Houve um tempo em que eu comprava os Cahiers. Apenas por uma questão de prestígio. Uma vez até entrei na Cinemateca com um exemplar debaixo do braço, a ver se alguma rapariga de meias às cores e a suspirar pelo “Maio de 68” reparava. Deve ter sido por essa altura que li por lá algo que podia ter sido escrito por um menino da escola primária, ou mesmo por um fã do The Dreamers (Os Sonhadores, 2003): “confunde-se plano fixo com cinema de autor e vice-versa”. A sério? Por aquela é que eu não esperava. Liguei imediatamente a um dos meus amantes, que me prometeu mil porradas se divulgasse tamanho segredo artístico. Serve esta demência como introdução assim-assim a uma das sequências que nos mostra que se pode fazer grande cinema sem que a câmara esteja necessária e totalmente parada, o atrevimento.
Cheung fo (The Mission, 1999), do hiper-activo Johnnie To, é um filme sobre o trabalho de se ser guarda-costas de um bandido. A sua eficiência e profissionalismo. Uma valorosa questão de ética para o bandido que lhes paga. E Johnnie requisita a devida austeridade para mostrar as vidas destes sujeitos. Minimalismo, diálogos esparsos, homens no cumprimento do dever e cá vai disto.O anti-John Woo. Tão simples e monolítico que vi duas vezes o filme sem legendas e não senti qualquer perda. O momento zen deste western sem fardos de palha acontece num centro comercial, naquela que também é a “melhor sequência de sempre num centro comercial”, seguida bem de perto pelas várias do Jackie Brown (1997).
Quatro minutos de ocupação de espaço e tempo como já não se via desde, talvez, o Milan de Sacchi de finais de 80. Seja lá o que isto queria transmitir. Um guarda-bandido que ataca os guarda-costas com um chapéu inicia as hostilidades. Segue-se um espanto de controladíssimos movimentos, sejam de câmara ou de personagens, todas estas na mais pura das impassibilidades. Breves travellings, a afronta de Johnnie. A câmara é pa ‘tar parada, pá. Noventa e seis em cada cem críticos escreverá que há uma “evidente musicalidade nesta sequência, devedora, quiçá, dos assombrosos registos de Berkeley”. Mário Jorge Torres, sentimos saudades tuas.
E não que não tenham razão. Embora a minha imaginação me faça supor que sem música tudo ainda seria mais poderoso e musical, o facto é que o chill out de barraca de Chi Wing Chung faz maravilhas por aqui, numa simetria precisa com a coolness e suspensão do momento. Também um sinal evidente de que um trecho musical pouco memorável em si pode ser mais do que suficiente para dar grande brilho ao suporte das imagens. O Alfred também preferia adoptar para a tela obras literárias de qualidade duvidosa.
Outro ponto a favor é a negação dos diálogos. Esta gente é profissional, sabe o que tem a fazer, treina todos os dias durante quatro ou cinco horas, e não precisa de debitar lixo sonoro para os nossos ouvidos, numa amostra de inútil demonstração. Um respeito, também, pela possível inteligência do espectador, que já está devidamente ocupada com a apreensão dos olhares, movimentos corporais, rebentamentos sonoros, os espaços vazios e a ladaínha serpenteante da banda-sonora. Os diálogos já se encontram aí devidamente ilustrados.
Falou-se num possível remake norte-americano, que seria realizado por Peter Berg. Assim, num centro comercial de Los Angeles, os nossos heróis, além de terem de se preocupar com os moinantes, ainda teriam de se desenvencilhar de pitas louras oxigenadas, balufos consumidores de McDonalds, um gang de neg…de pretos corcundas tal o peso das correntes de ouro, o Michael Moore com uma t shirt do Che Guevara a beber café no Starbucks, e com o Mickey Rourke à porrada com alguém. De preferência com o Moore. Em montagem mata-cavalos e trilha sonora dos Rammstein.
http://www.youtube.com/watch?v=AnqIC3IU3j8