Na última edição desta crónica abordei a questão da distribuição e intitulei o assunto como o maior problema do cinema português. Fí-lo e logo me arrependi pois, ali no Facebook do À pala de Walsh, o nosso leitor Pedro Jordão teve a amabilidade de me recordar que mais que a distribuição, um dos grandes problemas do cinema português é a imagem que dele tem a generalidade dos portugueses.
De que se fala quando se fala a imagem do cinema português? Pois bem, a resposta não é fácil, mas podemos condensá-la do seguinte modo: grande parte dos espectadores portugueses criou uma ideia (por diversos motivos que conto abordar de seguida) sobre o que é o cinema português e essa ideia passou a ser dominante (passou a afectar, além dos espectadores, os próprios decisores políticos). Mas encararemos a fera de viés.
A Canção de Lisboa (1933) é o primeiro filme português feito por portugueses (frase promocional que o cartaz de Almada Negreiros anunciava aos sete mundos) realizado por um arquitecto de nome José Cottinelli Telmo que teve como primeiro e último filme esta obra fundadora do género “comédia à portuguesa”. O que se conseguiu foi a combinação de uma série de factores próprios da portugalidade que o Estado Novo cultivava: o fado, as festas populares, o alcoolismo, os aldrabões de bairro, as velhas ricas, os pobrezinhos remediados e a progressão social. Uma certa noção do que é ser português foi construída ali e muito repetida daí para a frente. Independentemente do que se possa considerar do filme, a questão fundamental é que eram filmes de facto populares cujos diálogos e cançonetas ainda são repetidos, quase oitenta anos depois. Criou-se portanto uma proximidade do grosso dos portugueses com o cinema do Estado Novo. O que foi bom, foi também mau, pois tornou-se num fantasma que paira sobre tudo o que se fez a partir de meados dos anos 1960.
Se o fantasma da “comédia à portuguesa” paira alegremente na lembrança do espectador nacional, o fantasma de O Amor de Perdição (1978) ainda deverá aterrorizar muitos dos que o puderam ver na televisão à época. Quando o filme foi exibido no CCB a propósito dos 150 anos da primeira publicação do romance de Camilo, escrevi: “Amor de Perdição foi produzido no rescaldo da revolução; um filme que retrata a sociedade novecentista com toda a pompa dos guarda roupas e fá-lo com total desajuste àquilo que era a produção audiovisual popular – a telenovela – estava destinado a ser considerado como despesista e mais que isso, um ultraje aos camaradas de Abril. Tudo tinha que ser para o gosto de todos e não podia vir um realizador (ainda para mais ligado ao antigo regime) fazer um filme sobre luxos e de tal forma que ninguém era capaz de entender. (…) Parece-nos que desde então Oliveira terá sido sempre mais apaparicado no exterior do que em casa sua, pelo menos pelo público, que desde 78 parece ter ficado marcado pelo Oliveira’s touch“. Daí em diante um certo cinema português passou a viver sobre a sombra de Oliveira (entenda-se os dois sentidos da expressão: não só Oliveira criou uma escola que tem ainda hoje vários filhos, como passou a ser uma marca – daquelas feitas com ferros em brasa – em muito do cinema nacional).
Mas recuemos dois passos; estávamos ainda nos alvores do Cinema Novo e já duas frentes queriam surgir, uma mais purista e outra que não se importava de se sujar. Isto percebeu o João Lameira quando conversou com António Macedo, uma dessas vítimas da sombra purista – “Eu faço cinema de conteúdos e não um cinema de formas. Os meus colegas eram muito formalistas, muito gramaticais“. Mas independentemente da trajectória de cada uma dessas vertentes, todos fugiam do cinema do Regime, que era geralmente odiado (em particular a sua fase final) – “Eu fazia parte do Cinema Novo, mas noutra panela. Não me interessava o cinema português dos anos 50, mas também não me interessava o outro cinema, aquilo a que eu chamava a escola do bocejo.”
Pondo os pontos nos is, o que a generalidade dos portuguesas acha do cinema nacional é isto mesmo, é chato, é comprido, é lento, é… diferente das telenovelas. Não podemos encarar a forma como os portugueses vêm o seu cinema se não referirmos, mesmo que de raspão, a influência abrasiva que a introdução da novela televisiva (e mais recentemente os reality shows, e agora mesmo a internet e a multiplicidade de janelas com que todos trabalhamos) tiveram na forma como se lida com as formas visuais de contar uma história. Ainda assim é inegável que os portugueses vão ao cinema e vêm filmes por lá. E alguns desses são nacionais. Nos últimos quarenta anos houve uns quantos realizadores que conseguiram fazer um cinema que comunicasse com os portugueses, que levasse pessoas à sala em massa. António Pedro Vasconcelos [nem parece um filme português, dizia-se aquando da estreia de O Lugar do Morto (1984)], Joaquim Leitão e Carlos Coelho da Silva são os três realizadores que mais espectadores conseguiram levar às salas (juntos terão levado mais de 2 milhões de portugueses ao cinema).
E aqui está a chave do problema; ao longo dos anos vários foram os filmes que receberam excelentes críticas (de críticos portugueses e estrangeiros), mas isso raramente se repercutiu em espectadores. Tomemos um ano paradigmático desta situação: 1990. Foi o ano de estreia de Pedro Costa com O Sangue (1990) e de Teresa Villaverde com A Idade Maior (1990) [e de Rita Azevedo Gomes, ainda que o O Som da Terra a Tremer (1990) nunca chegasse a estrear], ano do filme para televisão de Manuel Mozos [Um Passo, Outro Passo e Depois… (1990)] e Luís Alvarães [Malvadez (1990)], do segundo filme de João Canijo, Filha da Mãe (1990), ano de Os Cornos de Cronos (1990) de José Fonseca e Costa e de A Maldição de Marialva (1990) de António Macedo e ainda de um dos maiores sucessos nacionais do cinema de Oliveira, Non ou Vã Glória de Mandar (1990). Se tão distinto ano foi esse de 1990, foi indistinta a expressão do público, que com excepção do filme de Oliveira, não foi às salas ver os filmes. Com tal facto em mente iniciou-se um combate ao cancro do “cinema de autor”, que levaram o Secretário de Estado da Cultura do Governo de Cavaco Silva (Pedro Santana Lopes) a alterações significativas no então IPC. Queria-se um cinema para o público, queria-se o audiovisual, queria-se muita coisa e o que se conseguiu foi uma espécie de política de terra queimada da doutora Zita Seabra que tomou conta do então renomeada IPACA.
Se, num dos anos mais brilhantes do cinema que por cá se fez, se agiu da forma descrita, neste ano de 2012 – que é igualmente um dos mais brilhantes -, desministeriou-se a cultura e o cinema teve um corte de 100% (em nome de uma lei que só permitirá a abertura de novos concursos no próximo ano e só entrará completamente em vigor no ano seguinte). Não só não se aprendeu com os erros como parece que a classe política se tornou incapaz de encarar o cinema (mesmo quando este se mostra tão fulgurante) como um meio de desenvolvimento económico e cívico.