O título deste filme de Hou Hsiao-Hsien pode ser enganador para o cinéfilo mais inveterado, já que lembra o do magnífico melodrama da II Guerra Mundial A Time to Love and a Time to Die (Tempo para Amar e Tempo para Morrer, 1958) de Douglas Sirk, obra baseada num romance de Erich Maria Remarque que – como notava, aliás, o crítico de cinema Jean-Luc Godard – transformava o “to live” do título desse livro em “to love”. Hou fala de viver e de morrer no título, fala da sua infância e adolescência em Taiwan, com a guerra pela independência [por favor, leia a caixa de comentários] como pano de fundo – dados que nos chegam pela rádio ou através das conversas entre crianças ou adultos na rua. Fala disso tudo, mas, no fundo, caminha na direcção dessa “correcção” realizada por Sirk no título do seu filme: é o amor, do próprio Hou pelo seu pai, pela sua mãe e pela sua avó, que enforma a narrativa de Tong nien wang shi (Tempo para Viver e Tempo para Morrer, 1985).
Contudo, como tem de “fazer lei” no cinema de um dos principais seguidores de Yasujiro Ozu, a morte ou o luto promovem rituais de afecto e união familiar, aqueles que no decurso da vida vão merecendo pouco ou nenhum espaço. A sequência final é ilustrativa deste “encontro na morte” com as memórias que são puro amor: o falecimento da avó – personagem que parece sair de Tôkyô monogatari (Viagem a Tóquio, 1953) – desperta no protagonista-alter-ego-do-realizador a rememoração de um “padaço da sua vida” que, no começo deste filme com quase três horas de duração, também nós, espectadores, experienciámos com o desprendimento característico de qualquer vivência do/no presente. Aquele momento – recordação da brincadeira com as goiabas no templo chinês – transmuta-se à nossa frente, como testemunho de um vínculo inefável – maior que a vida? Não, maior que a morte! – entre avó e neto. Exemplo da magnanimidade dos sentimentos no momento da perda. Também por ele, ofereço, com o coração todo, quatro palas de Walsh a este filme de Hou.
Em 1971, saíram dois road movies que vinham sentir o pulso à sociedade americana e afirmar, na paisagem (em reconfiguração) do cinema norte-americano, os nomes de dois jovens realizadores: Vanishing Point (Corrida Contra o Destino, 1971) de Richard C. Sarafian e Two-Lane Blacktop (A Estrada Não Tem Fim, 1971) de Monte Hellman. É notável a forma como os dois parecem “guiar lado-a-lado” no sentido de um precipício moral no qual ameaça cair todo um país, toda uma geração “sem rumo”. A nota comum é o tom pessimista que impregna estas duas “viagens”, tom esse que é traduzido na solidão da “soul mobile” do filme de Sarafian e na “incomunicabilidade” entre as personagens no filme de Hellman. De qualquer modo, e desfazendo já possíveis equívocos, estamos aqui muito longe de filmes de corridas ou para “tarados” por carros. Hellman, desvinculando-se já do registo algo naive do “padrinho” Roger Corman, monta um filme que lança à estrada, sobre quatro rodas, o espírito (quebrado) de toda uma nação.
Quem conduz dirige-se para um futuro no qual os “condutores” depositam pouca fé – veja-se como a grande corrida/meta é sempre secundarizada, leia-se, “desdramatizada” por uma tentativa, que sai invariavelmente gorada, de “criar laços” durante o percurso mesmo entre contendores. Os carros, nos seus diferentes modelos e potências, são pretextos para se falar de vidas que caminham, de facto, numa estrada para nenhures. Aliás, Two-Lane Blacktop oferece, sob a forma de um suicídio que rima com o de Vanishing Point, um lado para ir que em Road to Nowhere (Estrada para Nenhures, 2010) aparece abstractizado pela própria “fuga ao filme”. Mas mesmo neste ponto não haja dúvidas que este filme, ainda que menos alinhado com o espírito dos tempos, prolonga a estrada que se abre no fim de Two-Lane Blacktop: uma (simulada) extinção não na mas da própria imagem, materialização/desmaterialização de todos os sonhos = ilusões (= amores) do protagonista silenciosamente suicidário. A morte parece que se vai saldar “além-ecrã”, onde o cinema já não consegue chegar – não tem potência para tanto, talvez. Filme de alta-cilindrada, robusto e muito cool, que merece quatro palas em cinco.
Na introdução a esta primeira obra de Brandon Cronenberg, era pedida “justiça” a avaliar as virtudes e defeitos desta sua primeira obra. Parece que para se ser justo com o “talento” de Cronenberg júnior, teremos de fazer de Cronenberg sénior o grande presente ausente desta análise. Lamento, mas seria demasiado cínico da minha parte enveredar por esse caminho, até porque, na minha modesta opinião, injusto é não pôr no seu devido lugar um filmeco cheio de bestiais ideias – que gritam “génio!” em cada instante – e com nenhuma capacidade de concretização. A fórmula está visível, logo à superfície: Antiviral (2012) é um filme que é uma evidente homenagem às obras que David Cronenberg realizou nos anos 70/80 [como Rabid (Coma Profundo, 1977) ou Videodrome (Experiência Alucinante, 1983)] cruzada com uma mais subtil piscadela de olho a um The Addiction (Os Viciosos, 1995) de Ferrara ou, pela sua estética “clínica” e pelo labirinto mental que convoca, ao mais recente Primer (2004) de Shane Carruth, um realizador hoje eclipsado que se calhar teve a infelicidade de não ter sobre si a asa de um pai influente.
Socorrendo-se do género (caro ao pai) da distopia sci-fi, Brandon parece querer problematizar as questões do corpo e da tecnologia ao levar à literalidade a “adição” das suas personagens “zombificadas” pelo culto ao mundo puramente mediático/vicário das celebridades. Com efeito, fala-se muito no filme, mas do filme propriamente dito resulta a sensação de que por trás do muito paleio está apenas um menino mimado a lançar ideias sem substância, na esperança de que estas, todas juntas, façam erguer um grande tratado filosófico sobre os terríveis vícios dos nossos tempos. O resultado desta brincadeira cara é um filme intragável que padece de uma doença grave: aquele pretensiosismo inconsciente – já de si com tiques de “superstar”… exacto, aqui, por sinal, vítima de si mesmo… – que faz certos cineastas pensarem que o espectador é um animal que engole todo o tipo de disparates “injectados” cena sim, cena não. O cinema não se vê “por favor” e não se pode fazer “por capricho”, logo, não ofereço qualquer pala a este filme, deixando ao vírus a tarefa de acabar o quando antes com o fraco organismo.
Después de Lucía (2012) era o filme que mais prometia de toda a competição do festival, desde logo, por ter sido o vencedor da cada vez mais competitiva secção Un Certain Regard de Cannes. Este é um daqueles filmes que dificilmente é enquadrável por qualquer análise que não seja feita do ponto de vista de quem o vê; é uma obra que, pela sua dureza extrema, a sua violência psicológica gerida com a precisão de um sádico, faz de mim, deste lado de cá, uma vítima igual às outras que estiveram comigo na sessão. O filme é uma espécie de Bully (Bully – Estranhas Amizades, 2001) mexicano, filmado sem a aspereza da câmara de Larry Clark – talvez, neste aspecto, estará mais próximo temática e formalmente de Afterschool (Depois das Aulas, 2008) – e oscilando entre o universo dos adultos e dos adolescentes, no caso, entre pai e filha – os dois em processo de adaptação à sua nova vida depois da trágica morte de Lucia, mulher e mãe. Esta segunda longa-metragem de Michel Franco estabelece com o espectador um regime de cativeiro absoluto, sujeitando-o a um acumular de situações-limite vividas pelos protagonistas, ora o pai (enfrentando a morte da mulher à distância tal como um novo emprego no qual não se consegue concentrar) ora a filha adolescente (uma rapariga muito bonita, na flor da idade, que quer ajudar o pai e dar-se bem com os seus colegas da nova escola).
O que Franco faz é envolver o espectador num drama – o do pai – para, depois, saltar para um muito pior – o da filha. A via sacra por que passa a filha, depois de exposta ao vexame de ver um momento de intimidade com um rapaz a circular num vídeo pela net – lembra o caso recente do suicídio da jovem de 15 anos Amanda depois de ter sido vítima de “cyberbullying” -, é o segundo momento de tortura psicológica, mas não é o último ou o principal: a vingança que se segue é a gota que faz transbordar a água do copo da nossa paciência de espectadores solícitos. O que se passa nos instantes finais de Después de Lucía é um exercício chocante de poder por parte do realizador sobre o seu auditório, porque só o cineasta sabe se quererá ou não frustrar o tradicional last-minute rescue – aquele que, com uma “aparição” ou um telefonema, resolva o conflito que naquele momento se trava e que ameaça enviar o filme para o abismo. Franco quis destruir por completo qualquer “salvação de último momento”, adestrando o espectador com uma trela e um chicote até se tornarem claras as suas intenções – ele, o espectador, é levado ao limite e confundirá o efeito-choque com algo de significativo ou, pelo menos, com algo mais que, precisamente, um choque muito conscientemente administrado. Por tudo isto, dou-lhe não mais que uma pala de Walsh, muito por causa da bonita Teresa Ia, que dá corpo e rosto (muito bem, aliás) à rapariga abusada. Mas quem é responsável pelo espectador abusado? O muito esperto Michel Franco, atrás das câmaras.
“La beauté du geste” é a motivação de Monsieur Oscar, protagonista do novo filme de Leos Carax, Holy Motors (2012). Sai de madrugada numa limousine e passa todo o seu dia entre compromissos que o fazem encarnar os mais díspares papéis: um pai de família, um assassino, um mendigo e por aí… E nessas vidas em que se salta, Carax aproveita para abrir a potencialidade dos géneros cinematográficos. A questão é que, como também se diz perto do final, já ninguém quer máquinas visíveis e nessa passagem à invisibilidade não há câmaras que denunciem a fictio, que mostrem que os “motores da acção” rolam em seco. Num tempo de futuro sem marcas de um qualquer futurismo, o filme, até pelas limousines, parece ter algo a ver com Cosmopolis (2012) de Cronenberg nessa forma de querer encapsular réstias de uma humanidade de uma personagem em constant motion por um presente que não corresponde àquilo que quer. A beleza do gesto parece estar em decadência para Monsier Oscar (a incrível presença de Denis Lavant) que se sente cansado, fuma constantemente, não come, havendo nele um lado de “palhaço necessariamente feliz”, atormentado como Conrad Veidt em The Man Who Laughs (O Homem que Ri, 1928) de Paul Leni. Não há que negar que Carax é um metteur em scène da sedução e do empenho na construção de imagens que ficam na retina.
Muitos chamarão a Holy Motors o filme visionário do ano, disso não parece haver grandes dúvidas. A minha desconfiança prende-se sobretudo com a forma com Carax tricota os gestos, a beleza e inexplicabilidade que naturalmente são valores que se impõem. Quer dizer, há um lado de desafio ao espectador no sentido de o pôr a questionar concepções de causalidade e acção, da vida como teatro constante, da libertação pelo absurdo, etc, etc. Contudo, sentimos que em Carax a pincelada vai sempre à frente da proposta artística ainda que depois se venha falando em Caché (Nada a Esconder, 2005) de Michael Haneke, no digital como “inimigo”, ou no artista a pôr a beleza do mundo à prova ante um espectador contemporâneo, em falência, desacreditado. Tudo permanece mais pacífico se nos mantivermos ao potencial de Holy Motors a retocar o absurdo dos Ionescos ou Jarrys agora com uma força sugestiva de uma arte em “decadência”. Esqueçamos o visionarismo e fiquemos com as imagens. E estas têm momentos esplendorosos e outras de mera excitação retiniana. (Ao que parece, o Luís está a dar palas, por isso para o último Carax são duas). (CN)