Low Tide (2012), por muito interessante que seja – e é, mas já lá vou -, não aparece do nada, na realidade, também não me parece que cometa a ousadia de achar que lança algo de novo. Pensar este primeiro tomo de uma trilogia sobre o Texas, que o realizador italiano Roberto Minervini diz estar em fase de preparação, fora das actuais coordenadas da produção independente norte-americana será meio caminho andado para se ver nele um grande filme que não é – e que nem sei se quer ser. Na linha dos trabalhos que têm sido desenvolvidos por cineastas como Ramin Bahrani, Lance Hammer ou mesmo o David Gordon Green dos primeiros tempos, entre outros nomes citáveis aqui, Minarvini fala de pessoas e da sua situação, nada lhe interessa para lá delas; apresenta-se, para mais, como um estudioso da solidão humana, do desamparo afectivo e da desagregação familiar. A proposta é discreta, reduzida a um gesto de cinema quase invisível, mas – é preciso dizê-lo – os riscos de cair nas fórmulas já instituídas pelo cinema indie norte-americano de cariz social (ou o neo-neo-realismo…) eram elevados.
O espectador mais ciente de onde e para onde pode ir Low Tide será aquele mais preparado para lhe fazer a devida justiça, sabendo, por exemplo, manter “pequeno” e discreto um filme “pequeno” e discreto. Sem se fazer grandes ondas – e o título diz tudo: maré-baixa -, a visita deve ser aproveitada: hora e meia em que assistismos ao “existir” de duas pessoas, uma mãe e um filho, que (como bem disse Francisco Ferreira na apresentação) vivem vidas paralelas debaixo do mesmo tecto. Em registo semi-documental, à la irmãos Maysles, procuramos atentar às microscópicas cambiantes de uma relação posta em claro desde a imagem da criança a tirar do chão, para pôr no lixo, um preservativo usado pela mãe (que ainda não vimos). Minarvini não repete, não se repete, mas filma a repetição, a passagem do tempo e a ausência de mudança nos comportamentos. Depois, perto do fim, surpreende-nos com um “milagre”, um espaço para redenção sem pingo de sentimentalismo – um abraço entre mãe e filho trazido pelas ondas e pelo ar puro da praia. Não é um cineasta qualquer que consegue produzir esse momento e, por isso, Low Tide merece aqui três palas de Walsh.
Mas que paixão é esta afinal, a de Brian De Palma, que abre com o símbolo da tentação (a maçã) agora vertido em símbolo tecnológico (a maçã de Steve Jobs)? À estranheza de uma co-produção franco-alemã e a um remake de uma obra de 2010 de Alain Corneau (Crime D’Amour), junta-se a familiaridade da emulação hithcockiana (Dial M For Murder, Frenzy) e da sua própria referencialidade (Sisters, Dressed To Kill). Sob um pano de fundo de um mundo corporativo de executivas “modelo” louras e morenas (outra referência: Mulholland Drive), De Palma parece apaixonar-se pelo universo da manipulação psíquica e neurótica da mulher inocente pela mulher sofisticada. Nessa obsessão pelo jogo e pela ambiência há um caminho que parece ser o de descarnar o tecido da verosimilhança e da construção psicológica das personagens ao ponto do niilismo narrativo. Passion (2012) acaba assim por trair-se pelo seu próprio mecanismo: não há manipulação obsessiva nem paixão porque não há objecto.
Mesmo tendo em conta que De Palma nunca foi um mestre da densidade dramática, esse vazio que se sente no filme e que é preenchido pelas cores, pelas interpretações maneiristas ganha apenas um peso abstracto. São os executivos que se filmam, que se correspondem por email, que se beijam sem nenhuma intencionalidade especial. E aqui reside a verdadeira dimensão de falhanço, é que o sacrifício do universo de Passion a um estilo, a uma referência (a segunda metade do filme) acaba por pôr em evidência elementos “poluidores” de produção que se agigantam. O baton, a máscara, o enviesado da transferência psicanalítica cedem ante um superficialismo, que contrariamente ao que se possa pensar de um cineasta da envergadura de De Palma, contém traços de inocência. Passion é assim um dos mais fracos filmes do realizador onde o alemão que se fala, a embriaguez do macho alfa de serviço mostram esses banais valores da sua produção, ao invés do que muitos nele querem ver: um monumento despojado à abstração e à depuração de um estilo. Portanto, uma pala para Passion e, se possível, tapar com a mão o outro olho. (CN)
Já não sei ao certo onde li – penso que foi num livro de Benjamin – a história de um bom amigo que antes de se lançar à leitura de certas obras fazia questão de compor a gravata. Para o visionamento do primeiro filme do sueco Axel Petersén sugiro aos cavalheiros que dêem uso às vossas melhores calças, ao casaco mais caro e à gravata – não, usem antes laço – com mais estilo. Isto porque, se o virem, irão, de uma maneira ou outra, ser “cúmplices” – atenção que o termo é (demasiado) exacto – da abertura de uma nova discoteca de luxo, Avalon de seu nome. Inauguração que será também o seu fim. (Inauguração que marca outrossim o desfecho – e com chave de ouro – da competição oficial deste LEFFest 2012.) O nome deste espaço de “prazer, negócios e política” – mais in que a palavra in – situado numa luxuosíssima ilha sueca vem de uma música dos Roxy Music que começa assim: “now the party is over”. Naquela que deve ser a sequência mais brilhante que vi neste festival, o protagonista dança sozinho ao som deste tema, que fere de morte a própria ideia de começo: começar com um “a festa acabou” é, de facto, coisa de Avalon (2012), o filme.
A tentação será associar a atmosfera pesada deste filme a um Festen (A Festa, 1998) de Thomas Vinterberg, mas a tentação terá de se ficar por aqui, já que o filme de Petersén é “caviar para os olhos” graças a um excelente trabalho de fotografia. A câmara colada aos corpos e aos rostos envelhecidas de personagens grotescamente ricas abre alas à desmontagem do cinismo, aberração moral e arrogância de quem se julga, pelo seu status social, acima de todas as leis, acima de todos os homens. É notável a forma como Petersén capta o desmoronamento do projecto da discoteca Avalon mas também da vida dos seus principais “investidores”, sabendo condimentar o retrato mordaz “de classe” com a real situação – “a culpa”, por assim dizer – dos seus protagonistas. Um “crime e castigo” sem projecto filosófico, fútil como a riqueza obscena dos seus “jet-setters com sangue nas mãos”, mas que aponta para o mesmo esvaziamento moral que, também em competição, Omirbaiev já tentara – mas sem sucesso – dissecar no seu Student. Um achado que vale quatro palas de Walsh.
Os problemas dessa relação quase incestuosa entre o teatro e o cinema foram alvo de inúmeras análises e críticas ao longo da história da teoria do cinema, desde Bazin até Aumont, passando por Metz. Era este último que, inspirado, referia que se o teatro subtraía mundo ao mundo, numa espécie de luta contra o real “a partir do real”, o cinema acrescentava mundo ao mundo, numa espécie de luta “pelo real”. O que se passa nos últimos filmes de Resnais – sobretudo em Coeurs (Corações, 2006) e neste Vous n’avez encore rien vu (2012) – é que o seu cinema feito teatro tem-se tornado, perigosamente, num teatro feito cinema. Isto é, criando uma lógica de dispositivos dentro de dispositivos, de desmascaramento do lado fictício, encenado, “de estúdio”, da realidade representada no grande ecrã, Resnais procura um cinema que se desmultiplica em ilusões, numa teia de soluções visuais que nem sempre facilitam o acesso – tão pretendido num cinema cada vez mais “de actores” – às personagens.
O que senti muito aqui é a dimensão do texto, ao passo que, por exemplo, em Les herbes folles (Ervas Daninhas, 2009) e (menos) em Coeurs eram as situações e os protagonistas que estavam, por assim dizer, no olho da tempestade. Adaptando de uma vez só duas peças de Jean Anouilh, não haja dúvida que há muito trabalho de escrita atrás das câmaras e de in-scrição à frente delas através das interpretações “na primeira pessoa” dos actores (todos eles fazem, de algum modo, de si mesmos) mas, de um ponto de vista estritamente fílmico, é evidente uma certa repetição enjoativa de ideias, mesmo quando o split screen se reinventa à nossa frente na medida dos acontecimentos da peça. Não há uma história, mas, na realidade, três histórias: a peça que se encena à frente dos actores e aquela que estes, como num espelho, recriam no espaço… do cinema? E a pequena anedota – pouco trabalhada, por sinal – em torno de um encenador que, além-vida, convoca no seu “castelo” todos os actores que interpretaram a peça Eurydice sob a sua direcção. Muitas vezes, Vous n’aves encore rien vu aborrece-nos como um teatro feito cinema, outras vezes (pontuais, no entanto), arrebata-nos – graças aos actores e ao texto – com momentos em que é o cinema que se mascara de teatro para desmascarar, enfim, a outra ilusão… É confuso? Sim, mas não o suficiente para impedir uma ida ao cinema – sobretudo para os fãs dos últimos filmes do histórico realizador francês. Não fazendo eu parte deste clube, ofereço-lhe apenas duas das melhores palas de Walsh que aqui trago.
Com este Hou encerro a minha descoberta pessoal da obra deste magnífico cineasta, que mereceu uma muito necessitada retrospectiva ao longo dos 9 dias de LEFFest. O muito aplaudido Xi meng ren sheng (O Mestre de Marionetas, 1993) marca uma diferença muito significativa em relação aos seus outros filmes sobre a história de Taiwan, desde logo, porque os acontecimentos “reconstituídos” são cronologicamente anteriores ao próprio nascimento de Hou. Se antes víramos Hou a usar a história como pretexto para “revivenciar” as suas memórias de criança e adolescente ou a usar essas memórias como pretexto para mostrar a sucessão de eventos que marcaram a história de Taiwan no século XX, agora, para recuar no tempo, Hou recorre ao testemunho de um velho “mestre de marionetas”. Assim, como manda a práxis de Hou, a História continua a ser contada a partir da história do indivíduo. Na realidade, ao estar fora dela, Hou vai pessoalizar/fulanizar ainda mais o seu cinema.
A própria natureza documental, consubstanciada nos momentos de entrevista ao velho mestre, encaminha O Mestre de Marionetas para uma muito moderna fusão entre o real (o mestre no presente), a biografia (os seus relatos reportados a um passado já remoto, inatingível para o realizador sem ser “por livros”) e a reconstituição histórica (a Taiwan sob a administração do império japonês, com especial enfoque dado ao período turbulento da II Grande Guerra). Por outro lado, Hou acentua o lado elíptico da diegese, por vezes ao ponto de sacrificar à vertente “reconstituída” momentos que terão sido decisivos na vida do dito manipulador de marionetas, como, por exemplo, a descoberta do gosto por este teatro em miniatura ou a relação daquele com o seu primeiro “professor”. Hou parece, aliás, demasiado preocupado em fugir à lógica da “história de vida” televisiva, ao ponto de nalguns instantes “mostrar” e só depois contextualizar através de excertos da entrevista – uma espécie de dessincronização diegética que nem sempre resulta, sobretudo quando o que é mostrado são “recortes” da vida íntima do protagonista, cuja apreensão, desse modo, se retarda… Por tudo isto, e sem deixar de sublinhar a beleza geral desta experiência, despeço-me de Hou neste LEFFest confiando-lhe mais três palas de Walsh.
(Informe-se convenientemente sobre a obra de Hou Hsiao-Hsien lendo este texto da Helena Ferreira publicado no site do Ípsilon no passado dia 9.)
Nota: para nossa grande decepção, a sessão do muito aguardado novo filme de Hong Sang-Soo In Another Country foi cancelada. Aguardamos notícias sobre a possibilidade de se vir a exibir este filme em circuito comercial.