Há tarefas muito complicadas, quando não mesmo impossíveis. Abordar um filme perfeito, mais, um filme que se ama é uma delas. O que acrescentar ao que foi tão bem escrito por outros (lembro a folha da Cinemateca de João Bénard da Costa, que infelizmente não encontro na internet para linkar nem tenho espaço para transcrever)? Como analisar o objecto de tanto amor (que consagra ele mesmo a ideia definitiva de amor)? Como fugir a contextualizações desnecessárias, como deixar de referir que Les parapluies de Cherbourg (Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, 1964) é um musical inteiramente cantado (mesmo nos diálogos mais banais)? (Bom, esta última já está mas não deveria ser preciso escrever isto, pois não? Toda a gente deveria já ter visto o filme e estar cansada de saber quem assim é, que é como quem diz: “vejam o filme, pel’amor de Deus, é um favor que fazem a vós próprios.”)
Não podendo fugir com o rabo à seringa e apenas escrever esta introdução e não querendo perder-me a enumerar as qualidades de Les parapluies de Cherbourg — a mise-en-musique de Michel Legrand; a notável montagem ao som das canções que se entrelaçam (e cada personagem tem direito ao seu tema); a câmara que dança de contentamento (a herança de Max Ophüls); as cores tão vivas daquela cidade portuária de fantasia; a esperança de Guy que, na ressaca, vira raiva; o génio de um homem que sabia que tanto se morre de amor no cinema como na vida (ou, pelo menos, que alguém pode ser enterrado numa “vida normal”: a marcha nupcial de Geneviève é música de funeral), Jacques Demy de seu nome… E já me vou perdendo na enumeração, uma traição: não se esmiuça o amor, sob o risco de, asfixiado pela razão, tudo perder. E nunca se é muito jovem para se estragar a vida. Veja-se o caso de Geneviève e Guy.
Pode acusar-se Madame Emery, mãe de Geneviève e vendedora dos protectores guarda-chuvas, de ter, com os seus os ajuizados conselhos, ajudado à desgraça da filha. É mais fácil do que apontar o dedo à própria Geneviève, tão jovem e inexperiente, por não ter aguentado a ausência de Guy (um rosto que se apaga da memória e só se reconhece na/da fotografia). Embora as maiores culpas sejam dela: em apenas três meses esqueceu a promessa feita numa estação de comboios (e a canção mais triste e bela do mundo — ouça-se a versão dos Walker Brothers) e sagazmente deitou mão a um óptimo partido. Coitado de Guy, ao voltar da Guerra da Argélia, depois de saber as notícias: para além de coxo, ficou desesperado, alcoólico, amargurado, perdido no meio de putas e marinheiros. Safou-o a carinhosa (e caridosa) Madeleine.
Por falar em Madeleine, algumas palavras para ela e Roland Cassard [ferido por outra mulher noutro filme de Demy, Lola (Lola, 1961)]. Quando se vê pelas primeiras vezes Les parapluies de Cherbourg (que se deve ver incontáveis vezes), não se gosta muito deles, provocam uma certa irritação, olha-se para eles como pobres segundas escolhas (personagens secundaríssimas daquele grande amor), até como entraves à ventura do casal principal. No entanto, são os verdadeiros heróis do filmes, os apaixonados que souberam esperar ou ultrapassar todos os inconvenientes, que tiveram força para amar até ao fim, para lá de todas as razões. Os únicos que souberam conquistar a felicidade.
Para provar que a vida continua depois da morte (e que nada é tão triste e arrasador quanto isso), existe aquela última cena magistral, quando assenta o Inverno, que já nada deixa florescer, e tudo se cobre de neve, correspondendo à brancura daquela estação de serviço. Os dois amantes reencontram-se, seis anos depois da despedida nos comboios, pela primeira vez. Desapaixonadamente, cordialmente, anteciosamente. Penosamente. Trocam palavras de circunstância, sombras daquilo que foram. Depois, despedem-se para não mais se verem. É a cena mais dolorosa do cinema. No mais belo dos filmes.
Eu avisei que ia ser muito complicado.
Les parapluies de Cherbourg passa dia 15 de Novembro, quinta-feira, às 21:45 na Casa das Artes de Famalicão. Uma proposta do Cineclube de Joane.
4 Comentários
É um dos meus filmes preferidos
Gostei do filme que vi no seu tempo. Música que não se esquece, história que nos prende. E por fim, como era bela a Catherine Deneuve!
[…] Neste tipo de textos, em que se escreve sobre algo tão belo (irei abusar do adjectivo, por necessidade absoluta), já se sabe que analisar o objecto dá a impressão de traição. Por exemplo, referir que Le plaisir adapta três contos de Guy de Maupassant (e está, portanto, dividido em três episódios) – Le Masque, La Maison Tellier e Le Modèle – ou que Max Ophüls tinha uma predilecção pelo período compreendido entre finais do século XIX e inícios do século XX (até à Primeira Guerra) soa a trivialidade, a curiosidade. E, no entanto, é essencial à sua obra. Assim como seria imperdoável não aludir ao travelling, a pincelada preferida deste “impressionista”, o efeito feérico que deslumbra o espectador e o mantém à ilharga dos acontecimentos (vejam-se todas as cenas no bordel), ou como Ophüls consegue a máxima profundidade na aparência de superficialidade; toda a natureza humana espelhada num embrulho lustroso. […]
Filme muito bonito e realista, mexe connosco a parte final do filme, durante o mesmo não estamos à espera de um final assim. Se fosse norte-Americano, o final seria diferente, o desenrolar do próprio filme seria diferente e tudo terminaria num happy-end, ainda para mais tratando-se de um musical. Não é que o filme “acabe mal”. Ele acaba… como tem que acabar. 9/10.