A programação de este ano do Lisbon & Estoril Film Festival (LEFFest) é, na minha opinião, ainda mais ambiciosa do que costuma ser, o que quer dizer que tem tudo para ser, ao mesmo tempo, o melhor sonho e o pior pesadelo do bom cinéfilo. Seguramente, este poderá apanhar alguns dos nomes maiores do cinema internacional, mas, porque nem tudo são rosas, para apanhar os ídolos da sua vida, terá provavelmente de sacrificar o culto aos “deuses menores”. Com efeito, esta edição do LEFFest tem tudo para ser uma grande e variada celebração do cinema, distribuída por centenas de exibições de filmes, apresentações e debates com gente importante vinda de cada canto do globo, muita coisa – demasiada coisa? – boa que procuro antever, em escolhas muito – demasiado? – subjectivas, aqui e agora.
Para o leitor organizar as suas prioridades, precisará de muito literalmente pegar numa caneta e apontar dia-a-dia, secção a secção, o que não pode perder por nada deste mundo: seja o filme recente que dificilmente voltará a ver em sala – e não se fie em demasia no gosto e sentido de oportunidade da maioria das distribuidoras nacionais -, seja a personalidade que anseia ver ao vivo e a cores que marcará presença num dos debates ou apresentações, seja a oportunidade de visitar, pela primeira vez em sala, toda uma “obra feita” ou um clássico intemporal que significará, sem margem para dúvidas, dinheiro bem investido e tempo de vida muito bem gasto.
O que proponho nestas linhas é procurar responder abreviadamente a cada um destes três parâmetros de selecção. Começando pelo princípio, e atacando já o grupo de filmes que decerto terá poucas hipóteses de voltar a ser mostrado no nosso país, destacaria, antes de mais e jogando um pouco pelo seguro, dois títulos presentes na competição oficial do festival: Student (2012) de Darezhan Omirbaiev e Sueño y silencio (2012) de Jaime Rosales. O mais recente filme de Omirbaiev esteve no Un Certain Regard da última edição do Festival de Cannes, subsecção competitiva que o cineasta cazaque havia vencido em 1998 com o seu muito interessante Tueur à gages (Assassin, 1998). Student parece seguir o mesmo tipo de intriga e ambiência, nem que seja por propôr uma releitura “moderna” do clássico de Fiódor Dostoiévski Crime e Castigo. Jaime Rosales é um cineasta catalão que tem coleccionado prémios e elogios por todo o mundo desde a sua primeira longa-metragem, Las horas del día (2003), filme vencedor do prémio FIPRESCI no festival de Cannes de 2003. Sueño y silencio poderá ser o motivo certo para, na presença do autor, começarmos a conhecer o seu cinema.
Praticamente desconhecido mas muito bem referenciado é Después de Lucia (2012) do mexicano Michel Franco. Este filme foi o vencedor do Un Certain Regard onde a obra de Omirbaiev acima referida competiu e conta o inferno por que passa uma família depois da mudança para uma nova cidade. Promete muito pelas imagens que nos chegam do seu trailer. É também pelo trailer que o norte-americano Low Tide (2012) conquista o pleno direito de ser referido nesta antevisão: esta história rumorejante sobre os dias de solidão de um rapaz de 12 anos parece combinar a paisagem de um Lance Hammer com o mood de Gus Van Sant. Sem prejuízo dos outros competidores, a comédia negra vinda da Suécia Avalon (2012) ou o drama bósnio sobre o trauma da guerra Djeca (Children of Sarajevo, 2012) são dois outros títulos a ter debaixo de olho.
Fora da competição, apetece recomendar tudo… bem, quase tudo. Confesso que já perdi a pachorra com o François Ozon e que Bertolucci me parece um cineasta em “auto-gestão”. Também não me co-move o hype histérico em torno do filme-sensação do cinema indie norte-americano Beasts of the Southern Wild (2012) e também não direi algo de muito diferente a propósito do mais recente Michel Gondry ou daquele que, pelo trailer, parece ser o candidato número um ao prémio de grande pastelão do ano: Cloud Atlas (2012), parceria muito perigosa entre o sempre-suspeito Tom Tykwer e os ainda assim apreciáveis irmãos Wachowski que parece apontar para qualquer coisa como um “Intolerance (Intolerância, 1916) do novo milénio”- e nós sabemos como tantas vezes a ambição desmesurada cai mal a estes cineastas.
Contudo, feito que está este conjunto de sugestões a contrario sensu – que dou de barato não ser o mais sensato que se pode arranjar -, declaro-me entusiasmado para as seguinte sessões: num primeiro nível, The Master (2012) de Paul Th. Anderson e Passion (2012) de Brian De Palma, dois filmes que antevi aqui a propósito de Veneza 2012; num segundo nível, os aclamados Holy Motors (2012) de Leos Carax e Da-reun na-ra-e-suh ( In Another Country, 2012) do sul-coreano Hong Sang-Soo; num terceiro nível, Vous n’avez encore rien vu (2012) do eterno Alain Resnais, Sennen no yuraku (Millennial Rapture, 2012) do recém-desaparecido Kôji Wakamatsu, Amour (2012) do (não muito adorado por estes lados, mas paciência) Michael Haneke e curiosidade elevada para Antiviral (2012) do Cronenberg Jr. (ele que estará presente no festival).
Das homenagens, perdoem-me se serei careta, mas quero sublinhar antes de tudo (e os fãs de Lucrecia Martel e Monte Hellman que não me matem, por favor) o tributo que o Lisbon & Estoril Film Festival se prepara para fazer, nos dias 14 e 16, ao grande crítico e pensador do cinema, da televisão, do ténis, das viagens e da vida Serge Daney, desaparecido demasiado cedo deste mundo há precisamente 20 anos. Para recordar o seu génio, vão ser mostrados os filmes portugueses da sua preferência, pre-texto de luxo para poder ver neste contexto as mais de sete horas de Le soulier de satin (Os Sapatos de Cetim, 1985) de Manoel de Oliveira ou, por exemplo, a primeira obra do pouco recordado cineasta nacional José Álvaro Morais, O Bobo (1987).
A esta homenagem cinéfila seguir-se-á, às 21h30, no Espaço Nimas, um debate subordinado ao tema-questão “A herança de Serge Daney?”, para o qual estão convocados Bill Krohn, Philippe Azoury, e o grande amigo de Daney, actual director da Cinemateca Francesa, Serge Toubiana. Um acontecimento, muito em particular, para todos os amantes e estudiosos da história e/da teoria do cinema. Ainda dentro da “palavra”, será também uma pena não descobrir o cinema de Hou Hsiao-Hsien pela mão de Jean-Michel Frodon ou não ouvir o que tem a dizer Jean Douchet sobre, nomeadamente, Blow Out (Blow Out – Explosão, 1981) de Brian De Palma (realizador que merece a retrospectiva de parte, bem suculenta, da sua obra). Também não deve deixar passar ao lado o encontro entre Abel Ferrara e Willem Dafoe, compagnons de route há mais de uma década, para a apresentação de Go Go Tales (Histórias de Cabaret, 2007) e para a sessão de perguntas e respostas com o público – e que este se prepare muito bem porque, segundo sei, Ferrara é uma pessoa de humores estranhos.
Falava das sete horas de Oliveira e dos filmes que Daney amava, mas se é um insaciável procure ver onde só pode verdadeiramente com-preender, isto é, na grande tela, o aparatoso trabalho de mise en scène que enforma Hitler, ein Film aus Deutschland (Hitler: A Film from Germany, 1977) de Hans Jurgen Syberberg, os “revolucionários” exercícios de montagem do realizador arménio Artavazd Peleshian e cada minuto de Heaven’s Gate (As Portas do Céu, 1980) de Michael Cimino, apresentado aqui numa versão restaurada que promete trazer uma luz nova à obra-prima maldita. Muita coisa fica por mencionar, mas a partir daqui o caro leitor está entregue a si mesmo – até porque, às custas dos ídolos maiores, já gastei demasiada tinta a sacrificar o culto aos “deuses menores”. Um pesadelo maravilhoso.
Para mais informações, nomeadamente quanto aos horários e salas de exibição, consulte o muito prático site oficial do LEFFest.