O Bobo (1987) é um filme-estilhaço. Não um estilhaço de um outro filme, mas sim um filme estilhaçado, todo em pedacinhos. Uma produção que demorou perto de 8 anos, deu origem à primeira obra de ficção de José Álvaro Morais [talvez o leitor se recorde de Peixe Lua (2000) ou Quaresma (2003), os seus dois últimos filmes – os derradeiros], que lhe deu o Leopardo de Ouro. O filme é a adaptação do livro de Alexandre Herculano do mesmo nome, por sua vez, no filme adapta-se o mesmo livro ao palco (que é, nem mais nem menos, o estúdio da Lisboa Filmes). Se o dispositivo do filme dentro do filme, ou melhor, da peça dentro do filme (e o livro dentro da peça e dentro filme) podia levantar confusão no espectador (e isso acontece), Álvaro Morais quer algo ainda mais ambicioso: fazer um filme, que para além de todas as pretensões literárias, quer ser um pensamento (e uma marcação de posição) sobre o cinema português.
A escolha do estúdio onde grande parte das comédias portuguesas do período do Estado Novo foram filmadas não é nada inocente, e não é também inocente colocar a personagem principal a viver no Estoril e a percorrer o caminho entre casa e estúdio todos os dias no mesmo comboio. Os espaços são diferentes e os cinemas também: de um lado, temos o cinema de estúdio (as comédia são referidas levemente) com Oliveira e César Monteiro à cabeça [aliás, usa-se exactamente o mesmo guarda-roupa de Silvestre (1981)], pesado e cheio de referência – filma-se a constituição do estado de Portugal, das lutas políticas e palacianas dos duques e infantes -; do outro lado, temos uma conspiração para o tráfico de armas das brigadas revolucionárias do pós-25 de Abril – foi-se buscar (por coincidência) Raul Solnado que nesse mesmo ano faria de um equivalente investigador em A Balada da Praia dos Cães (1987) de José Fonseca e Costa – muito ao estilo de António-Pedro Vasconcelos e do próprio Fonseca e Costa. O comboio é portanto a ligação simbólica entre estas duas metades que formam o cinema nacional desde a revolução (e ainda temos uns créditos de abertura em preto e branco a fazer lembrar o cinema novo). Por tudo isto digo que O Bobo é um filme-estilhaço, por viver distendido em todos os sentidos, e por tudo isto também lhe dou apenas duas palas (pouco, verdade, mas não consigo distender-me em mais uma).
Acabo de ver o Heaven’s Gate (As Portas do Céu, 1980) e estou profundamente banzado, parece que não consigo escrever sobre mais nada, por isso, começo por esta confissão para tentar acrescentar algo sobre Exodus (1960) de Otto Preminger. Faço a referência porque ambos os filmes se estendem para além das 3 horas e porque ambos são filmes gigantes (cada um à sua maneira). Mas mais que isso, porque ambos são as obras que sucedem outras de grande sucesso, foi The Deer Hunter (O Caçador, 1978) que permitiu que Cimino filmasse com tão grande opulência e foi Anatomy of Murder (Anatomia de Um Crime, 1959) que deixo que Preminger fizesse o filme que agora analiso.
O retrato da odisseia de um grupo de judeus que tentam chegar a Israel podia ser transformado numa história de propaganda semita como Hollywood já antes havia feito – pela mão de Elia Kazan saiu o muito oscarizado Gentleman’s Agreement (A Luz é Para Todos, 1947) na ressaca da guerra e da culpa pelos horrores cometidos pelo nazis e por todos inicialmente tolerados. Porque os anos sobre o horror já eram alguns e porque Preminger não é Kazan, o filme foi outro. Um filme todo filmado on location e que precisa das locations como pão para a boca. Um filme da terra e sobre a terra, literalmente. Mas mais que isso, este é um filme em ecrã largo. Largo para permitir que mais pessoas lá caibam dentro, cada enquadramento é uma cena de grupo, são dezenas os actores e os figurantes, porque se está a falar da peregrinação de um povo, há que filmar povo, muito povo. Preminger, o homem da câmara voadora, filma aqui tudo com profundo respeito; reduz ao mínimo os movimentos, só panorâmicas, sem que com isso se reduza o épico, está lá tudo: filme de prisão, de fuga de prisão, de guerra e de guerrilha, de campo de refugiado, de luta política e de luta concreta. É portanto um filme que sofre do gigantismo e constrói-o por gosto de ser gigante – o que justifica os males que daí possam vir. Três palas para o gigante, que não é nenhum Golias, que esse só tinha um olho e portanto só poderia usar uma pala.
Visto Silvestre (1981) pela primeira vez confessei para com os meus botões que não saberia o que dizer por estas linhas. De vez em quando há filmes assim que nos deixam de tal maneira boquiabertos que depois a boca parece não se querer fechar e de queixo descido nada se consegue dizer. Depois fui ler umas coisas e achei engraçado que também se confessasse o mesmo: no Dicionário do Cinema Português Jorge Leitão Ramos diz Silvestre é um clarão. Como tal, ofuscante; um deslizante labirinto caleidoscópico, disse José Pereira Barros. Mas se de espanto começa a relação com Silvestre, depois tudo evolui para uma análise mais fria: Manuel Cintra Ferreira, na primeira folha que a Cinemateca Portuguesa fez para o filme, vê-o como o elemento final (e portanto o maior) de um primeira fase do trabalho de João César Monteiro, dedicada à interpretação cinematográfica da tradição oral portuguesa, onde Veredas (1978) tomava papel semelhante assim como alguns trabalhos para televisão; Bénard da Costa aproxima-se por outros caminhos e entre outras coisas lembra Sylvia Scarlett (1935) de George Cukor onde Monteiro veio buscar o nome da protagonista (esplendorosa Maria de Medeiros), Sílvia, que vira Silvestre [a história é a de uma menina que vai para a guerra e finge-se de mancebo].
Monteiro pega em dois contos tradicionais portugueses (A Mão do Finado e A Donzela que Foi à Guerra) e o resultado é um filme de estúdio – o mais belo filme português? Muito terá ajudado a fotografia de Acácio de Almeida – na forma de Perceval le Gallois (Parceval, O Gaulês, 1978) de Éric Rohmer. Mas o que acontece é que a imagem é tudo em Silvestre (ou pelo menos é a porta de entrada que se apresenta mais escancarada), é ela que converte as histórias da avozinha, que só a mente de uma criança pode imaginar, em realidade. Mas que realidade? Pois bem, essa que nos faz recuar no tempo às histórias de antes de dormir, que faz renascer em nós a criança pequenina e cândida de outros tempos. Daí que tudo se passe entre cenários pintados e filtros vermelhos e castelos e dragões. No entanto, sendo este um filme de João César Monteiro, terá que haver uma luta entre o sagrado e o profano, entre o puro e o brejeiro; se por um lado temos a linguagem do povo (as tetinhas que se comem à distância) por outro temos Monteverdi, Schubert, Mudarra e Mozart, mas também Uccello. E claro, cinco palas porque mais não posso.
Mas sendo esta uma colecção de filmes sob a memória e a palavra de Daney será incompreensível que não se invoque/evoque a mesma. Sobre Cimino disse: “A ambição de Cimino nunca foi pequena. Dar aos outros e a si próprio o sentimento de tudo começar do zero. Como se o cinema nada tivesse ainda mostrado e como se não se tivesse visto ainda nada. Verdadeira ambição de cineasta“. Nem mais. Um cineasta como Michael Cimino é um que toma o cinema como objecto de refundação (a palavra está na moda) de um pais, de uma nacionalidade. Esta compreensão pessimista da pátria americana valeu-lhe a glória e a desgraça; Heaven’s Gate (As Portas do Céu, 1980) foi a desgraça, custou perto de 45 milhões de dólares e conseguiu apenas 1 em bilheteira. Foi o filme que levou a United Artists à falência e transformou em besta o bestial realizador. Filme truncado pelos estúdios (para tentar minimizar os prejuízos), vê-se agora em versão restaurada e estendida.
Porque o tempo tudo cura, vemos agora a bisarma em estado puro; eu, por nunca ter visto a versão truncada, encaro a obra com olhos igualmente virgens. E mais que os revisionismos do oeste ou a prespectiva negativista, o que me espanta (mais que tudo) neste filme é a sua capacidade de passar do geral ao singular e de fazer o trajecto em sentido contrário, balançando entre o épico histórico e o épico romântico. Cimino percebeu que só se pode filmar o horror (e ele filma-o sem pejo) se podermos primeiro lavar a vista com candura. Para isso veja-se a cena da valsa logo a abrir o filme – alegria a brotar do ecrã a rodos – que faz um raccord simbólico com a batalha final, também ela em constante movimento circular – o horror a rodos. Todo o filme vive nessa corda bamba: a cidade e o comboio com os seus barulhos e fumaradas e confusão (e centenas de figurantes) a par do campo e das montanhas na sua calma bucólica; cada um destes territórios é infectado pelo outro, até que no final já não há terra que valha a James, só o mar o pode ainda acolher. Cinco palas e muitas palmas (há filmes assim, saimos da sala e estranhamos as coisas cá fora, lamentamos que o projector tenha parado e que só nos reste voltar para casa e viver a nossa vida).
Em Lernayin parek (Mountain Patrol, 1964), um grupo de homens, lutando contra a própria gravidade ao longo do desfiladeiro, desfazem em pedaços as pedras que ameaçam bloquear o caminho de ferro. O comboio passa indiferente ao trabalho destes homens dos quais apenas vemos silhuetas e movimentos. Depois, Mardkants yerkire (Earth of People, 1966): os operários, uma médica cirurgiã, o comboio (ainda), todo o tipo de agitação e trabalhos “operam-se a si mesmos e entre si” numa montagem vertoviana, longe do gesto contemplativo à la De Seta do filme anterior. Os dois lados da estética Peleshian estão aqui captados, na sua essência, mas ainda nem vamos a meio do percurso. Mais momentos de suspensão/aceleração, desta vez da história – é a Revolução de Outubro, é a história do povo arménio -, vão elevar as montagens do realizador arménio ao domínio do mais puro lirismo – político? Sim, mas sempre lirismo político antes de uma política lírica.
Perto do fim da primeira parte da sessão-maratona com toda a obra de Peleshian – e acredito que ela deve ser vista assim, para conferirmos a sua monumental coerência estética e humana -, chega-nos um milagre chamado Vremena goda (Seasons of the Year, 1975): de novo, a tal “luta contra a gravidade” levada a cabo por trabalhadores anónimos; de novo, as montanhas, mas desta vez o homem é um pastor e a pedra é uma, duas, três… ovelhas. Os pastores carregam as ovelhas, como Sísifo as pedras, deslizando pelas paisagens mais agrestes, muito literalmente caindo montanha abaixo ou, por acidente, deixando-se levar pela corrente do rio. A montagem, menos sincopada que noutros seus poemas, também se “verticaliza” mais (usando eu aqui um termo de Maya Deren), pondo au ralenti os instantes dessa fusão singular entre o homem e a paisagem e, com isso, expondo a natureza ambivalente de todas as coisas – vivas e não vivas, pedras e homens, ovelhas e água.
A odisseia continua e projecta-nos nos ares como no espaço em Mer dare (Our Century, 1983). Se antes eram comboios, agora são aviões e foguetões – Peleshian atira-nos para a estratosfera, documentando o Progresso humano, a sua “guerra das estrelas”, como uma grande re-ligião do sacrifício. Avançamos mais e chegamos ao fim com o penúltimo filme de Peleshian, Kyanq (Life, 1993), que – não podia ser mais significativo – nos mostra um nascimento e que – idem – parece rejeitar a montagem. Numa série de planos mais longos do que é habitual no seu cinema, o realizador arménio filma uma mulher a dar à luz. É assim que acaba esta maratona: com o nascimento de uma criança, em quase total libertação da ideia de montagem – é o corte com o cordão umbilical da sua arte-ofício? Abstracto e concreto como a luz ao fundo de túnel que vimos em Verj (End, 1994), (eventual) derradeiro plano da vida deste realizador sobre o qual um dia Daney escreveu: “Tenho de repente o sentimento (agradável) de me encontrar frente a um elo em falta na verdadeira História do cinema”. Cinco palas de Walsh – como se fossem suficientes… – para toda a obra de Peleshian. (LM)
“A Herança de Serge Daney”. Encontro de luxo? Sim, mas antes de tudo foi um encontro com pessoas de luxo: Serge Toubiana (director da Cinemateca Francesa), Pascal Bonitzer (conhecido argumentista de, entre outros cineastas, Jacques Rivette e grande teórico do cinema com várias obras publicadas), Emmanuel Burdeau (ex-director dos Cahiers du cinéma, colaborador da revista, fundada por Daney, Trafic e crítico de cinema para outras tantas publicações), Philippe Azoury (crítico do Libération, bem como autor de várias obras sobre cinema) e, no lugar do previsto Bill Khron, o realizador egípcio Yousry Nasrallah. Todos eles, incluindo o moderador Paulo Branco – que chegou mesmo a falar de uma “consciência Daney” que tem servido de referência à sua actividade como produtor mas também como director deste festival – , tiveram algum tipo de contacto com a obra e a pessoa que foi Serge Daney. O registo informal da conversa levou a que não se aprofundasse a substância do seu pensamento, mas foi com grande satisfação que tirei algumas notas.
Na sequência da exposição introdutória de Paulo Branco, Serge Toubiana iniciou a sua intervenção no debate salientando o contributo de Daney para “pôr o cinema português no mapa”. Referiu ainda – algo que não é novo para quem já leu o livro/entrevista póstumo/póstuma da sua autoria, Persévérance – a exigência e o espírito fraterno do crítico, que, na realidade, terá sido um escritor, mas um escritor não “sistematizado”, alguém com demasiada energia (talvez) para produzir um livro… – daí a sua fraca penetrabilidade na Academia? Pascal Bonitzer pegou nesta ideia, mas adoptou um registo mais pessoal quando confidenciou as divergências que teve com Daney no período convulso durante o qual este foi redactor-chefe dos Cahiers du cinéma – os míticos Cahiers Mao dos anos 70.
O cineasta egípcio relembrou um texto que Daney escreveu em defesa de Youssef Chahine, sublinhando a forma como sempre se conseguiu “meter no lugar do cineasta”. Referiu algo que considero muito importante para se compreender o alcance da obra do francês: Daney não era um “crítico” sectário, não escrevia para afirmar/formar/deformar gostos; não sendo um “teórico”, ele produzia pensamento vivo e vivificante sobre os filmes e os seus cineastas. Azoury falou dos seus textos como fontes de energia intelectual e Burdeau citou, para meu regozijo pessoal, um dos textos mais geniais do crítico, que a mim me parece pouco recordado e estudado: “Por uma cine-demografia”. Leia-o aqui em inglês (para quando a edição dos seus textos em português?*) em jeito de amostra e como pre-texto para a descoberta da sua fascinante obra, homenageada em grande estilo nesta edição do LEFFest. Uma salva de pal(m)as! (LM)
* – No final do debate, foram distribuídos aos presentes um livrete com alguns textos – nomeadamente sobre alguns dos filmes que aqui analisamos – de Serge Daney em versão bilingue, francesa e portuguesa. A edição deve ser limitada mas poderão ainda obter um exemplar entrando em contacto com o Espaço Nimas: 21 314 30 22. Estou sim?