Foi com o oscarizado The Hurt Locker (Estado de Guerra, 2008) que Kathryn Bigelow passou a ser uma senhora; antes era uma tipa que fazia filmes para gajos. Uma mulher que filma os homens como Bigelow filma não poderá ser nunca mildly interesting como realizadora, ainda para mais porque o seu cinema é cima de tudo um exercício sobre o género: o masculino e o cinematográfico.
Antes de nos lançarmos a Blue Steel (Aço Azul, 1989), passemos uma revisão sobre a matéria dada. Vendo em perspectiva os filmes da realizadora estadunidense percebemos que há um elemento comum nos seus filmes e que podemos concentrar de forma pedante como: a internalização do externo no grupo.
Desembrulhando a críptica frase tomamos como simples a anterior afirmação; todos os filmes de Kathryn Bigelow retratam, de algum modo, a tentativa de alguém que, vindo de fora, se insere num grupo fechado, o qual a recebe com hostilidade. Vejamos exemplos: no seu segundo filme, Near Dark (Depois do Anoitecer, 1987), descreve-se as desventuras de um recém mordido vampiro que tem que se habituar à vida sanguinária da sua raça, para que possa ser aceita na horda de motards-dentudos; No seu maior sucesso comercial, Point Break (Ruptura Explosiva, 1991), conhecemos as tentativas de um polícia à paisana se infiltrar num bando de surfistas que é na verdade um gangue de assaltantes de bancos. Em K-19: The Widowmaker (K-19, 2002) a tripulação de um submarino nuclear recebe (de maus modos) o novo comandante e em The Hurt Locker o mesmo mundo militar é descrito, sendo que desta vez é um técnico de desmantelamento de bombas que é (mal) recebido numa equipa própria para o efeito. Note-se as utilização das palavras horda, gangue, tripulação e equipa; todas descrevem comunidades fechadas (geralmente) de homens e de todas as vezes se filmam tais homens com um gosto particular pela sua masculinidade, são filmes de acção invariavelmente, com perseguições, tiroteios e pancadaria. Então, será natural que Blue Steel tome uma posição de objecto estranho na filmografia de Bigelow, uma vez que retrata a perseguição que uma mulher polícia desencadeia no encalço de um assassino em série. A verdade é que a solidez da obra da realizadora é tal que o género da protagonista não altera em nada os seus princípios temáticos.
Revisto o filme percebo que a dita questão da internalização surge aqui de forma difusa, isto porque não há grupo a que Megan Turner (Jamie Lee Curtis) tente pertencer e no qual seja aceite. O que acontece ao longo de todo o filme é a consecutiva expulsão da protagonista dos diversos grupos a que tenta aceder: logo no primeiro dia de emprego como polícia dispara sobre um criminoso que a ameaça, matando-o, e perde a sua arma e distintivo; no dia anterior, o da formatura, os pais não comparecem porque não aprovam a sua opção profissional; só tem na vida uma amiga que é morta na sua frente ainda a meio do filme e o seu par romântico revela-se o assassino que procura (não se preocupe que todas estas cartas são-nos dadas logo no inicio, não estou a spoilar nada). Portanto não há um sítio a que a protagonista possa chamar de abrigo, nem a família, nem o emprego nem as amizades nem os amores. Megan é uma mulher que todos rejeitam e portanto uma outcast. Tal situação de impossibilidade de pertencer a onde quer que seja só toma semelhante proporção no melhor filme da realizadora (e a necessitar de igual recuperação), Strange Days (Estranhos Prazeres, 1995).
Mas sendo este um filme da tipa que filma para gajos, há que notar uma série de (co)notações sexuais que se elaboram sobre a própria natureza do emprego de Turner. Para começar podemos salientar uma série de comentários machistas que os colegas fazem na presença da protagonista, aos quais Curtis dá igual resposta, mas mais que esses há que notar a temática do sexo forte/sexo fraco. Quando o colega de patrulha lhe pergunta porque razão se alistou (e o motivo dele é ajudar as pessoas… que mariquinhas) ela responde-lhe que gosta de disparar sobre pessoas. Há um silêncio e percebemos que se tratava de uma brincadeira (mais à frente uma desculpa semelhante é usada; dessa vez é o gosto de esmagar cabeças contra paredes que aparece como justificativo) mas de qualquer modo ficamos avisados, esta mulher não está aqui para brincadeiras.
Note-se agora o título do filme, Aço Azul. É o metal das armas que os polícias envergam (envergar é tornar verga…) e isso fica logo explícito nos créditos de abertura em que a câmara se passeia por cada um dos contornos de uma arma, de forma tão luxuriante que, logo ali no início, já sabemos que aquela arma é sim uma espingarda de carne (como lhe chamou Lídia Jorge). Esta ideia torna-se evidente em dois momentos de interacção com o sexo oposto: num date ela revela ser uma cop e é aí que a coisa dá para o torto, o pretendente nota que aquela mulher é dona de um símbolo de masculinidade que ele não pode equiparar e portanto aflige-lhe uma relação em que o peso da arma não cai no seu sentido; mais à frente quando a relação com o assassino se aproxima da consumação este (o assassino) pede-lhe que lhe aponte a arma, aqui o sentido é inverso, o homem deseja ser domado pela arma-falo dela e é isso que a choca (e aqui quem se aflige é ela) o que leva a que ela suspeite do namorado pela primeira vez. Portanto, quando referia que este era um objecto estranho no conjunto dos filme de Kathryn Bigelow (por ser protagonizado por uma mulher), na verdade essa estranheza é apenas aparente, uma vez que se trata de uma mulher com um falo no coldre.
Muito mais tinha para dizer: a utilização do ralenti e da câmara subjectiva como imagens de marca nos seus filmes, a forma como toda a narrativa é construída no sentido de criar uma precedência nas cenas subsequentes fazendo do espectador uma marioneta de expectativas e receios ou ainda a forma como parece haver uma relação directa entre o vilão deste filme (que resiste sempre a cada bala e a cada investida) e o igualmente incansável Michael Myers de Halloween (O Regresso do Mal, 1978) através da própria Jamie Lee Curtis.
Só posso pois acrescentar que não sendo este um filme extraordinário (tem imensas falhas, logo a começar pela criação do vilão através de um incidente que nada tem de plausível) é um filme que não desvirtua em nada a linha autoral tão bem traçada por Bigelow e que faz todo o sentido recuperar à luz do novo filme da realizadora, Zero Dark Thirty (2012), que traz de novo uma mulher para a linha da frente, Jessica Chastain, como agente da CIA obcecada com a caçada a Osama Bin Laden.