLASSE DE LUTTE
(Grupo Medvedkine de Besançon)
À bientôt j’espère (1967) de Chris Marker e Mario Marret . O título ‘À bientôt, j’espère’ é decalcado do último plano do filme, onde um grevista em plano frontal desafia os patrões com um «Até breve, espero». Pode ler-se : “O cinema não é uma magia. É uma técnica, e uma ciência. Uma técnica nascida de uma ciência e posta ao serviço de uma vontade : a vontade dos trabalhadores de se libertar.”
“A junção entre o mundo da fábrica e o universo da criação pôde enquadrar-se numa associação nascida com o fim da guerra : “Peuple et culture” (2), cujo papel essencial no cinema francês não foi ainda analisado. Sublinhemos simplesmente que dois dos seus membros mais activos foram André Bazin e Chris Marker.” Nicole Brenez, in “Les groupes Medvedkine ou : les révolutionnaires d’hier sont nos classiques d’aujourd’hui “
“A cultura é revolucionária, porque está em comunhão com todas as expressões da vida, e a vida é sempre revolucionária, a vida sai sempre dos eixos que lhe haviamos destinado.” na capa da colectânea ‘Les Groupes Medvedkine’
Uma aventura no comboio de um homem que punha o cinema “entre as mãos do povo”, assim se assumiria Alexandre Medvedkine (1900-1989). Cineasta precursor, comprometido com o projecto revolucionário soviético, inventa o ‘cine-comboio’, unidade móvel de produção fílmica – especialmente equipada com laboratórios de pós-produção e projectores dentro de carruagens – que percorreu a URSS ao longo do ano árduo de 1932. Durou precisamente 295 dias e 24,565 metros de película impressionada. Filmados por uma equipa fixa (ao todo, 32 pessoas incluíndo Medvedkine) em conjunto com os operários, camponeses e mineiros do país, os filmes eram montados no próprio dia no comboio, e projectados e debatidos no dia seguinte. Uma fantástica tribulação pouco lembrada, que os cineastas-operários franceses homenageiam ao apelidar-se de grupo Medvedkine. O grupo, que nasceu em Besançon e se estreia com Classe de Lutte em 1967, foi o primeiro de vários grupos Medvedkine a surgir em França. Chris Marker detalhou esta motivação: “Há quem pergunte, por vezes, o que é que fez com que um grupo de operários franceses, iniciando-se nesta tarefa difícil de tomar o cinema nas suas mãos, escolhesse baptizar-se precisamente Grupo Medvedkine. Sinto-me contente por poder trazer, pela primeira vez, uma resposta histórica a essa importante questão. É exactamente neste momento, ao falar acerca do cine-comboio em Besançon em 1967, na cozinha de René Berchoud, na companhia de Georges, de Yoyo, de Daniel, de Pol, de Geo e de alguns outros, que citei Medvedkine : “Trazíamos connosco algumas bobines já filmadas, para inserir nos filmes. E havia uma em que pegávamos sempre, integralmente, porque serviria sempre, em todos os filmes. Aquela que dizia : «CAMARADAS, ISTO NÃO PODE DURAR MAIS ! »”
Le train en marche, curta documental de Chris Marker de 1973 em torno de Medvedkine
Alexandre Medvedkine sobre os Cine-comboios
Sochaux, 11 Junho 1968, Grupo Medvedkine de Sochaux, 1969 – fala sobre o massacre da polícia sobre a greve dos trabalhadores da Peugeot em 1968, em que resultaram dois mortos e 150 feridos e amputados. Honrando os companheiros sacrificados, as imagens deste dia iriam ser constantemente evocadas nos filmes do Grupo Medvedkine.
“…Besançon é emblema tanto da pré-história dos surtos de Maio 68 – nas greves e ocupações fabris que lá se iniciaram em Março de 1967 – como da sua mais potente pós-vida – nas experiências de ‘autogestion’, de gestão própria pelos trabalhadores, que culminou na cooperativa estabelecida na fábrica de relógios LIP em 1973.” Trevor Stark in ‘Cinema in the Hands of the People’
A 25 de Fevereiro de 1967, trezentos trabalhadores ocuparam a fábrica têxtil de Rhodiaceta, em Besançon, declarando uma greve que se prolongaria ao longo de mais de um mês – era a primeira ocupação em França desde 1936. Apesar de também reclamarem melhores condições no local de trabalho, na carga horária e no salário, o que era verdadeiramente único nas revoltas de Rhodiaceta era a centralidade da reivindicação por mais cultura, argumentando que o acesso à cultura era um dos instrumentos de manutenção da hierarquia de classes, assente na cisão entre trabalho manual e trabalho intelectual. O processo de auto-educação na cooperativa (onde, em conjunto, se programavam e viam filmes de Godard, Ivens, Vautier, etc,) foi a descoberta da identidade de uma condição e de uma luta que aproximaria os trabalhadores entre si, em direcção a uma concepção de colectivo. Maurivard, um dos jovens líderes sindicais que protagonizam À bientôt j’espère, afirma que os trabalhadores “viviam pela primeira vez uma experiência de colectividade, descobrindo-se uns aos outros” na fábrica ocupada. Um dos grevistas descreve o impacto da experiência de entrar na fábrica e, pela primeira vez, sentir ‘calma’, enquanto o espaço era usado colectivamente, para actividades como projecções de cinema ou dança.
“A questão, para estes homens, não é negociar – ao estilo americano – a sua integração numa ‘sociedade de bem-estar’, mas pôr em causa essa própria sociedade e o valor das ‘compensações’ que oferece.” Chris Marker, Le Nouvel Observateur, 22 de Março de 1967
O colectivo imergiria de um encontro com Chris Marker e a cooperativa de produção fílmica SLON (Service de Lancement des Oeuvres Nouvelles), que dedicaria esses anos de militância a um modelo de ‘cinéma-ouvrier’, incessantemente comprometido com a procura de formas para uma nova dinâmica entre os cineastas e os protagonistas daquele cinema. Estávamos em 8 de Março de 1967, e Marker editava o primeiro projecto SLON : Loin du Vietnam (1967), um protesto colectivo contra a Guerra do Vietname, assinado por Godard, Ivens, Klein, Lelouch, Resnais e Varda. Ao receber uma carta a descrever os acontecimentos em Rhodiaceta, apressa-se a chegar a Besançon, a 400km de Paris, com uma pequena equipa habitual (o técnico de som Antoine Bonfati, o operador de câmara Pierre Lhomme e a fotógrafa Michèle Bouder), e aí conhece Pol Cébe, os Berchouds, e outros trabalhadores em greve. O primeiro resultado da visita de Marker a Besançon, foi o documentário À bientôt j’espère, filmado entre Março de 1967 e Janeiro de 1968, com o cineasta militante Mario Marret. No entanto, a 27 de Abril de 1968, na sua estreia junto dos operários e comunidade local de Rhodiaceta, À bientôt j’espère foi recebido com acesa hostilidade. Na discussão que se seguiu à projecção, gravada pelo operador de som Bonfati (3), as críticas manifestaram a rejeição dos trabalhadores de uma forma com que não se identificavam : acusou-se, entre outras coisas, uma certa ‘exploração’ dos trabalhadores, a visão excessivamente ‘romântica’ de Marker, o papel secundarizado da mulher – retratada como esposa e dona de casa, sem a justa ênfase à sua condição de operária e de militante. Marker respondeu ao grupo: “Também temos conduzido uma actividade paralela, colocando câmaras e gravadores nas mãos de jovens militantes, conduzidos por uma hipótese que se torna ainda mais evidente para mim: que nós seremos sempre, na melhor das hipóteses, exploradores bem-intencionados, mais ou menos amigáveis, mas vindos do exterior; e que, com a sua libertação, a representação e a expressão cinematográficas da classe operária serão o seu próprio trabalho.”
A transcrição da luta operária para o cinema necessitava de cumprir este passo: o de eliminar a réplica da acusada relação de dominação, entre aqueles que têm acesso à cultura e os que não têm. Os representados teriam de ter o poder de se representar.
Workshops de cinema na CCPO (Communauté de Communes du Piémont Oloronais) ; Georges Binetruy (operário e activista) e o Grupo Medvedkine. Binetruy afirmou que a partir do momento em que se põe os olhos atrás de uma câmara, a pessoa já não é a mesma, o seu olhar muda.
Enquanto filmavam À bientôt j’espère, Marker e SLON (4) tinham iniciado o ensino das técnicas cinematográficas básicas aos operários mais interessados, sem experiência prévia. O insucesso do filme impulsiona a “experiência paralela” – este colectivo formaliza-se como Grupo Medvedkine em 1967 (por coincidência, o ano em que Chris Marker tem finalmente a oportunidade de conhecer pessoalmente o seu ídolo soviético (5), num festival em Leipzig), e prossegue a grande paixão por um projecto que poucos lembravam, mas que Marker alimentava como um sonho “para um pseudo-director perdido na selva onde o profissionalismo global e o corporativismo se reúnem para prevenir o cinema de cair nas mãos do povo.” O Grupo Medvedkine incorporou plenamente uma conciliação transversal das classes com a cultura, unindo a contestação intelectual à luta operária. A destreza dos operários, rapidamente formados no manejo da técnica pelos maiores nomes do seu tempo, caminha para a construção de um novo socialismo, afastado dos moldes bolcheviques. Recusa uma ideologia bafienta baseada no enaltecimento do esforço da classe trabalhadora, posicionando-se, filme a filme, numa denúncia contra a exploração do corpo humano, nomeadamente contra os imperativos de produtividade exigidos pela entrada da França no Mercado Comum (CEE, 1957). Esta é a diferença essencial entre os trabalhadores do grupo Medvedkine e os do cine-comboio soviético trinta e quatro anos antes – o grupo coordenado por Alexander Medvedkine construíra-se a partir do elogio do trabalho colectivo, analisando as condições de trabalho em conjunto com os trabalhadores, enfatizando um ideal de produtividade e eficácia (previsto segundo o cumprimento do Plano estalinista) que a sua própria postura activamente seguia. O ritmo alucinante da produção cinematográfica do cine-comboio, a reprodutibilidade, a acessibilidade ao filme eram os meios para a materialização do sonho onde se previa a activação da consciência do espectador, onde a compreensão artística destruíria a postura contemplativa. Toda a arte seria operativa e revolucionária. Aquilo que Rivette, ao criticar o cinema de Maio, destina à responsabilidade de um novo projecto de “recusar as ideias pré-feitas” porque “fazer cinema não é mais um lugar de conforto”.
Outra semelhança ecoa do projecto do cine-comboio no do Grupo Medvedkine: uma base de desprofissionalização, crente que a possibilidade de representação não é uma competência única e individual, e que os contributos de profissionais e amadores deviam dissolver-se em obras comuns. No caso do Grupo Medvedkine, o resultado é um legado de filmes indispensáveis, plenos de força e ferocidade, eloquentes, brilhantes e emotivos, realizados sob a égide de Pol Cébe (operário e biliotecário do CE – Comité d’entreprise). Lembramos a jovem de Avec Le Sang Des Autres ( 1974) da autoria do Groupe Medvedkine de Sochaux, crescida na deprimente Sochaux, cidade proletária em torno de um massivo complexo fabril da Peugeot, e a sua derradeira questão: “Mas o que é o socialismo e o que é que esperamos?”. Ou uma das sequências de Rhonda 4/8 (Grupo Medvedkine de Besançon, 1969), clandestinamente filmada no interior da fábrica têxtil, onde um técnico de fibras de Rhodiaceta explicita a monotonia da tarefa diária, e as consequências do ritmo do relógio mecânico nos aspectos mais particulares da sua vida: “Para comer, em princípio, uma pessoa deve estar com fome. No entanto, quando comemos não é porque estamos com fome, mas porque o cérebro electrónico achou que devíamos comer devido a uma quebra na produção.”
Classe de Lutte (1967) do Grupo Medvedkine de Besançon
Pode ler-se : “- Uma vez, numa reunião (o patrão) disse-me que não podia aumentar os salários porque tinha de ter preços competitivos para o Mercado Comum. Então, é necessário que os operários aumentem a sua produção e que vivam com o mesmo salário.” Suzanne Zedet em “Classe de Lutte”, Groupe Medvedkine de Besançon, 1967
Classe de lutte (seleccionado para a retrospectiva United We Stand) é o primeiro filme realizado pelos operários do Grupo Medvedkine de Besançon: uma construção progressiva, onde a transformação subjectiva de uma figura – Suzanne Zedet, uma jovem trabalhadora na fábrica de relojoaria de Yema – serve como evocação de uma possibilidade mais ampla, a de uma mudança na consciência de toda a classe operária. Acompanhamos o seu desejo de envolvimento sindical, a sua consciencialização de que ser militante é uma condição endógena à sua condição operária. Classe de Lutte responde com precisão e objectividade ao prévio Bientôt j’espère: descreve a urgência da participação feminina no movimento sindicalista, nomeadamente numa cidade onde 32% da população activa era composta por mulheres, preferidas pela sua “mão ágil e dócil”, útil para o trabalho de precisão mas com remuneração inferior aos homens.
“O filme corta de planos de mãos numa publicidade aos relógios Yema para um close-up da mão de Zedet para as mãos de uma mulher agitando uma bandeira em protesto. Ecoando a justaposição de Marker de mãos exploradas e mãos libertas em ‘À bientôt j’espère’, esta montagem relaciona com uma impressionante economia narrativa o papel feminino nos circuitos de consumo e de produção.” Trevor Stark, in “Cinema in the Hands of the People”: Chris Marker, the Medvedkin Group, and the Potential of Militant Film
Acedemos à integração indivisível dos parâmetros económicos, políticos, domésticos e culturais no quotidiano de Zedet – uma dialéctica reflectida na primeira pessoa, entre as dinâmicas de um processo de transformação, onde as conquistas políticas seguem a par com uma nova relação com a cultura. Numa conversa em Classe de Lutte, Zedet afirma que acha um poema de Paul Éluard tão importante quanto um discurso político, reconhecendo em si uma renovada capacidade de experienciar a arte, e percebendo-a como veículo possível de um conteúdo socialmente interventivo.
Cartazes de Maio de 68; Genéricos do filme Rhodia 4/8 (1969) do Grupo Medvedkine de Besançon
Filme Nouvelle Societé nº6 (1969) do Grupo Medvedkine de Sochaux
O legado dos grupos Medvedkine, crucial na história do cinema francês, distribuir-se-á entre dez curtas e médias metragens, documentários ou encenações documentadas, realizados em 16mm entre 1967 e 1974. São os vestígios de uma experiência fundamental, centrada numa questionamento estrutural da sociedade, particularizada na relação entre o acesso à cultura e a hierarquização do trabalho. Numa agenda com várias vozes, um princípio revolucionário materializou-se : o de não mais falar em lugar dos trabalhadores, mas de lhes dar os meios para que tomassem a palavra. Ultrapassaram-se as fronteiras pré-conhecidas da acção militante ou partidária, das estruturas dos comités de luta operária e sindical. A agitação de Besançon foi o prenúncio do Maio de 68. Enunciou uma luta que se alastraria ao longo de um país que gritou em coro, na mais bela avalanche que se continuou entre imagens, palavras e liberdade.
1979. À PAS LENTES
(Colectivo Cinélutte)
Filme À Pas Lentes (1979) do Colectivo Cinélutte; Cartazes dos anos 70 relacionados com a ocupação das fábricas LIP
Nunca esqueceremos a tenacidade de Renée que, a par da colega de trabalho Christine, é um dos eixos condutores deste filme. Realizado quatro anos após o conflito na fábrica de relojoaria LIP, em Besançon, À Pas Lentes ganha o seu título com um jogo de palavras a partir de “Palente”, nome do bairro onde se situava o quartel do grupo Medvedkine de Besançon. Quatro anos depois da emblemática greve de Besançon, a equipa Cinélutte dá a palavra às operárias da fábrica outrora ocupada, partindo dos casos particulares para uma reflexão conjunta da situação operária feminina no pós Maio de 68.
Renée considera as consequências desumanizantes do trabalho maquinal, descaracterizadoras do feminino, explicando como “o trabalho nos escritórios é mais feminino do que nas máquinas”. Logo estende as próprias mãos para as comparar às de um cartaz publicitário aos relógios LIP – nunca poderia usar as unhas assim tão compridas para poder fazer aqueles relógios. Mas a feminilidade que aquelas mulheres desejam para si tem contornos distintos do então reconhecido: muitos alertas para a realidade de uma descriminação sexista prevalecem entre os depoimentos de mulheres que sentem as várias formas da soberania dos homens. Desde os maridos que não entendem os problemas das mulheres no trabalho, à opressão dos chefes sempre homens, até à falta de verdadeira inclusão feminina e das suas questões num movimento sindical eminentemente encabeçado por homens. É o retrato de um envolvimento necessário, contra o conservadorismo e “falta de combatividade” de outrora, como enuncia Renée ao conversar com a sua mãe. Apesar das acusações prévias, o mais emotivo dos momentos com Renée acontecerá talvez na intimidade daquela confissão breve, que descreve um contraditório sentimento de paixão pelo seu superior, homem gentil mas anti-greve. No fundo, À Pas Lentes contrói-se como uma meditação entre contradições. Se, por um lado, convoca a nobreza do valor do trabalho, por outro mantém presente a consciência de que há trabalhos que são fisicamente arriscados. Se o desemprego se apresenta como uma ameaça atemorizante e insustentável, também se sabe que é através da manipulação deste medo colectivo que a revolta operária pode ser contida pelo patronato. E se há uma luta das mulheres por uma igualdade em relação aos homens, é uma igualdade que tem consciência das suas diferenças, que reconhece as suas especificidades físicas e sociais. Pelas vozes destas forças femininas, conhecemos as implicações das condições de trabalho no seu quotidiano, na convivência com os seus filhos, nas relações com os homens, no ambiente entre colegas, no cumprimento das suas auto-expectativas.
Ao longo dos seus oito anos de existência, entre 1973 e 1977, o Colectivo Cinélutte produziu, realizou e distribuiu sete filmes, longas e curtas metragens, que testemunham várias frentes da luta operária na França da década de 70. Entre os restantes filmes do colectivo, À Pas Lentes é decerto o mais vivo, o verdadeiro filme de resistência.
Cartazes dos anos 70 relacionados com a ocupação das fábricas LIP (de 1973); Versão do monopólio criado e comercializado pelos trabalhadores desempregados das fábricas LIP.
CAPÍTULO 2 | SLAPSTICK POLITICS
1971. VLADIMIR ET ROSA
(Grupo Dziga Vertov)
Filme Vladimir et Rosa (1971) do Grupo Dziga Vertov
“Pobre idiota revolucionário, milionário de imagens.” Godard em Ici et Ailleurs (1974), último filme do Grupo Dziga Vertov
“O período Dziga Vertov, essa no man’s land entre Week-end e Sauve qui peut (la vie), foi durante muito tempo negligenciada e considerada inexibível.”James Quandt in “Here and elsewhere. Projecting Godard”
“… lidamos com filmes rodados do ponto de vista de um idiota, onde a linguagem encontra na idiotia o seu próprio núcleo generativo.” Federico Rossin in “Marx au grand magazin. L’idiotie et le burlesque dans le films du Groupe Dziga Vertov”
Tal como os Grupos Medvedkine, o Grupo Dziga Vertov encontrou o seu baptismo no cinema soviético dos anos 20/30. Partilham ainda uma essência satírica – tão central para Alexander Medvedkin, como para os Grupos Medvedkine – e que, no legado do Grupo Dziga Vertov, atinge com Vladimir et Rosa (filme programado na retrospectiva United We Stand), o auge da sua inventividade cómica. (6) Entre 1968 e 1972, Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin foram os principais membros activos, sendo Godard, à época, já reconhecido pelo seu cinema politizado, iniciado em 1960 com Le Petit Soldat. Gorin era então um jovem jornalista, e um proeminente activista de índole marxista, que colaborara como consultor político em La Chinoise (Godard, 1967). O compromisso com o cinema colectivo parece agir, à luz do percurso de Godard, como um gesto de auto-crítica que repudia a questão autoral que num passado recente ajudara a formular. Mas o ideal marxista revigora, prevendo agora a consideração política de todos os aspectos da produção fílmica – filmes que não só são políticos no seu conteúdo, mas também na sua produção, realização e distribuição. Se para Godard, o projecto de despecialização que está na base dos Grupos Medvedkine foi sustido por uma crença no cinema como uma técnica que poderia simplesmente ser transferida da burguesia para a classe operária, as formas de ‘negação cinemática’ do Grupo Dziga Vertov procuram evitar um modelo em que qualquer grau de alienação de classe se replique a si próprio. Em simultâneo, escapam aos manifestos revolucionários de título individual que o cinema militante autoral concretiza, escapam ao status associado ao internacionalmente renomeado realizador Godard, e buscam a participação anónima num movimento social alargado. A motivação analítica transforma um filme num quadro preto escrito a giz (como o que efectivamente surge em Vladimir et Rosa), superfície onde se analisa e reconstrói, onde se sustentam e vocalizam argumentos. O cineasta Dziga Vertov surge como grande emblema de um cinema revolucionário, simultaneamente formal e político, inspiração que impulsiona o experimentalismo do duo Godard-Gorin, e que desbrava um caminho novo entre a profusão do cinema político da época. No pós Maio de 68, um internacionalismo envolvia o cinema, intensificando-o – os movimentos libertários surgem de todos os cantos do globo, e a pulverização das narrativas de emancipação corresponde à própria história do cinema colectivo. Perante uma sociedade em rápida transformação, um cinema em amadurecimento, que reflecte o seu propósito e motivações. Imagens e sons desenlaçam-se, são a matéria que se recombina para inaugurar diálogos distintos. E face ao projecto de destruição do cinema pelo cinema, as questões sucediam-se. Como poderia o cinema construir uma imagem dos povos? Como poderia exceder a mera documentação? Como poderia participar numa construção colectiva? Como se encontraria operativamente com o espectador, numa dialéctica de activação política? Que técnicas do cinema usar para transformar o mundo através dele?
Repudiando qualquer versão de cinema verité, Godard e Gorin duvidavam da capacidade do cinema de capturar a realidade, perfeitamente sintetizada num slogan que surge em British Sounds (Grupo Dziga Vertov, 1969) “A fotografia não é uma reflexão da realidade. É a realidade dessa reflexão”. À posteriori, Godard daria aos ‘ciné-tracts’ de Marker o crédito de modelo inicial do Grupo Dziga Vertov : “Os ciné-tracts são uma ideia de Marker. O vídeo e todos esses pequenos filmes, foram um meio simples e barato de fazer cinema político, tanto para uma section d’entreprise como para um comité de acção…. Porque, da mesma forma que na sala de aula rescrevemos os filmes com os estudantes, acredito da mesma forma que é preciso que façamos filmes com quem os vê.”
Nos primeiros momentos de Vladimir et Rosa, há uma voz que repete: “ …o verdadeiro título do filme devia ser : a significação do processo de…” É o próprio filme a proclamar-se como um trabalho conjuntivo, como uma unidade de relações imparáveis. Vladimir et Rosa insere-se num ciclo de processos que se amplificam, o processo revolucionário, o processo de produção, o processo de devir histórico. Um filme procede e precede. Sobre si mesmo, pergunta : “Que filme (fazer)? E qual é o filme prévio?”. Se a narrativa dos factos é o impulso que parte da realidade para tomar a forma de um filme, o imediato passo seguinte há-de esquecer a indústria narrativa que domina o medium, e ensaiar uma anti-narratividade. Como descreve Federico Rossin, “Godard e Gorin já não acreditam na ideia de dar uma forma ao informe do mundo, de transformar o khaos em kósmos”. E perante o intento de representar uma desordem sem forma, a resposta é uma estrutura construída por (des)pedaços. As pistas recolhidas ao longo da travessia pelo caos da experiência acumulam-se e replicam-se em imagens e sons desconexos. O radicalismo político é decalcado pelo filme e todas as normas se excedem para estudar uma distorção pela sátira. A encenação do ridículo entre Vladimir-Godard e Rosa-Gorin homenageia o exagero da comédia slapstick e, numa sucessão de fragmentos desalinhados, sem ligações de continuidade reconhecíveis, as personagens gesticulosas improvisam gags de situação, prolongam-se entre diálogos autistas com ridículos sotaques russos, repetem-se, sobrepõem-se, interrompem-se.
O último plano de Week-end (1967) de Jean-Luc Godard, anuncia o “Fim do Cinema”; Nos fotogramas de Vladimir et Rosa (1971) do Grupo Dziga Vertov, pode ler-se “Como filmar as imagens e registar os sons”
O binómio teoria-prática, por várias vezes evocado ao lado de uma fotografia de Lenine (o Vladimir de que se partiu) relaciona a contradição da aplicação prática da ideologia à batalha de formalizar um cinema comprometido. À questão de Vladimir “Mas como fazer imagens da ruptura?” , responde Rosa “Não sei lá muito bem, devíamos primeiro conhecer as imagens que nos oprimem para melhor as destruir.” Vladimir et Rosa é um filme feito pela sua própria planificação. A idiotia evocada por Rossin é, portanto, literal – a desconstrução semiológica que se ensaia escapa propositadamente à compreensão plena, não prevê a partilha de uma significação inteligível. Imagens e sons sucedem-se à velocidade do pensamento, em torrentes de excesso como as que brotam dos televisores ligados em simultâneo.
Godard acreditava que “a burguesia cria um mundo à sua imagem, mas também cria uma imagem do seu mundo a que chama reflexão da realidade”. Num projecto transformador, para reeducação ideológica para e através do cinema, Godard e Gorin desafiam as imagens constituintes da realidade procurando, não propriamente distanciar-se dessa mesma realidade mas assumir hiperbolicamente o carácter de encenação da arte, num gesto brechtiano que acentua a cisão entre o que são as formas da vida e as formas da arte.
“Um cineasta comprometido politicamente é, antes de mais, alguém que pensa na história colectiva, portanto alguém que pensa em termos do futuro que deseja evocar, e que planta as sementes da justiça em forma de imagens, sabendo que, com a melhor sorte, elas irão crescer mais tarde.” Nicole Brenez
NOTAS :
(1) Federico Rossin, in Ípsilon, Público, 19/10/2012
(2) No seu artigo “Cinema in the Hands of the People”, Trevor Stark descreve mais pormenorizadamente : “Nos anos 40, Chris Marker trabalhou para as organizações irmãs ‘Peuple et Culture’ e ‘Travail et Culture’, que procuravam ‘trazer a cultura ao povo e o povo à cultura’ como forma de cultivar formas radicalmente democráticas de expressão popular. Inicialmente um membro dos workshops de teatro, Marker rapidamente trabalhou lado a lado com André Bazin na secção de cinema de ‘Travail et Culture’ (…), editando, com Benigno Cacérès, um volume de documentos em torno da história dos movimentos operários franceses desde o século dezanove, intitulado ‘Regards sur le Mouvement ouvrier’…”
(3) Este documento áudio faz parte da colectânea Groupes Medvedkine (Editions Montparnasse, 2006). Foi intitulado por Marker de ‘La Charnière’ – o ponto de fulcro, assinalando a viragem estimulada pelo insucesso de ‘À bientôt j’espére’.
(4) Baseado no CCPPO, o apoio logístico – que incluía câmaras em punho de 16mm, gravadores e uma mesa de montagem – foi viabilizado pelos esforços de René Vautier, Joris Ivens, Mario Marret, Jean-Luc Godard, Bruno Muel, Antoine Bonfanti, Jacques Loiseleux, Michel Desrois, Nedjma Scialom, Théo Robichet, Ana Ruiz e outros.
(5) Chris Marker dedicou dois filmes a Alexander Medvedkine: Le train en marche (1971) e Le tombeau d’Alexandre (1993).
(6) Alain Bergala escreveu em “Cahiers du Cinéma, Spécial Godard” que “Vladimir e Rosa é, até ao dia de hoje, o mais burlesco dos filmes de Godard. Tudo se passa como se, por overdose súbita, o discurso político, desde sempre opressivo, começasse a explodir sobre um fundo de música pop, como num filme dos Marx Brothers ou num desenho animado de Tex Avery. O duplo discurso separa-se, enlouquece, e um filme de amigos (que se divertem visivelmente como loucos com as situações que estão a inventar) ultrapassa visivelmente o que resta de um superego militante no projecto inicial. (…) Vladimir e Rosa permanecerá para sempre o mais humorado e alegre dos filmes políticos”