Das muitas lições que Rohmer nos deu, fossem elas cinematográficas, literárias ou morais, nenhumas se aproximaram tanto da pedagogia pura como a série de filmes que realizou, nos anos 60, para a Office de Radiodiffusion Télévision Française, para o Institut Pédagogique National e para a Télévision Scolaire. Foram sobretudo obras curtas dedicada ao cinema, à literatura, à história e à sociologia e que proporcionaram a muitos espectadores um primeiro contacto com as implicações socioeconómicas do trabalho rural e da industrialização, as figuras de Dom Quixote e Percival, a literatura de Victor Hugo, Stéphane Mallarmé e Edgar Allan Poe e o cinema dos irmãos Lumière e de Carl Dreyer.
Para um realizador que cresceu com a crítica cinematográfica, que se doutorou com uma tese sobre o Faust – Eine Deutsche Volkssage (Fausto, 1926) de Murnau e que certamente subscreveria aos ditos espirituosos comummente atribuídos a Godard “Le cinéma c’est un art, la télé c’est un meuble” e “Quand on va au cinéma, on lève la tête, quand on regarde la télévision, on la baisse”, trabalhar para a televisão era, desde logo, um exercice à contrainte. A desconfiança, aliás, era geral entre os críticos dos Cahiers, que foram precisamente os primeiros a duvidar dos tão bons princípios que, desde cedo, a televisão pública anunciou para a criação fílmica por ela financiada e exibida. Hoje em dia vemos que as bases de reivindicação dos autores de cinema para a televisão são ainda as mesmas. Num artigo recente para o Le Huffington Post, o documentarista Olivier Meyrou escreve: “La mission des responsables de France Télévision était simple en théorie: promouvoir la multiplicité des points de vue, défendre la diversité des esthétiques, ouvrir les antennes à de nouveaux champs d’expérimentation, éviter la culture marchande, gérer leur budget en père de famille et contribuer à notre intelligence collective. A l’arrivée… c’est raté!”. A respeito das limitações formais, John Wakeman cita o próprio Rohmer: “When you show a film on TV, the framing goes to pieces, straight lines are warped… the way people stand and walk and move, the whole physical dimension… all this is lost. Personally I don’t feel that TV is an intimate medium.”.
A necessidade de realizar para a televisão foi, assim, um exercício de adaptação e, ao mesmo tempo, de fuga de uma linguagem, tal como os de Hitchcock para fintar o código Hays ou os de John Ford para evitar as fórmulas dos montadores. Mas Rohmer viu-a também como um desafio à la Oulipo, sem a auto-imposição característica dos textos do grupo de Raymond Queneau, mas com o mesmo prazer na procura de alternativas dentro das restrições técnicas e narrativas.
Louis Lumière (1968), filme da série produzida pelo Institut Pédagogique National, pela Cinémathèque Française e pela Télévision Scolaire, não é, no entanto, um objecto de palpável evasão ao código de realização televisiva. Não tem o brilhantismo da mise en scène de Mallarmé (Mallarmé, 1968), assente na reconstituição de uma entrevista impossível com o poeta, morto antes da invenção do suporte, nem o lirismo cinematográfico de Fermière à Montfaucon (Agricultora em Montfaucon, 1967). A sua invisível construção vive, no entanto, de uma respiração fílmica, acompanhando o tom lançado pela contemporânea série Cinéastes de Notre Temps. Os seus actores são Jean Renoir e Henri Langlois, duas figuras idolatradas pela geração dos Cahiers e que lhe serviram, à semelhança de André Bazin, de pais adoptivos. O campo/contra-campo entre as imagens da dupla de comentadores e os filmes de Louis Lumière, magistralmente orquestrada, contribuiu para o estabelecimento da estrutura dialógica que passou a caracterizar o cânone dos documentários sobre o cinema, esquema de realização ainda visível, por exemplo, nas duas viagens propostas por Martin Scorsese – A Personal Journal with Martin Scorsese Through American Movies (Uma Viagem pelo Cinema Americano, 1995) e Il Mio Viaggio in Italia (A Minha Viagem a Itália, 1999).
Aquilo a que assistimos não é, no entanto, uma ingénua conversa sobre os pioneiros do cinema. É uma importante masterclass sobre realização, onde, através do crivo da política dos autores, tão cara a Rohmer e à época, se tenta recuperar a obra dos irmãos Lumière através da sua consciência histórica e das suas escolhas estéticas. Induz-se, assim, uma leitura individualista do seu cinema, ao ponto de reduzir o título a Louis Lumière, quando até o próprio Langlois defende que o núcleo que está a comentar é não o do cinema “dos irmãos”, mas sim o das muitas equipas Lumière que foram enviadas para todo o mundo com a incumbência de recolher imagens em movimento com o cinematógrafo. O filme de Rohmer faz, no entanto, jus ao carácter eminentemente oitocentista da primeira década de cinema, onde os paradigmas estéticos e as preocupações narrativas ainda são as do século de Pierre-Auguste Renoir. Langlois descreve os filmes como sendo dotados de uma força centrípeta, onde toda uma mundividência e um momento da História da Arte convergem numa vitalidade surpreendente: “Vous voyez deux petites filles qui jouent dans la rue, aux Champs Élysées. C’est deux petites filles qui jouent dans la rue, mais en réalité ça va très au-delà. La preuve c’est qu’on pense à Proust, la preuve c’est qu’on pense à Renoir, la preuve c’est qu’on pense à un tas de choses. La force de la vie, cette qualité de vie des films Lumière, c’est l’atmosphère de la vie, c’est l’ambiance de la vie, c’est la philosophie de l’époque. Tout est là.”.
Pensar os filmes Lumière em cinema e sobretudo discuti-lo com Langlois é sempre um pretexto também para falar de conservação e restauro de filmes. O mais importante pensador destas questões durante o século passado não podia deixar de explicar o seu papel, e sobretudo relacioná-lo com o cunho de efemeridade de que eram dotadas as obras dos pioneiros do cinema. O argumento é, aliás, uma poderosa arma para combater a posição dos historiadores que insistem ver Lumière como um pai do cinema documental, um avô de Flaherty ou um bisavô de Wiseman. Langlois explica que durante as primeiras décadas de cinema os filmes eram feitos para ser visto na actualidade, uma vez que a sua vida física, a do seu suporte, era extremamente limitada no tempo. Apesar de Renoir classificar o cinema dos irmãos Lumière como um “énorme tableau animé d’Histoire”, como, então, pensar nos seus autores enquanto fundadores do documentário se, além das nítidas despreocupações em termos sociológicos, etnográficos ou antropológicos, o seu cinema não era feito para durar, para mostrar ao futuro o que era o presente? A peça de Rohmer responde, indirectamente, a esta pergunta, mas fá-lo sem mencionar a linhagem produtiva à qual porventura fará mais sentido associar os filmes Lumière: a do pré-cinema, a dos brinquedos ópticos. A procura de imagens da “vida” nas cidades francesas e as missões de caça de imagens exóticas nos mais longínquos cantos do planeta são precisamente as mesmas que alimentaram, durante dois séculos, a criação de consumíveis para os mecanismos ópticos, capazes de atrair espectadores, admiradores e compradores em todo o mundo. A afirmação, pouco conveniente à política dos autores tanto defendida pelos Cahiers, não relega estas obras para um segundo plano de interesse ou de perfeição. Reposiciona-as, meramente, num outro contexto histórico, económico e artístico, eventualmente mais longe do cinema de que Rohmer, Renoir e Langlois, cada um à sua maneira, se sentem justos representantes.
Graças a um extraordinário trabalho de arqueologia cinematográfica e curadoria editorial, os filmes realizados por Rohmer para a televisão francesa, raramente vistos, podem actualmente ser fruídos em dois DVDs: um suplemento da revista Cinéma (n.º 9) das Éditions Léo Scheer e uma caixa intitulada “Le Laboratoire d’Éric Rohmer, un cinéaste à la Télévision Scolaire”, publicada pelo CNDP-CRDP e disponível em Sceren.com.