Antes de mais comecemos pelo fim (que é sempre um bom lugar por onde começar), uma pietá em contrapicado num traveling em câmara lenta que gira 360º sobre os personagens, tudo acompanhado de uns acordes chorosos e um fogo de artifício brilhantemente artificioso. Para quem nunca viu Blow Out (Blow Out – Explosão, 1981) de Brian De Palma (e para quem não lhe conhece o cinema), poderá pensar que descrevo o desfecho de uma telenovela da TVI – daquelas que ganham prémios no estrangeiro (talvez esteja a esperar demais dessas telenovelas). Mas desengane-se o leitor, o que descrevo é talvez o filme em que De Palma torna o seu cinema mais desavergonhadamente piroso, mas quem me dera ser piroso como De Palma.
Feita a introdução partindo do fim do filme vamos ao início. Logo o título revela as intenções: 15 anos antes Antonioni fizera Blow-up (História de Um Fotógrafo, 1966), um fotografo obcecava com uma fotografia que escondia (?) um crime; 15 anos depois Brian De Palma propõe refazer a mesma trama, só que desta vez, aquele que é o mais visual dos cineastas, vira a coisa para o ouvido. Em vez de fotografo, o nosso protagonista é um técnico de som para filmes série B. Numa noite em que captava sons da natureza, um acidente acontece e o som deste fica retido na fita magnética. Será sobre essa fita que tudo decorrerá. E como acontece nalguns dos melhores filmes de De Palma tudo se constrói à volta do próprio processo da manufactura do cinema. Tendo apenas o som, Travolta precisa de ver o que se passou para o poder mostrar ao mundo, para tal ele tem que construir o filme do acidente. Fotograma a fotograma ele cria a película do desastre (usando as fotografias de uma revista), porque só através do cinema se consegue perceber a realidade (isto já é De Palma nas entrelinhas). Para não me alargar mais – que o formato não permite – deixo as palas, cinco seria abusar da paciência, por isso ficam quatro, que não incomoda ninguém. (RVL)
Bei cing cheng shih (A Cidade da Dor, 1989), vencedor do Leão de Ouro, é um filme sobre uma nação vivida como uma comunidade (no sentido de partilha, de “pôr em comum”) da dor. É também, ou por isso mesmo, uma obra que põe em cheque a falibilidade do conceito de Estado face à expressão cultural e linguística de uma nação ou, como diz (em carta) uma das personagens, da pátria. Porque pátria e nação parecem querer dizer “casa” no cinema de Hou, ao passo que Estado ou lei parece significar opressão e, coisa curiosa, caos. Estado confunde-se com “o processo histórico”, aquilo que devora os laços afectivos e culturais entre as personagens, promovendo a desunião e o desenraizamento. Hou conta a história de como quatro irmãos viram as suas vidas serem transformadas após os acontecimentos dramáticos que antecederam a ida do governo de Chiang-Kai Chek para Taipé. Como já acontecia em Tong nien wang shi (Tempo para Viver e Tempo para Morrer, 1985), o registo é pessoal, quase diarístico, e do que dele retemos é uma visão da história a partir do indivíduo, mas de uma história que – como não acontecia de modo tão flagrante no filme acima citado – envolve num grande turbilhão a vida das pessoas – e é significativo o facto de os irmãos não serem homens da política ou deles não ouvirmos quaisquer grandes perorações sobre a situação da sua Taiwan.
Tony Leung dá rosto à personagem mais bonita do filme: um jovem fotógrafo que é surdo e que, por isso, se “faz ouvir” através de notas escritas num caderno. A sua “comunicação” é traduzida sempre em imagens: sejam os separadores com os magníficos caracteres chineses, sejam as próprias imagens relatadas nessas comunicações, isto é, histórias que são filmadas como que “por trás” dos caracteres. O dispositivo “imita”, em certo sentido, a linguagem do cinema mudo, que – e Hou sabe transmiti-lo como uma evidência – não era mudo coisíssima nenhuma, mas surdo. Se compararmos a personagem de Leung com o amigo da protagonista de Kôhî jikô (Café Lumière, 2003), parece que se fecha um círculo sobre esta magnífica relação imagem-som em Hou: se o primeiro regista a palavra – logo, uma imagem – o segundo regista principalmente sons – de comboios “observados de perto”. E os dois, à sua maneira, expressam modos semelhantes de amar (uma mulher ou um país, qual a diferença mesmo?). É nesta universalidade, tão sentimental quanto política, que se abre a escapatória para a história, esse monstro insaciável que tende a destruir tudo. A todas estas imagens eloquentemente surdas dou três palas de Walsh.
Student (2012) protagoniza mais uma variação sobre o texto clássico de Fiódor Dostoiévski, Crime e Castigo. Como foi devidamente alertado durante a apresentação da sessão, esta não é uma adaptação tout court – como é, por exemplo, o filme homónimo de Josef von Sternberg, protagonizado por Peter Lorre – mas uma “tradução” do drama de Raskólnikov em imagens e sons. Prometia-se uma experiência estética, mas dela não vi nada, na realidade, este é um filme que se não assume a sua fealdade, anda lá perto. Mas, claro que sim, o leitor tem razão: o grande cinema não está dependente das “belas imagens” – por exemplo, Serge Daney detestava-as. Desviado o olho da desinpirada construção visual – com muito daquilo que torna o digital numa espécie de “plastificação” do mundo – restava-me analisar a forma como o cineasta cazaque Darezhan Omirbaiev, que me surpreendera pela positiva há anos com Tueur à gages (Assassin, 1998), ia dar “a volta” ao texto original.
Apesar de continuar a achar fracassado (e as citações bressonianas, demasiado ostensivas, não ajudam), Student traduz/trai de modo curioso um ou dois aspectos do livro de Dostoiévski. O principal prende-se com as “razões” que levam o protagonista a assassinar, a sangue-frio, duas pessoas inocentes. Se o escritor russo põe o seu protagonista a teorizar sobre essa eventualidade, Omirbaiev prefere fazer do estudante um herói quase mudo, de princípio ao fim. Por outro lado, Omirbaiev é bem sucedido a chegar à mesma conclusão de Dostoiévski: a moral da história não é que todo o homicida é inevitavelmente detido e levado à justiça, mas que todo o homicida não escapa ao castigo se houver o elemento da culpa no seu espírito. O estudante age quando a maioria apenas fala e não faz nada, numa sociedade apática assente (como se diz numa aula-comíssio muito bizarra) num modelo darwinista (ou capitalista?) em que vingam sempre os “super-homens” sobre os fracos. Ele agiu, acaba o próprio por se justificar no fim, para fazer a diferença – lamentavelmente, quando se torna retórico, e se dá a descobrir, o estudante/personagem e o estudante/filme perdem todo o interesse. Sobrou-me uma pala de Walsh para ele(s).
Sennen no yuraku (The Millennial Rapture, 2012) ou a maldição dos rapazes de cara bonita. O último filme – mesmo last e, infelizmente, não latest – do prolífico cineasta nipónico Kôji Wakamatsu é uma reflexão em torno de muitos dos temas que perpassam boa parte da sua extensa filmografia. Como referi na minha curta homenagem ao realizador de Yuke yuke nidome no shojo (Vai, Vai Virgem pela Segunda Vez, 1969), tanto essa força destrutiva que é o sexo nos seus filmes como essa espécie de horror (milenar?) à figura da mãe são motivos que Wakamatsu convoca pontualmente nalgumas das suas obras. Neste caso, não estamos na presença de nada parecido com o embrionário pedaço de torture porn intitulado Taiji ga mitsuryô suru toki (O Embrião Caça em Segredo, 1966). Ainda assim, logo a primeira das duas (e meia) histórias sobre esta maldição que corre no sangue de toda uma família “de jovens bonitos”, contadas do ponto de vista da parteira que os viu nascer, coloca precisamente o acento tónico na relação entre o jovem Don Juan e a sua mulher grávida.
Quando nascido, o “amaldiçoado” Hanzo recusa o filho e desinteressa-se de vez pela mulher. A própria relação da parteira com estes jovens marcados pelo destino não é, de modo algum, alheia à ausência de uma verdadeira figura materna. Wakamatsu parece recusá-la até ao fim da sua vida – e daí a sua indisfarçada misoginia? -, continuando (como já sublinhei) a ver o sexo e os corpos, em toda a sua carnalidade, como expressões do Mal (veja-se o dragão flamejante, tentador e letal, tatuado no corpo do “segundo jovem bonito” Miyoshi). The Millennial Rapture não tem nenhuma evidente natureza testamental – Wakamatsu filma convulsivamente, pelo que não deve ter tido tempo para pensar na efemeridade da sua própria condição – mas encerra com dignidade o seu cinema obsessivo e obcecado. Há um certo desleixo formal – talvez uma certa pressa em “terminar mais um filme” – mas a ele dou sem concessões três palas de Walsh, alimentando a esperança de o voltar a encontrar no nosso circuito comercial.
E, de repente, a competição entra “noutro campeonato”, com a apresentação da mais recente obra do cineasta catalão Jaime Rosales. Sueño y silencio (2012) é um filme de quadros cinza, cor de carvão, que fixam na tela (como numa foto… como numa pintura) o momento de colapso de todo um universo sentimental. Uma família espanhola, a viver em Paris, enfrenta o desaparecimento “absurdo” (como se diz a certa altura) da sua filha pequena. O pai perdeu parte da memória – e não se recorda do acidente que o arrancou para sempre dos braços a querida filha, cujo nascimento tinhamo-lo visto recordar com grande emoção – e a mãe tem demasiada memória de tudo – ela é o espelho da revolta silenciosa que deverá envolver cada aspecto da vida de uma mãe que perdeu um filho ou filha. Mas, apesar do drama aqui filmado, não há histerismos, tensões, nem “ajustes de contas”; apenas, na realidade, um longo luto filmado na distância justa pela câmara de Rosales.
Formalmente, o filme é uma proeza. Falei já do preto-e-branco? Bem, não falei, mas também estaria a ser pouco rigoroso se tivesse reduzido a textura e planura cromática dos planos a tal categoria. Na realidade, estamos aqui na presença de uma variante de “preto-e-branco”, diferente da de um Garrel ou de um Serra, muito mais “cinzento e branco” do que intensamente brumoso. Há nestas cores adormecidas, de traço “largo”, um lado pictórico que coincide com o primeiro e o segundo planos do filme – que documentam, precisamente, a acção de um pintor. Para além disso, Rosales segue parte da máxima de Fritz Lang, segundo a qual o scope só serve para filmar cobras ou – e esta é “a parte” – funerais. A longa sequência, filmada num único plano, em que o pequeno caixão da pequena filha do casal é “encerrado” num dos vários buracos daquele cemitério “na vertical” é o ponto mais alto de toda esta experiência estética e humana. Quadro cheio de pequenos quadros que procuram arrumar no seu espaço aquilo que não tem arrumo possível cá fora, na vida de todos aqueles que viram os seus mais queridos desaparecer cedo demais. Falei muito de quadros, mas curiosamente Sueño y silencio é um filme também sobre desenquadramentos sucessivos (por vezes, demasiado “dispersivos”), que só assinalam a importância dada ao espaço vazio na imagem – e, de novo, o scope, tal como Lang (outro mestre “de pala”) o imaginara, produz maravilhas. Três palas de Walsh, com possível reavaliação futura, quando o filme se estrear comercialmente (sim, tem de ser, caras distribuidoras!).
O LEFFest é um sítio onde a homenagem e a retrospectiva é coisa maior, entre Hellmans e De Palmas, Rodrigues e Da Matas e Hous temos uma senhora que só tem três longas e faz figura de proa, Lucrecia Martel. Todos os seus filmes longos estrearam nas nossas salas: La Ciénaga (O Pântano, 2001), La Niña Santa (La Niña Santa — A Rapariga Santa, 2004) e mais recentemente La mujer sin cabeza (A Mulher Sem Cabeça, 2008). Pertence ela a uma nova geração de realizadores argentinos (que o Indie Lisboa homenageou faz alguns anos) onde podemos incluir Pable Trapero, Luis Ortega e com Lisandro Alonso à cabeça. Mas o que me trás aqui não são as longas da realizadora (que muito gosto), mas sim as suas três curtas metragens mais recentes.
É difícil alcançar o que quer que seja em apenas quatro ou cinco minutos, Martel percebeu-o e como tal trabalhou cada um deste pequenos filmes como peças nunca narrativas (não no sentido mais estrito, e muito menos no sentido das suas longas onde o tempo é elemento fundamental), oferecendo-nos Nueva Agriópolis (2010), Pescados (2010) e Muta (2010). Vistas a pequenas peças o que notamos é que preservam um elemento fundamental nos trabalhos de Martel: a água. Note-se, Pescados é uma sinfonia a várias vozes cantada por carpas bojudas, Muta retrata uma série de mulheres/fantasmas/borboletas que surgem num navio de cruzeiro (e por ele esvoaçam) e Nueva Agriópolis (uma espécie de ensaio visual sobre a imigração e a Internet) passa-se quase todo junto à costa nas rondas da polícia costeira. Saliento portanto o rigor da obra de Martel que consegue fazer confluir em tão pequenos pedaços de filme a sua marca autoral mais forte, nunca se desviando desse eixo. Vamos às palas: uma para Nueva Agripólis e duas para Muta e Pescados. (RVL)
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