Dizia-se que “Boy meets girls, boy loses girl, boy finds girl again” era o mote do grande cinema americano clássico. Em Boy Meets Girl (Paixões Cruzadas, 1984), longa-metragem de estreia, Leos Carax torceu esse motivo para algo como “boy meets girl, boy loses girls, boy finds another girl” em que os boys se perdem pelas girls dos outros numa encruzilhada de paixões que o título português, por uma vez, apanha muito bem. E daí talvez não: este não é território das pequenas comédias humanas de Éric Rohmer ou dos jogos sem regras de Jean Renoir. É qualquer coisa mais ensombrada pela escuridão dos sonhos [da mesma maneira que se pode dizer que The Night of the Hunter (A Sombra do Caçador, 1955) é um filme onírico].
Logo ao princípio, ouve-se uma voz que parece de criança a dizer que em breve estará velha e o que fim se aproxima. À altura, Carax teria uns vinte e quatro anos, era muito jovem, e no entanto já se abatia sobre ele o peso da vida, o peso da morte. Esse fatalismo encerrará o filme (também literalmente) e arreda-o da ligeireza do cinema dos outros realizadores franceses mencionados, embora, justiça seja feita, Boy Meets Girl tenha a liberdade, escreva-se mesmo, a leveza dos primeiros filmes da Nouvelle Vague: os gestos incompreensíveis (destituídos de sentido) mas necessários e belos; a (i)lógica dos sonhos-pesadelos; o prazer de fazer cinema espelhado nos pequenos truques, as sobreimpressões, os dissolves para negro aparentemente sem critério; os momentos musicais (Dead Kennedys, Bowie pré-Glam Rock) ou de Musical, porque dançados.
Por outro lado, as histórias de (des)amor – Boy Meets Girl é sobretudo sobre aquele momento em que o amor acaba e não se sabe o que fazer com ele ou sobre aqueloutro em que a descoberta de um novo objecto de desejo é já em perda – não se cruzam propriamente, penduram-se umas nas outras, encontram-se e desencontram-se, comentam-se, criam paralelos. Até as personagens secundárias, mesmo aquela que soletra o seu nome no café, surgem com uma mágoa qualquer, um passado ou um presente infeliz (o namorado de Mireille, que já não a consegue amar, é particularmente triste). Por vezes, nem aparecem, ouvem-se na banda-sonora, vizinhos ruidosos da cabeça do protagonista. Porque, escrito o quer escrevi para trás, este é o filme de Alex, interpretado pelo obrigatório Denis Lavant, que entraria em todos os filmes do realizador e aqui carrega a sua idade e o seu nome (Leos Carax é anagrama dos nomes próprios de Alex Oscar Dupont). A aproximação entre personagem e realizador é evidente naquele fabuloso mapa de Paris (em que se marcam os momentos fundamentais e também os comezinhos de uma vida) que é tanto de uma como de outro. No resto, é Alex que arrasta o filme, quando não as outras personagens, principalmente Mireille (para o abismo, por amor).
Não só pela fotografia a preto-e-branco, Boy Meets Girl faz lembrar outra obra do mesmo ano: Stranger than Paradise (Para Além do Paraíso, 1984). Jim Jarmusch e Carax são dois filhos do cinema (o francês mais explicitamente: o senhor mudo que fala do cinema que se fazia antes do advento do som naquela festa absurda), só que onde um vê a luz do branco o outro vê a escuridão do preto. De alguma forma, complementam-se: os dois filmes fariam um belo double bill.
À falta desse programa imaginário, o espectador lisboeta poderá ver Boy Meets Girl no Espaço Nimas sexta-feira, dia 14 de Dezembro, às 21:30, no âmbito do ciclo dedicado a Leos Carax, a antecipar a estreia de Holy Motors (2012).