O olho é redondo, pelo que capturado pela câmara de filmar se poderá confundir – quem sabe – com um planeta ou com um ovo. É nele que se fixa o território das imagens, como se ocupa o planeta, mas antes de mais é nele que nasce, rompendo a casca do ovo, todo esse universo imagi(n)ário. E o olho “age” porque “olha” e, suspense…, mesmo olhando, ele pode “ver ou não ver” e, por isso, também é possível – e quando acontece parece que o cinema se vê ao espelho – apanhá-lo nessa acção cambiante entre “olhar e ver”. Como é natural, temos tudo no cinema, por exemplo, olhos cegos que vêem o que olhos que olham não vêem…Veja isto e muito mais nesta sopa de olhos confeccionada com a ajuda de um dos especialistas na iguaria: o nosso colaborador João Palhares.
“A força ejaculadora do olhar”. Sempre que leio este aforismo de Robert Bresson, que cito aqui de cabeça das Notas sobre o cinematógrafo, lembro-me inadvertidamente do intemporal filme que Luis Buñuel realizou na companhia do génio de Salvador Dali, o misteriosamente intitulado Un chien andalou (1929). Buñuel entra pelo cinema adentro armado com uma navalha, instrumento de corte, diria o ingénuo, da barba… mas, ó senhor ingénuo, que barba se o “freguês” é uma freguesa chamada Simone Maureil? Não, a navalha, que faz Buñuel entrar no cinema – púnhamos as coisas ao contrário -, destina-se ao corte do olho, corte suspenso por outro corte que, graças a um exercício de montagem metafórica, se metamorfoseia na imagem de uma nuvem fina a atravessar uma lua-olho recortada na noite. Depois, a navalha-nuvem desfaz em pus – ou faz ejacular? – o globo ocular-lunar da pobre freguesa. “Agora sim”, diz Buñuel para o olho desfeito, “já poderás ver o que antes nem sonhavas ver: a sur-realidade que te habita”.
Luís Mendonça
Antes de morrer, Manuel Cintra Ferreira, saudoso crítico e programador de cinema, doou uma cópia de The Thief of Bagdad (O Ladrão de Bagdad, 1940) à Cinemateca Portuguesa. Como era um dos seus filmes preferidos, escreveu amiúde sobre ele e, principalmente, sobre o olho pintado na embarcação, uma das primeiras imagens da obra de Michael Powell (e de mais cinco realizadores, entre creditados e não creditados), símbolo do tema da visão (para outros mundos, os da imaginação, os do cinema). Lembro-me da primeira vez que li sobre este olho, foi na folha de sala de uma sessão da Cinemateca em 1998. Aliás, não preciso de fazer grande esforço: tenho a folhinha aqui ao lado, um tanto amarelecida mas bem conservada. No entanto, mesmo que não a pegasse agora nas mãos (e não pego; não consigo escrever com uma folha nas mãos), recordaria sempre o dito olho como uma porta de entrada para as maiores delícias do cinema. A coisa é tal que ao exigirem-me olhos no cinema, só poderia apresentar este. E o que é engraçado é que não gosto assim tanto do filme, apesar do Conrad Veidt, da boneca assassina, e da princesa tão bela que nem podia ser vista — e não podia, e não devia, pois quando eu a via nunca era tão bela quanto a imaginara; talvez seja esse o problema de Thief: para quem já não sabe ver como as crianças, parece que mostra de mais. (O que me salva é que tenho quase a certeza que vi o filme em criança e me maravilhei devidamente. E o olho. Também vi o olho.)
João Lameira
O meu colega de tasco, Luís Mendonça, escreveu depois de ver em sala Suspiria (1977) no último MOTELx, este filme foi pensado única e exclusivamente do ponto de vista da imagem (…) porque ela quer apenas projectar nos cenários o estado interior das suas personagens – mas quais personagens? De todo o seu cinema!. Não é de boa índole contrariar os colegas de tasco (e não podia, porque o que diz o Luís é matéria de facto), mas há algo de muito curioso nessa construção dos arquétipos (para não lhes chamar personagens) através das suas mortes – e dos cenários que as acompanham. A primeira menina que morre é assassinada por um homem, todo de negro, que lhe salta da janela e lhe apunha-la as mamas (é o medo do sexo que a mata); a segunda morte é a do cego, que acontece exactamente no meio de uma praça sem ninguém (é a agarafobia que o mata); a terceira morte é a de uma menina que é atacada por um homem incógnito de braços peludos, caindo num tufo de arame farpado (é o medo ao masculino que a mata). Tudo isto em crescendo, até que a nossa menina vai parar à toca do lobo e dá de caras com a bruxa mais má, mas onde está ela? não está – não se vê. Ou seja, está ela cheia de medo de algo que não existe sequer, ela está com medo do próprio medo. E como é Argento que filma, o medo não se combate com medo, mata-se à facada. E depois de morto o medo tudo acaba. Então e os olhinhos? pois bem, são a manifestação do medo, é o horror em estado puro. Quando a menina olha através da janela à procura do seu carrasco o que vê são esses olhinhos vermelhos; se tivesse uma faca tinha-se acabado o filme logo ali.
Ricardo Vieira Lisboa
Dos vários leitmotifs que percorrem o mais belo, misterioso e atmosférico filme de Lucio Fulci, L’aldilà (As Sete Portas do Inferno, 1981), acompanhados sempre pela extraordinária banda-sonora de Fabio Frizzi, contam-se a ressuscitação do quadro de Schweick (o pintor massacrado no início do filme), a voz do além que nos diz “and you will face the sea of darkness and all therein that may be explored” e – que é o que mais interessará para esta rúbrica – a obsessão muito fulciana pelos olhos. Há muitos castigos oculares e extreme close-ups espalhados pelo filme, mas nem é tanto isso e mais a cegueira que invade quatro das personagens da história, expressa em planos como o da imagem acima. Primeiro como prenúncio personificado no fantasma de Emily (testemunha ocular do massacre) e, finalmente, já com todos os motivos somados e multiplicados no campo de névoas e poeira do final do filme, em Liza e no Dr. John McCabe. A profundidade de tudo isto (e o italiano trabalha aqui em campos muitíssimo complexos, parece-me) funciona melhor se inexplicada (e atenção que eu não tenho a chave para isto), mas esta “cegueira das trevas” reservada a personagens privilegiadas pode significar tanto salvação como danação. Nos filmes de terror, estas condenações oculares talvez estejam relacionados com impedir as pessoas de ver o mundo rodeadas de preconceitos – portanto estou mais inclinado para a primeira hipótese. Pode ser que, afinal, sem eles se possa vislumbrar finalmente o aldilà.
João Palhares
Incluir este conhecido plano na sopa deste mês leva-me a ter algum receio de passar a ser marcado como membro ferrenho da “religião kubrickiana” que traz para a sua devoção a mesma minúcia com que o norte-americano filmava (tudo isto, “devoção”, “minúcia” são eufemismos, claro). Feito o reparo, diga-se que o “tratamento” ao olhar de Alex, em oposição à dessensitivização de que falámos há pouco aqui, passa por associar por uma teoria de aversão – a dita técnica de Ludovico – imagens de maldade a uma sensação de náusea induzida artificialmente. Estas imagens de maldade não estimulam bem a mesma qualidade do olhar de rasgo criativo buñueliano, nem apelam ao olhar de vítima (assustado) ou de carrasco (ameaçador). O filme de Kubrick tinha todo ele essoutro propósito: o de fazer-nos entrar uma realidade “pelos olhos dentro”, um projecto educativo que almejava o estado último de sucesso que era o de virmos a prescindir do mecanismo que nos segurava as pálpebras. E quando há um olhar que não se pode fechar nunca, aconteça o que acontecer, acontece o cinema na sua máxima velocidade, um loop existencial que leva ao fim da imagem, ao fim do ecrã, ao início da vida sem escolha. Um olho que tudo olha, não vê. Burgess sabia isso. Kubrick também.
Carlos Natálio