2012 foi o ano-limusina do Festival de Cannes – em Cosmopolis de David Cronenberg, Robert Pattison viajava dentro de uma de uma ponta à outra da grande cidade, enquanto a câmara se preocupava em encontrar diferentes maneiras de filmar esse interior, esse enclausuramento; no recém-estreado Holy Motors, de Leos Carax, os grandes carros brancos não são o cenário principal, antes (literais) camarins em que os “actores” (ou melhor, o “actor”, esse extraordinário Denis Lavant) se preparam para as cenas no exterior. Portanto, a limusina tem funções bem diversas em cada filme, sendo que para Carax nunca é uma prisão (e, a dado momento, ganha até uma alma). Aliás, em Holy Motors, tudo o que é matéria fílmica (a forma) se rege pela máxima liberdade, mesmo se a temática procura a universalidade e é, por isso, um tanto pesada: o que se encena é a própria vida (uma das últimas cenas, e não quero estragar a surpresa, permite até uma aproximação a 2001: A Space Odyssey (2001: Odisseia no Espaço, 1968) de Stanley Kubrick].
Se bem que Holy Motors nunca deixe de ser pelo menos interessante e desafiante, quando não é belo e grave ou delicioso e divertido, esse choque entre forma e conteúdo parece a maior fraqueza do filme, até porque trava a beleza e as delícias. Ou seja, vai-se percebendo, de “episódio” para “episódio”, que Carax pretende alcançar/abarcar/abraçar todas as grandes questões, principalmente aquelas que sempre o mais interessaram: o amor e a morte. E o que faz de uma maneira um tanto esquemática: o reencontro de velhos amantes, ambos “actores” em período de repouso, em formato de musical nuns grandes armazéns abandonados – é aqui que Kylie Minogue comparece (fisicamente, já que a sua voz ouvira-se num “episódio” anterior), cantando uma canção que Carax co-escreveu com Neil Hannon; o velho moribundo que se despede da sobrinha querida, num momento em que “actor” já tem dificuldade em encontrar a “personagem” (repete diálogos de outras “personagens” até acertar).
E Holy Motors também é sobre o cansaço de encenar a vida, o fastio de se fazer cinema (para Carax, cinema e vida são sinónimos, pelo que falar de um ou de outro é falar da mesma coisa). Não é por acaso que o filme abre (outra vez literalmente, uma vez que ele é a chave) com o próprio Alex Oscar Dupont (e Oscar é o nome do “actor”-Lavant – sempre essa identificação), vulgo Leos Carax, a entrar numa sala de cinema em que os espectadores estão adormecidos (o cinema é um sonho). Não é por acaso que Carax teve medo de interpretar a personagem de Michel Piccolli, que fala da beleza do gesto mesmo se as câmaras são cada vez mais pequenas e se vão tornando invisíveis, quando o “actor”-Lavant se mostra relutante em continuar, não fosse espectador tomá-la como um (o) realizador. Ou seja, Deus. É isso, Carax, pese embora esse medo, assume-se de facto como Deus deste mundo, Deus desta vida, Deus deste cinema. E às vezes gosta de mexer de mais nos cordelinhos.
O que não obsta ao prazer de rever Merde, essa fabulosa personagem criada para Tokyo! (Tóquio!, 2008) que se alimenta de flores e aterroriza a populaça. E que, pelos vistos, preza tanto a beleza da mulher que a tem de esconder (será que a escolha da actriz Eva Mendes tomou em consideração o seu nome?). Merde, para além de terrorista, é um tanto taliban, ainda que se permita uma Pietà. Ou de atentar aos “episódios” do motion capture (o sexo simulado, o sexo virtual) ou do gangster que se mata a si mesmo. Ou de observar todos os pequenos detalhes e non-sequiturs que Carax oferece ao espectador. Ou de encontrar um cinema completamente diverso de quase tudo o que se vê nas nossas salas, um cinema muito particular, o cinema-Carax. Que o realizador não demore tanto tempo a voltar à longa-metragem (o último intervalo foi de treze anos).