CAPÍTULO 3 | CONTRA A GUERRA
“… Let me ask you one question
Is your money that good
Will it buy you forgiveness
Do you think that it could
I think you will find
When your death takes its toll
All the money you made
Will never buy back your soul.”
Bob Dylan, in “Masters of War”, 1963
Fotografia de Marc Riboud que permanece como símbolo do movimento anti-guerra do Vietname. A estudante Jan Rose Kasmir, de 17 anos, numa marcha pacífica de protesto até ao Pentágono, a 21 de Outubro de 1967, convida os soldados a juntarem-se à manifestação. Um pedido que não foi escutado : nesse dia, centenas de manifestantes foram presos, enquanto os outros foram espancados e expulsos de frente do Pentágono.
1972. WINTER SOLDIER
Winterfilm Collective
alguns veteranos anti-guerra no Winter Soldier Film, do Winter Soldier Film Collective, 1972
“Eles reviveram o horror absoluto daquilo que este país, num certo sentido, os obrigou a fazer. (…) Nós, os que viemos hoje a Washington, viemos porque sentimos que agora temos de ser ‘soldados de inverno’. Poderíamos voltar a este país e estar quietos, poderíamos resguardar-nos em silêncio e não contar o que se passou no Vietname, mas, porque o que ameaça este país não são os vermelhos mas os crimes que estamos cometer, sentimos que temos de falar….” Discurso de John Kerry, porta-voz dos VVAG (Vietnam Veterans Against the War), sobre a Winter Soldier Investigation ao Comité de Relações Externas, a 23 de Abril de 1971
“ Sempre o considerei o mais importante filme que tínhamos sobre o envolvimento trágico deste país no Vietname, e ainda hoje considero. É quase tão potente hoje como quando foi lançado, e eu suspeito de que é raramente exibido porque o que revela das atrocidades em tempo de guerra e das políticas governamentais é demasiado difícil de encarar.” Jonathan Rosenbaum, in “Arms and Men”
Os horrores estão todos lá, nas vozes, nos silêncios, nos rostos de quem os viveu. Winter Soldier (que integrou o ciclo United We Stand) é a longa-metragem que resultou da série de conferências homónima, “Winter Soldier Investigations” e, como escreveu Rosenbaum, “mais do que um documentário, é um documento”. O evento filmado foi organizado em 31 de Janeiro e 2 de Fevereiro de 1971 por várias organizações anti-guerra, e reuniu 125 veteranos do Vietname numa sala de conferências no hotel Howard Johnson, em Detroit.
O nome “Winter Soldier”, Soldado de Inverno, é uma alusão à frase de Tom Paine (do texto “Crisis”, de 1776): “Estes são os tempos que testam as almas dos homens. O soldado de Verão e o patriota dos raios de sol, irão, nesta crise, encolher-se perante o serviço ao seu país. Mas aquele que a suporta agora, merece o amor e o agradecimento dos homens e das mulheres.” Paine descrevia, com desdém, a desistência dos soldados que desertaram de Valley Forge (onde se localizavam as bases militares durante a Guerra da Revolução Americana, 1777–1778), quando as dificuldades do Inverno apertaram. Reconhecendo-se na sua própria resistência, que cumpriu o apelo para a guerra que o seu país impôs, o activismo pacifista destes Soldados de Inverno demarca a consciência de que um papel revolucionário é agora o destino da sua acção na sociedade civil, alicerçada pelos mais reais argumentos contra a guerra – os que sobram à voz de quem lhe sobreviveu.
A investigação Winter Soldier brota de um grito colectivo de culpa, na consciência comum de que, acerca de uma guerra que ainda decorria, havia uma verdade encoberta a precisar de ser urgentemente revelada. Uma verdade que, como descreve um dos veteranos, acontecia em território “demasiado distante” para que a maioria dos americanos se interessasse o suficiente pelo que se estava a passar. Organizada com base civil numa Citizens Comission of Inquiry (CCI) e apoiada por veteranos, igreja, advogados e celebridades anti-guerra, a Investigação encontrou o seu rosto em cada um dos membros de um grupo de veteranos com a coragem de expor publicamente a brutalidade da sua participação na Guerra do Vietname. Cada veterano participa num gesto de responsabilização reflexiva e os painéis de conferência organizam-se segundo as respectivas ex-unidades de combate, de modo a que os testemunhos pudessem ser corroborados entre si. A expressividade da amputação emocional infligida a esses soldados será reconhecida entre os membros de qualquer plateia dos nossos dias : há um abismo entre o choque de quem assiste aos relatos e a aparente banalidade com que alguns soldados ali descrevem cúmulos do horror. Aqui, as possibilidades da linguagem do cinema servem a amplificação de cada um destes rostos, de cada uma destas memórias humanas: estas são as feições que se contraem, estas são as gargantas que secam, estas são as vozes que recuam, estas são as lágrimas que relembram.
Um dos jornalistas presentes, dirige a um veterano uma pergunta tola : “mas acha que as pessoas lá em casa, ao ver um grupo de homens de cabelos e barbas longos, vos irão dar alguma credibilidade?”. Depois de termos visto cada um destes veteranos fardado, barbeado e armado nas fotografias antigas que os inscreviam no serviço militar, sabemos que a resposta se solidificou ao longo de todo o filme, um filme onde também o conteúdo suplantou a forma : as contribuições de cada qual somam-se num manifesto anti-guerra, em busca da aproximação dos indivíduos e dos povos entre si. Já perto do final, um emotivo depoimento de um veterano nativo-americano compara os crimes cometidos pela América no Vietname aos que perseguiram e massacraram a sua raça cem anos antes, lembrando como o imperativo dos interesses financeiros parece eliminar qualquer necessidade de paz e de harmonia entre as culturas: “Quando antigamente fazíamos tratados, eles valiam enquanto a relva crescesse e enquanto os rios corressem. Como fazemos as coisas hoje, um dia a relva não vai crescer e os rios não vão correr.”
A cada contributo se restaura um pouco mais da verdade, graças aos detalhes que precisam com horror cada uma das descrições, entrecruzadas com as imagens que as ilustram e que as televisões não exibem. No facto do filme nunca ter sido exibido por um canal americano de televisão e ter conhecido a sua estreia em sala somente em 2005, lê-se o poder de influência dos media sobre a opinião pública, condicionando até a sua opinião acerca da continuidade de uma guerra, directamente dependente da censura das imagens que mais brutalmente descrevem a realidade do confronto.
“Longe de ser um espectáculo de horrores ou um exercício de propaganda, o filme, pela enormidade do que retrata, torna-se numa obra filosófica, que evoca todas as questões morais básicas (…) As maiores e mais importantes estrelas do filme são as lágrimas derramadas por homens que aprenderam que, para destruir o machismo falso instalado pela escola, pelo estado e pelo exército, é necessário aprender a chorar.” Amos Vogel in Atrocities and artless innocence
“Era como se não fossem humanos. Estávamos condicionados a acreditar que aquilo era pelo bem da nação, pelo bem do nosso país e que tudo o que fizéssemos estava bem. Quanto alvejávamos alguém, não acreditávamos estar a atirar sobre um humano. Era um ‘chinoca’, um ‘comuna’. Estava tudo bem.” excerto de um depoimento de Scott Camil, veterano do Vietame que testemunhou nas investigações Winter Soldier
entrevista a soldados americanos no Vietname, em In the Year of the Pig (de Emile de Antonio, 1968)
Denuncia-se o racismo e o sexismo em que assentam acções que se perpetuam, nas mãos de um poder que corre à solta e sem vigilância (numa guerra que durou quase duas décadas, de 1 de Novembro de 1955 a 30 de Abril de 1975, e na qual os americanos entraram a 8 de Março de 1965). Denuncia-se o etnocentrismo cultural americano e as motivações imperialistas que precedem a invasão a um país que jamais se revelaria como uma ameaça real à pátria americana, jamais justificando todas as vidas humanas perdidas. Um esforço para conter a disseminação do comunismo transformado num conto de imposição civilizacional e de sangue derramado em vão?
“A mais longa das guerras deste século foi uma guerra financiada pela América contra o Vietname, do Norte e do Sul. Foi um ataque sobre o povo do Vietname, comunista e não-comunista, pelas forças americanas.” John Pilger, in “Heroes”
“A guerra contra um país estrangeiro acontece apenas quando as classes endinheiradas pensam que vão lucrar com isso.” George Orwell
“Queremos falar das atrocidades mas, em primeiro lugar, da razão que está por trás destas atrocidades.” testemunho de um veterano do Vietname nas Investigações Winter Soldier
Cada uma das histórias individuais é uma consequência directa dos objectivos previstos pela política externa americana, cada um dos actos relatados com horror por quem os cometeu é o resultado de uma ordem superior. Quando a necessidade de auto-defesa atinge o seu estádio derradeiro, e os mecanismos da guerra transfiguram uma pessoa “comum” em alguém capaz de violação, estropio, incêndios, assassínios em massa, mutilação, tortura, jogos de violência…. como regressar à “humanidade” quando se andou tão longe? Além do indescrítivel sofrimento individual que pesa dentro de cada veterano envolvido em crimes de guerra, atrás de cada um destes gestos de confissão, de confronto e de expiação, está suspenso um problema de regresso à norma e de (re)inserção na sociedade (há que lembrar que os veteranos da guerra do Vietname representam 9,7% da sua geração).
Foto tirada pelo fotógrafo do exército dos Estados Unidos, Ronald L. Haeberle, em Março de 1968, depois do massacre de My Lai; Veteranos ridicularizam o uniforme militar americano em protesto anti-guerra; Cartoon que descreve a “Teoria do Dominó” (1)
Foi em 1969, com o eclodir das revelações do massacre em My Lai, um ataque que aconteceu no dia 16 de Março de 1968 no sul do Vietname, que os extermínios massivos de civis cometidos pelas tropas americanas foram denunciados à escala global. Começava a saber-se, com sucessivo horror, acerca dos casos de violação, mutilação e assassínio, num só dia inflingidos por dois batalhões a um número estimado entre 347 e 504 de vítimas desarmadas, na sua maioria de mulheres, crianças e idosos. Depois de um encobrimento do crime pelos oficiais responsáveis no local, foi quase treze meses depois que Ron Ridenhour, um jovem soldado americano, dirigiu ao Presidente, ao Director dos Conselheiros do Departamento de Defesa e ao Secretário de Defesa as cartas que relatavam algumas das atrocidades que lhe tinham sido descritas por soldados envolvidos no massacre. Nesta altura, a oposição ao envolvimento dos EUA na guerra crescia na sociedade civil americana e os movimentos anti-guerra do Vietname despertaram com maior expressão, compreendendo várias faixas sociais e alastrando a outros países. Os esforços colectivos de mobilização contra a guerra incluíam a ocupação dos espaços universitários, marchas, manifestações, eventos, arte … O fim da guerra iniciou-se em território americano : foi o próprio povo que começou por virar costas às políticas belicistas, por vocalizar o seu descontentamento, por distinguir a sua posição, por reclamar ao Governo uma reavaliação das estratégias exteriores. Mas, como escreveu William F. Crandel em ‘O que aprendeu a América com a Investigação Winter Soldier’, “quando o povo aprende, aprende ao ritmo de uma pessoa de cada vez”. Assim, as últimas tropas saíriam oficialmente da capital ocupada apenas a 29 de Abril de 1975.
O maior protesto anti-guerra nos EUA ocorreu a 15 de Novembro de 1969, em Washington.
“… (a minha experiência) enquanto testemunha ocular e participante em acções de artilharia sobre aldeias indefesas, mutilação de corpos, morte de civis, maus-tratos de civis…” Keneth Campbell, veterano do Vietname e testemunha nas investigações Winter Soldier
“ O meu testemunho incluí o assassínio de não-combatentes, a destruição de propriedade e mantimentos vietnamitas, o uso de agentes químicos e de tortura para coação de prisioneiros…” Fred Nienke, veterano do Vietname e testemunha nas investigações Winter Soldier
“… era contemplando recursos estratégicos do Sudeste Asiático e o seu significado para o sistema global que os Estados Unidos estavam então a construir, incorporando a Europa ocidental e o Japão. Temia-se que o sucesso de um desenvolvimento independente sob uma liderança nacionalista radical pudesse “fazer com que a podridão se alastrasse”, erodindo o domínio dos Estados Unidos na região e, em última análise, fazendo com que o Japão, como o mais largo dominó (1), integrasse um sistema fechado do qual os Estados Unidos estariam excluídos… A ideia de que os estrategas globais americanos tinham motivos nacional-imperialistas é intolerável ao sistema doutrinário, pelo que este tópico deve ser evitado em qualquer história dirigida a um auditório popular.” Noam Chomsky, in The Vietnam War in an Age of Orwell, Race and Class, 1984
“Vimos a América a perder o seu sentido de moral quando aceitou relaxadamente My Lai e se recusou a desistir da imagem dos soldados americanos que distribuem chocolates e pastilhas elásticas.” discurso de John Kerry, porta-voz dos Veteranos Americanos contra a Guerra, junto do Comité de Relações Externas, a 23 de Abril de 1971
E, se estas vozes e estes rostos que protagonizam o horror são um mero fragmento de um iceberg gigantesco, que só o tempo ajudaria a melhor deslindar, é exactamente pela particularização do vivido por cada uma destas presenças que temos a absoluta certeza da profunda tragédia que foi a guerra do Vietname. Que My Lai não foi uma ocorrência pontual, mas uma página arrancada a um extenso diário de atrocidades. Vários veteranos de Winter Soldier chamavam a atenção para o facto dos números que chegavam relativos à captura e morte de vietnamitas serem manipulados : “Não contes os prisioneiros antes ao entrar no avião. Conta-os depois. Os números podem não coincidir”, descreve um ex-capitão. Estima-se que cerca de 9,087,000 de pessoal militar esteve ao serviço da guerra do Vietname entre 5 de Agosto de 1964 e 7 de Maio de 1975. Entre estes, contam-se cerca de 58,148 americanos mortos e de 304,000 americanos feridos, face a uma estimativa de 2 milhões de vietnamitas mortos (o equivalente a um quinto da população portuguesa em 2012).
“Chegámos e limpámos tudo. Mulheres e crianças e tudo. 291 deles.” testemunho do veterano Scott Camil nas investigações Winter Soldier
reportagem de 2004 sobre os efeitos do “Agente Laranja” que persistem no Vietname.
“Fomos até ao campo e, tal como na cidade, vimos com grande evidência que as pessoas estão geralmente armadas. A milícia civil é muito grande. Até as mulheres suportam o peso de metralhadoras anti-aéreas. (…) E eles disseram-nos abertamente em diversas ocasiões : uma das razões que prova que este governo fala por nós é que o governo nos armou. A tal ponto que, se quiséssemos, poderíamos derrubar o governo num dia. ” testemunho de professor americano a viver no Vietname durante a guerra, em In the Year of the Pig (de Emile de Antonio, 1968)
In The Year of The Pig, uma longa metragem americana endereçada à América, percorre “os Vietnames” à procura de documentar, em extensas séries de entrevistas e imagens de arquivo, a face vietnamita da guerra que estava em curso. O filme, na época recebido com hostilidade entre as audiências americanas, esforça-se por desconstruir a visão monolítica do inimigo comunista, reflectindo acerca das particularidades da visão do comunismo vietnamita e, em particular, no líder no poder, Ho Chi Minh. Assim se prova como, na construção de um passado histórico, todas as vozes, imagens e documentos devem ser chamados a participar num contínuo processo de testemunho.
Ho Chi Mihn, líder do Partido Comunista do Vietname de 1951 a 1969, retratado de perto no importantíssimo Indochine : A People”s War in Colors (Stewart Binns, 2009)
O espírito guerreiro permanente do povo vietnamita, que a infatigável resistência contra o gigante bélico americano evidenciou é, segundo o depoimento de um académico americano em In the Year of the Pig, apenas um paralelo moderno das suas lutas antigas. Na sua percepção cultural e espiritual, a força do povo vietnamita é a de todas as gerações que se acrescentaram ao longo da sua própria construção, a força de um “país feito à mão”, habituado a não descansar na luta pela sua soberania, contra o colonialismo francês, contra invasões chinesas e mongóis e, depois, contra os americanos. Assim, apesar da demarcação imaginária no 17º paralelo, o mais polémico dos argumentos deste filme é o de que, na prática, nunca existiu senão um só Vietname unificado. Que Ho Chi Minh era, acima de tudo, um patriota e o seu comunismo baseado num nacionalismo, que desejava a soberania do território vietnamita e a independência em relação à colonização francesa, ou qualquer outra. Um dos professores entrevistados define uma espécie de “comunismo simples”, constitutivamente materialista, para falar acerca da concepção vietnamita da sua política revolucionária: “Não há ninguém naquela sociedade que não se lembre da fome, e é interessante que, tanto junto dos camponeses como dos jovens intelectuais, quando se coloca a mesma questão, “O que é para ti a revolução?”, recebemos exactamente a mesma resposta, “É ter que chegue para comer agora.””. Sobre a idolatria popular ao líder Minh, acrescentou o mesmo professor que : “Do lado desse poder que se está a tentar emancipar de tantos e tantos anos de sufoco colonial, está um homem que também espera com uma taça de arroz na mão, cuja pobreza é equivalente, cujo poder não se separou da fé da maioria, que anda entre eles com as mesmas roupas de algodão barato sem perder a dignidade, cujo poder não (…) é um jogo de discurso duplo, como o que nos habituámos a ver nas governações ocidentais.” Voltaríamos a ouvir falar na falta de encaixe do povo vietnamita no estereótipo comunista que a retórica governamental americana sempre esculpiu, no discurso da Associação de Veteranos Do Vietname Contra a Guerra, em 1971 :
“… Considerámos que, não só era uma guerra civil, o esforço de um povo que ao longo de anos tinha procurado a sua libertação de qualquer influência colonial, como também que os Vietnamitas que entusiasticamente moldámos à nossa imagem, dificilmente iniciariam uma luta contra a ameaça de que supostamente os estávamos a salvar. Descobrimos que a maioria das pessoas não sabia sequer a diferença entre comunismo e democracia. Só queriam trabalhar nas suas plantações de arroz sem helicópteros a vigiá-los e sem bombas de napalm a queimar as suas aldeias e a destruir o seu país. Queriam que tudo a ver com a guerra, particularmente essa presença estrangeira dos EUA, os deixasse em paz. Praticavam a arte da sobrevivência de estar do lado da força militar que estivesse presente num determinado momento, fosse ela Vietcongue, sul-vietnamita ou americana. ” veterano John Kerry, no discurso dos VVAW ao Comité de Relações Exteriores, em 1971
Se em 1968, Émile de Antonio procurou as causas da guerra, com o colectivo Winter Soldier principiou-se o somatório das perdas. A nível financeiro, o envolvimento no Vietname custou aos EUA uns estimados 133 biliões de dólares. Durante os ataques aéreos, largaram-se 8 milhões de toneladas de bombas entre 1965 e 1973, entre as quais bombas e minas anti-pessoais que continuaram a criar problemas no solo. Estima-se que mais de 1 milhão e meio de hectares de solo tenha sido contaminado por 19 milhões de galões de desfolhantes (sendo mais conhecido o ‘Agente Laranja’) (2), cujos efeitos irão durar indefinidamente. Os estragos ecológicos e sociais no Vietname são ainda inestimáveis. O futuro tem nas suas mãos a tarefa de aprender que os efeitos da guerra são mais imprevisíveis do que a própria guerra, e continuam a propagar-se dezenas de anos depois de lavrados os tratados que lhes oficializam um fim.
Tanto como In The Year of The Pig (que até hoje também não conheceu uma difusão televisiva nos EUA), Winter Soldier é um filme essencial. Integravam o colectivo que teve como único filme o que o baptizou, Fred Aranow, Nancy Baker, Joe Bangert, Rhetta Barron, Robert Fiore, David Gillis, David Grubin, Jeff Holstein, Barbara Jarvis, Al Kaupas,Barbara Kopple, Mark Lenix, Michael Lesser, Nancy Miller, Lee Osborne, Lucy Massie Phenix, Roger Phenix, Benay Rubenstein e Michael Weil. Meses antes da conferência que oficializou as investigações Winter Soldier, o grupo organizador antecipou os ataques à credibilidade do evento que se lhe seguiriam, e oficializou cada testemunho com a necessária documentação militar. A investigação teve imediatamente repercussões : o Senador George McGovern e o Representante John Coyers anunciaram a urgência de medidas oficiais de investigação, e convocaram uma reunião com os veteranos (VVAW).
A antologia das histórias de horror narradas em discurso directo serve a aprendizagem do povo americano e de todos os povos, mas principalmente, de cada indivíduo perante si próprio. É um retrato da transfiguração humana, onde a barbárie se apodera das consciências, de vencedores como de vencidos. A solidez das fronteiras do auto-conhecimento está sob questão, quando máquinas-de-matar programadas para destruir massivamente brotam do corpo humano destinado a preservar a própria vida. Os descritivos testemunhos, de um pormenor atroz, recordam a realidade dos crimes cometidos enquanto código de conduta, num cenário limite longe da norma e da civilização. Guerra, o abismo da moral. No peito de cada um, permanece o lamento de ainda lhe sermos contemporâneos.
“Qualquer guerra é um sintoma do fracasso do Homem enquanto animal pensante.” John Steinbeck
CAPÍTULO 4 | AMÉRICA NEGRA
1968. OFF THE PIGS!
Colectivo Newsreel de S. Francisco
“Na América os negros são tratados praticamente como os vietnamitas, ou como qualquer outro povo colonizado, porque somos usados, somos brutalizados. Porque a nossa comunidade ocupa um território, onde a polícia não vai promover qualquer bem-estar ou garantir a nossa segurança. Mas está lá para nos restringir, para nos brutalizar e para nos assassinar, porque têm as suas ordens para o fazer, tal como os soldados no Vietname têm ordens para destruir o povo vietnamita. A polícia na nossa comunidade não poderia estar ali para proteger a nossa propriedade porque não possuímos qualquer propriedade. ” Huey Newton, um dos fundadores dos Panteras Negras, em Off the Pigs (Colectivo Newsreel de São Francisco, 1968)
O icónico trabalho gráfico de Emory Douglas, o Ministro da Cultura dos Panteras Negras desde 1967 até à sua descontinuação. Como forma de acentuar o poder do povo negro, os protagonistas das suas ilustrações são quase sempre retratados com armas – um retrato que os vários filmes que documentam os Panteras e as suas comunidades negras em parte, contradizem.
“Então, basicamente o conceito é este: toda a nação negra deve unir-se enquanto exército negro. E vamos marchar sobre esta nação, vamos marchar sobre toda esta estrutura de poder (…), nós vimos buscar o que é nosso!”. As palavras são de Eldridge Cleaver, um dos fundadores das Panteras Negras (Black Panthers) que protagonizam Off The Pigs (que integrou o ciclo United We Stand) . Segue-se-lhe Bobby Seale com a apresentação do recém-formado partido, que a 15 de Outubro de 1966 dava a conhecer os dez princípios que lhe estavam na base :
“1) Queremos liberdade, queremos poder para determinar o destino da nossa comunidade negra. 2) Queremos emprego pleno para o nosso povo. 3) Queremos o fim do roubo da nossa comunidade negra pelos capitalistas. 4) Queremos casas apropriadas ao abrigo de seres humanos. 5) Queremos a educação para o nosso povo que exponha a verdadeira natureza desta decadente sociedade americana (…) 6) Queremos que todos os negros sejam excluídos do serviço militar. 7) Queremos o fim imediato da brutalidade policial e do assassínio a negros 8) Queremos liberdade para todos os homens negros detidos (…) 9) Queremos que todos os negros sejam julgados em tribunal por um júri do seu grupo de origem ou pessoas das suas comunidades negras (…). 10) Queremos terra, pão, habitação, educação, roupa, justiça e paz.”
Off the Pigs!, de 1968, é o primeiro filme feito sobre os Panteras, em conjunto com a extensão de São Francisco de um colectivo cinematográfico activista chamado Newsreel, talvez o mais importante dos colectivos na história do cinema americano até à data. O baptismo do colectivo recorda o popular formato de boletim documental de curta duração que, numa era pré-televisiva, abria as sessões de cinema com registos de actualidades históricas. Efectivamente, é contra a alienação dos mass media (e as suas limitações em termos de códigos formais e de perpectivas), e no encalço de uma versão mais justa da história das lutas sociais que varriam a América dos anos 60, que um conjunto de activistas independentes privilegia o filme – um medium de que são, em maior ou menor grau, familiares – enquanto arma de luta. Sucessivamente estendem o seu corpo de trabalho, descentralizando-o, entre vários colectivos distribuídos por várias cidades americanas. Marilyn Buck e Karen Ross (6), colaboradoras do núcleo Newsreel de São Francisco, evocam a necessidade de combinar a acção política e cultural, procurando responder às “frustrantes formas da esquerda”. Outro cineasta dos Newsreel, Allan Siegel, explica como “as avenidas tradicionais da representação estavam codificadas por uma linguagem que era inadequada e desconexa”. Uma linguagem que neutralizava os radicalismos, que omitia a pluralidade de pontos de vista, era uma linguagem a combater. Os filmes, maioritariamente em 16 mm e a preto e branco, unem-se em torno de uma vocação revolucionária comum, à procura de um envolvimento activo na realidade do seu tempo. Entre 1967 e 1970, o colectivo Newsreel tinha produzido e distribuído mais de sessenta filmes em diversas cidades americanas, velozmente adquirindo a notoriedade esperada face a um projecto tão desafiante quanto necessário. Se Off the Pigs, apesar dos meros 14 minutos de duração foi um dos objectos de maior impacto, é também porque introduz o radicalismo “in yer face” que tipificará a conduta dos Black Panthers. Um confronto a cru, sem as legendas ou contextualizações dos estilismos televisivos, que ajudaria a moldar uma reputação de violência de que o partido nunca se dissociaria até à sua dissolução nos anos 80. Acérrimos da militância armada, os Black Panthers encontraram em Mao Tsé-Tung e Malcolm X as suas fundações teóricas, que excederiam com a sua acção de guerrilha.
Fotografia de 1966 dos membros fundadores dos Panteras Negras : Elbert Howard, Huey P. Newton, Sherwin Forte, Bobby Seale, Reggie Forte e Little Bobby Hutton; mural contemporâneo de autoria desconhecida; infame relatório do FBI de 1970 relativo à “neutralização” estratégica da actriz Jean Seberg (8), e revelação do caso na imprensa após a sua morte em 1979.
“Quando o povo negro envia um representante, ele é de algum modo absurdo porque não representa qualquer poder político. Ele não representa poder de posse de território, porque não possui nenhum. Não representa poder económico ou industrial porque os negros não possuem meios de produção. A única forma em que pode tornar-se político é representando aquilo a que commumente se chama poder militar.” Huey P. Newton, Fevereiro de 1970
A crescente agressividade dos seus discursos e um historial de confrontos com a polícia rapidamente conotaram pejorativamente os Black Panthers, publicamente associados a uma postura de milícia civil ou de gangue que já estava inscrita na sua apresentação enquanto “partido de auto-defesa”. No entanto, a acção nacionalista das Panteras, concretizada pelo slogan “survival pending revolution” (qualquer coisa como “revolução pendente pela sobrevivência”, expressão de Huey P. Newton), evocava uma primeira revolução na estruturação das reivindicações da luta em direcção a um estado de sustentabilidade social. Assim, era necessário ultrapassar em primeiro lugar o permanente “estado de crise” de um povo oprimido que se debate diariamente para garantir o mínimo indispensável à sobrevivência, e não desejar menos do que todo o necessário para atingir um estado de vivência – uma base sustentável onde as necessidades básicas estão supridas, e a luta social continuará, mas em terreno mais civilizado e de menor desigualdade. Este é um tema crucial, que ajuda a perceber como aquilo que, do ponto de vista de quem que não tem o mínimo indispensável à sua sobrevivência, é uma batalha motivada pelo desespero, do ponto de vista dominante, pode não passar de um atentado à ordem estabelecida – que precisa de ser contido. É o contraponto mais justo que o colectivo Newsreel de São Francisco, trabalhando mais directamente com os Black Panthers, se propõe a retratar.
Joaquim Cienfuegos em ‘Beyond Survival’, explica como as lutas sociais se tornam, a curto prazo, em lutas que desejam emancipar-se da violência e do conflito armado, uma vez que “para qualquer pessoa que luta pela própria liberdade, esta é uma posição desfavorável. Força-nos a permanecer numa situação em que estamos constantemente a reagir face aos que têm o poder, o que lhes dá sempre vantagem.” Em Janeiro de 1969, os partido dos Panteras Negras iniciou em Oakland o programa de acção comunitária “Pequeno-almoço grátis para crianças em idade escolar”, cozinhando e servindo comida às comunidades pobres da área. Pelo final do ano, os Panteras tinham cozinhas instaladas junto de várias comunidades do território norte-americano, alimentando mais de 10,000 crianças por dia.
“Em 1967, um grupo de cineastas, fotógrafos e trabalhadores dos media, formou um colectivo para fazer filmes politicamente relevantes partilhando os nossos recursos, capacidades e equipamentos. Enquanto indivíduos, tínhamos feito a cobertura de variados eventos que considerávamos notícia : manifestações, actos de resistência e incontáveis injustiças e abusos. Às vezes, os filmes eram feitos e às vezes não. (…) Decidimos fazer filmes que mostrassem o outro lado das notícias. Parecia-nos claro que os meios de comunicação estabelecidos não iam abordar os assuntos que punham em causa a sua própria existência.” Roz Payne, membro do colectivo Newsreel, in “Early NR Life”
O despertar de um movimento de nova esquerda (conhecido simplesmente como o Movimento, que encontraria o seu melhor retrato no legado dos Newsreel) define o final da década de 60 na América. Nas gerações jovens, fervorosos sentimentos de afastamento e de dissidência respondem às estruturas sociais, na consciência comum de que a base dos problemas da sociedade se alicerçava numa incomportável desigualdade. A solução parece ser a radicalização da acção política, segundo Bill Nichols (3) catalisada por factores como “a exposição à guerra do Vietname, a luta pelos Direitos Humanos e, posteriormente, pela ideia do Poder Negro”, assim como pela “contra-cultura”( da qual os Panteras Negras são um dos principais ícones), e “a alienação opressora da vida de classe média na América”. Em plena guerra do Vietname, as pretensões imperialistas americanas denunciadas pela sua política externa, são alvo contínuo de escrutínio na sociedade. Exacerbam-se os debates em torno das questões do racismo, da desigualdade entre classes, e das injustiças contra minorias étnicas. Os ecos dos discursos de Martin Luther King acerca da não-violência opõem-se às defesas da violência como procedimento transformador.
Stokely Carmichael, acompanhado de perto por um grupo de jornalistas suecos para o filme The Black Power Mixtape 1967-1975, de Goran Olsson, 2011
“Este país é uma nação de ladrões. Roubou tudo o que tem, a começar pelo povo negro. Os Estados Unidos não podem justificar a sua existência enquanto polícias do mundo por muito mais tempo. Não quero ser parte da “american pie”. A “american pie” significa violar a África do Sul, espancar o Vietname, espancar a América do Sul, violar as Filipinas, violar qualquer país em que já tenhas estado. Não quero a porcaria do teu dinheiro. Temos de questionar se queremos ou não que este país continue a ser o mais rico do mundo ao preço de violar todos os outros”. Stokely Carmichael, activista e Primeiro Ministro Honorário dos Panteras Negras até 1967
Se a marcha de 50,000 americanos até ao Pentágono, em Outubro de 1967, foi um dos emblemas centrais do protesto anti-guerra, foi também um dos pontos cruciais que definiram a posição dessa nova esquerda americana, estruturada na mesma base colectiva que a força daquela alargada manifestação espelhou. Este dia e este espírito foram ainda essenciais para o estabelecimento do colectivo Newsreel. Encontravam-se, entre os protestantes, três núcleos de cineastas (que incluíam, entre outros, Robert Kramer, Norm Fruchter, Robert Machover, Peter, Allan Siegel, Jonas Mekas, e Melvin Margolis). Como descreveria Siegel (4), “permanecia ainda um tal sentimento de euforia e de solidariedade desde aquela manifestação no Pentágono que, à partida, ninguém teve dificuldades em aceitar a proposta de juntarmos todas as nossas filmagens e rapidamente fazermos um filme, em vez de cada qual se debater individualmente para se fazerem vários.” O grupo formar-se-ia em Nova Iorque em 1967 e a energia que motivou os seus primeiros anos iria materializar-se numa breve mas prolífica existência : segundo Robert Kramer, as várias linhas políticas evocadas no “debate interno da organização manifestam-se nos seus próprios filmes”.(5)
“A necessidade de uma identidade emergiu da primeira reunião, no Anthology [Film Archives]. Tornou-se imperativo definir a organização e estabelecer uma presença. As questões práticas foram contidas a favor dos temas filosóficos, definidores. Quem éramos? De onde vínhamos? O que era o cinema? Qual o propósito de fazer filmes?” Allan Siegel, membro fundador dos Newsreel, in “Some notes about the Newsreel and its origins”
“Há problemas no desenvolvimento e manutenção desta forma colectiva, relacionados com a questão da assimilação. A assimilação do individual no colectivo. Ao fazermos filmes juntos que reflectem um colectivo, um movimento de ideias e acções mais do que a individualidade do artista, devemos desenvolver novos valores, formas, critérios para a interacção individual. As diferenças técnicas e as análises de conteúdo devem ser trabalhadas colectivamente. O corpo deve assimilar o filme resultante ou não poderá ser distribuído pelo Newsreel.” Marilyn Buck e Karen Ross, membros dos Newsreel (6)
As aspirações inclusivas dos Newsreel, motivadas pelo ponto de partida colectivo, resultam num legado de filmes onde é difícil delinear os traços formais identificativos. Talvez, como Winter Soldier, estejam no indefinível entre o documentário e o documento. Sobre o que falta em estilo e em técnica, podemos responder com alguns factos : as restrições de orçamento, a desigualdade entre a experiência e valores artísticos dos intervenientes, e ainda as pressões temporais; como lembra Donal Foreman, “os colectivos Newsreel tinham o objectivo de filmar e terminar pelo menos dois filmes por mês”. Este elogio da velocidade (que não se envolvia nos temas e realidades descritos senão com um olhar de superfície, que não assentava num gesto planeado de filmagem) procurava replicar-se junto do espectador – o impacto do visionamento devia ser fracturante e convocar uma resposta emotiva mais do que intelectual. Uma abordagem oposta à de Godard e Gorin no Grupo Dziga Vertov, que o primeiro realizador abertamente critica :
“Não mostram senão o tipo de coisas CBS – polícias a bater em estudantes, estudantes a retaliar. Tal e qual uma série de televisão. E nem sequer têm o sentido de humor do Jerry Rubin. Mas um cineasta revolucionário não se limita a mostrar uma greve. Explica o que está por trás dela.” Jean-Luc Godard sobre os colectivos Newsreel
Mas se algo une os grupos Vertov e Newsreel, é a vincada postura de oposição aos modelos dominantes da época em que se inserem, e uma conceptualização experimental do público e da forma como a linguagem fílmica afecta a sua vivência do filme. Lembrar a tumultuosa década de 60 nos Estados Unidos é inserir o ímpeto produtivo do colectivo Newsreel num clima de tensões permanentes, de picos de radicalismo político, de mudança social intensa. Um posicionamento contra os sistemas de produção e exibição dominantes, levou-os ao estabelecimento de um modelo próprio e auto-suficiente que funcionava de forma independente, e que garantia que os filmes dos colectivos Newsreel fossem continuamente mostrados em contextos comunitários (em bairros associados à nova esquerda, junto de grupos anti-guerra ou de apoio a prisioneiros, junto dos Black Panthers ou dos Young Lords…), não conhecendo uma estreia em sala senão em 1971, com The Women’s Film.
Guiados pela vontade comum de mudança social, os colectivos Newsreel, rapidamente se disseminaram pelos Estados Unidos e lutaram lado a lado com os movimentos civis, obtendo acesso privilegiado aos grupos revolucionários. O núcleo de Nova Iorque, o primeiro dos Newsreel, rebaptizou-se nos anos 70 como Third World Newsreel, e tem vindo a expandir e reforçar os princípios da sua fundação : é hoje a mais antiga entidade de audiovisual americana dedicada às questões do trabalhadores e estudantes de cor. O espírito agrupador presente na fundação do colectivo Third World, alinhava num bloco contíguo activistas das variadas lutas minoritárias, em torno de causas de interesse comum – que só a força da união poderia ganhar.(7)
Cartazes do artista-activista Malaquias Montoya para a Third World Liberation Front; Greve e paralisação da Universidade de S. Francisco entre 1968-1969; capa da edição de Março de 1969 do jornal da TWLB de Berkeley, Universidade da California. A fotografia, de Muhammad Speaks, representa a solidariedade entre os líderes do protesto: Richard Aoki (da Asian American Political Alliance), Charlie Brown (da Afro American Student Union) e Manuel Delgado (da Mexican American Student Confederation).
O que são hoje dados adquiridos como, por exemplo, a existência de cadeiras de Estudos Étnicos nas universidades, não eram uma necessidade óbvia há não poucas décadas atrás. Não foi senão a partir da primeira greve por Estudos Étnicos, em 1968, na Universidade Estatal de São Francisco e depois na Universidade da Califórnia, que o sistema de ensino superior americano, hoje um dos mais avançados do mundo, considerou a dimensão crucial dos estudos da etnicidade e o seu impacto global. Este seria o mais longo dos protestos estudantis nos Estados Unidos, e compreendia o esforço conjunto não só de alunos e académicos, como da Third World Liberation Front (TWLF), da Black Student Union, da Latin American Students Organization, da Asian American Political Alliance, da Philipino American Collegiate Endeavor e da Native American Students Union. Só em 1972 seria fundada uma Associação Nacional para Estudos Étnicos nos EUA, e uma cadeira de Estudos Étnicos Comparativos introduzida nas universidades.
Talvez Black Panthers (de Agnès Varda, 1968) seja o mais estilizado dos retratos do partido, o mais descritivo das formas essenciais em que a auto-representação (roupa, cabelos, postura, propaganda…) agiu para transmitir uma imagem de força e de coesão. A ideia de organização visual esteve tão vincadamente presente, e o grupo tão receptivo ao registo pelo filme e pela fotografia que, de entre o universo dos grupos de dissidência política, ícones associados os Black Panthers serão, ainda hoje, alguns dos mais commumente rememorados.
1970. FINALLY GOT THE NEWS
Colectivo Newsreel de Detroit
(Steward Bird, Rene Lichtman, Peter Gessner, John Luis Jr.)
“ Historicamente, os trabalhadores negros foram a pedra fundadora sobre a qual o império industrial americano foi construído e se manteve. Começou com a escravatura há mais de quatrocentos anos, quando negros foram capturados na costa oeste africana, embarcados para os EUA e colónias, e usados para produzir valor acrescentado. Com a escravatura, a margem de valor acrescentado esperada ao povo negro era enorme, porque o que lhe retribuíam era o mínimo: um mínimo de comida, um mínimo de abrigo, um mínimo de roupa. O mínimo necessário para produzir mais uma geração de escravos. ” testemunho de John Watson, líder sindical da Liga dos Trabalhadores Negros Revolucionários, em Finally Got The News
Nos finais da década de 60 e 70, com a crise na indústria automóvel, o principal motor de desenvolvimento da região de Detroit, o modelo fordista de montagem industrial entra em declínio, e algumas das fraquezas deste sistema de manufactura tornam-se evidentes. Finally Got The News (1970) é uma colaboração entre o colectivo Newsreel de Detroit e a League of Revolutionary Black Workers que nasce deste estado de rotura, e examina o papel central desempenhado pelos trabalhadores negros na economia americana. Acompanha tanto os processos de elaboração teórica da Liga como a sua tradução num programa de luta pelos direitos dos trabalhadores industriais. Um dos principais objectivos da Liga foi o de desconstruir o racismo por trás do sindicato que representava os trabalhadores da indústria automóvel (UWA de United Autoworkers), que a Liga afirma, provocatoriamente, tratar-se de uma abreviatura para U Aint White. O seu activismo político, confinado a Detroit, não teve a mesma expressão pública de outros movimentos nacionais da época, mas a eficácia imensa dos seus resultados foi verdadeiramente inspiradora para outras frentes da luta operária, que não só a directamente ligada ao poder negro. Era o elogio do poder operário enquanto potência revolucionária, fortificado pela sua transversalidade comunitária – evocando, inclusivamente, o carácter internacionalista da sua luta.
O movimento negro enquanto um movimento de classe, evoca uma mudança totalizante da relação entre trabalhadores e proprietários. (…) Mas o que estamos a dizer é que não queremos que ninguém seja explorado, que queremos a eliminação da exploração em todo o planeta, que queremos a eliminação do racismo no planeta, que queremos a eliminação de quaisquer condições que seja desfavoráveis ao proveito da vida.” testemunho de trabalhador manual negro, em Finally Got the News
Organize, Organize, Organize. O mote que Stokely Carmichael dirigiu às juventudes africanas nos anos 60, reconhece a sua eficácia concreta ao longo de Finally Got the News, um das mais vívidas argumentações a favor da junção de forças que o cinema alguma vez descreveu. Como afirmava Dan Georgakas (9),“este documentário de uma hora dá-nos uma amostra do que as massas podem fazer.”
De facto, Finally Got the News chega com a força de um documentário estruturado e incisivo, precioso entre o vasto legado dos Newsreel, e tão essencial para perceber um segmento do passado da história da luta operária, quanto para justificar a sua continuidade num presente onde as mesmas injustiças florescem. Um retrato do trabalho dentro e fora da fábrica, da linha de montagem para as linhas de greve. Sobre e pelos trabalhadores. E se o envolvimento de John Watson, líder da Liga, começou relutante face ao projecto fílmico proposto pelos membros do Newsreel (9), o seu auxílio foi crucial no definir das orientações gerais do filme, que preferiu mais direccionadas para uma estrutura pedagógica dirigida aos trabalhadores negros. Apesar de, a princípio, o trabalho técnico ter ficado à responsabilidade da equipa Newsreel, ambos desejavam que os membros da Liga pudessem também ser treinados na técnicas básicas do cinema ao longo do processo de colaboração, o que aconteceu.
O filme inicia-se com uma recapitulação histórica, que recua ao passado da escravatura, e tenta um levantamento comparativo das estruturas endógenas que persistem e paralisam a ascensão do povo negro na sociedade. Na primeira meia hora, é num misto de animosidade e clarividência que o discurso de Watson sobe de tom, e legenda de forma empolgante a necessidade de construir os laços comunitários necessários para que a História da relação entre o povo negro e o sistema laboral possam no presente conhecer capítulos mais justos.
É, no fundo, um filme de estratégia. No seu núcleo, detalha-se o esforço conjunto para a construção de uma organização activa e independente, capaz de endereçar problemas reais dos trabalhadores, tais como as desigualdades salariais entre os operários brancos e negros na mesma fábrica, o grau do desemprego entre homens e mulheres negros, a velocidade esgotante do trabalho na linha de montagem, ou os fracos salários destinados aos operários fabris em geral, apesar dos lucros que dão a ganhar.
“És novo, 24, 25 anos, e olhas para os trabalhadores mais velhos, 45, 47 anos, que têm de trabalhar mais horas para, de vez em quando, tirarem um fim de semana de folga. E então começas a perguntar-te: mas o que raio é isto?” testemunho de jovem trabalhador sobre a linha de montagem, em Finally Got the News
“Acho que os seres humanos não foram feitos para fazer a mesma tarefa monótona e repetitiva, duzentas ou trezentas vezes por dia, todos os dias.” testemunho de filho de trabalhador branco acerca do trabalho na linha de montagem, em Finally Got the News
Como recorda John Watson num dos segmentos, problematizar o trabalho manual é reflectir acerca da “transformação do suor e do sangue em produtos acabados”. Se, em busca de alguma igualdade, as fundações marxistas do fordismo previam salários suficientemente altos para que os trabalhadores da linha de montagem pudessem adquirir os produtos que construíam – os modelos Ford – entre os avanços do capitalismo, foi a competividade estimulada pela interdependência global dos mercados o que acabou de estilhaçar o velho fordismo. Assim, o que ouvimos em Finally Got The News, ecoa os problemas anteriormente enunciados pelos operários fabris em Besançon. A questão da tensão entre os ritmos biológicos do corpo do trabalhador e as imposições cronometradas da máquina, é crucial para perceber que escravatura é esta que tanto os Newsreel, como a League of Black Workers ou os Colectivos Medvedkine, em conjunto, condenam e combatem. Em causa, está afinal um atentado à auto-determinação do corpo humano e ao cumprimento da sua plenitude física (é um corpo permanentemente assombrado pela possibilidade de mutação ou de amputação, um corpo à mercê da máquina que opera e não o contrário… ). Mas não foram as máquinas que definiram o ritmo a que o operário trabalha, nem tão pouco foi o homem que as programou. O ritmo do trabalho foi definido pelas exigências da economia, pelos imperativos da competitividade, pela inserção nesse mercado comum. Percebemos que aos complexos fluxos que estabelecem a globalização como hoje a conhecemos, corresponde um abstracto sistema ditatorial de ordem global, enredado entre entidades gerais e sem rosto e entre os imperativos internacionais cuja origem é já dificilmente sondável. Mas é exactamente porque estamos aqui enledados, que filmes como Finally Got The News são vitais, na sua actualidade tremenda. Hoje a luta é mais internacional do que nunca.
CAPÍTULO 5 | AMÉRICA A ARDER
1971. EL PUEBLO SE LEVANTA – THE YOUNG LORDS FILM
Colectivo Newsreel de Nova Iorque
“Não caímos do céu : A luta do nosso povo criou os Young Lords.” Richie Pérez in “A Young Lord Remembers”
Se a Acta dos Direitos Civis, aprovada em 1964, acabava legalmente com quaisquer formas de segregação étnica ou discriminação racial, o quotidiano na América para a maioria das franjas sociais em nada parecia ter beneficiado das novas leis. Pelo final da década de 60, um terço da população Porto-Riquenha vivia nos EUA. A maioria partira com o sonho de uma vida melhor, prometida pela propaganda americana, mas à chegada, desse sonho pouco encontrou. Esperava-os uma vida pobre e difícil, de habitação precária, educação escassa, salários baixos e emprego crescente, e uma racismo social endógeno plasmado na desconfiança dos grupos dominantes em relação ao trabalhador de cor.
El Pueblo Se Levanta, Newsreel Collective de Nova Iorque, 1971
El Pueblo se levanta, também chamado de Young Lords Film (seleccionado para a retrospectiva United We Stand) resulta do olhar do colectivo Newsreel de Nova Iorque sobre os desenvolvimentos da luta porto-riquenha ao longo do ano de 1971, a par da expansão do Partido dos Young Lords. Este partido, originalmente constituído em meados dos anos 60 por uma primeira geração de jovens de ascendência porto-riquenha nascidos nos EUA, tinha como cenário de referência as experiências dos povos latinos nos guetos suburbanos da América e, à semelhança dos Black Panthers, defendia a luta armada pela auto-defesa. Directamente inspirado noutras causas e valores que lhes eram contemporâneos, em particular na luta pela liberação negra, no movimento anti-guerra e na revolução cultural chinesa, procurou um posicionamento que privilegiava o reforço identitário : a luta salvaguardava o seu passado enquanto povo, contemplando a integração e futuro dos porto-riquenhos na sociedade americana. À habilidade organizativa do partido, sucede uma veloz disseminação da causa e a larga adesão às acções públicas conseguiu protagonismo regular nos media locais e nacionais – o que contribuiu para o crescimento do partido ao longo do território americano. Graças ao nacionalismo na base da sua acção política, os Young Lords puderam dirigir a atenção pública para a luta pela independência com que o povo porto-riquenho se debatia, exigindo auto-determinação para a ilha, e um governo nacional de controlo comunitário. É a expansão da luta em Nova Iorque, onde vivia um quarto dos Porto-Riquenhos, que acompanhamos mais de perto neste El Pueblo Se Levanta.
O capitalismo é apenas uma fase da raça humana. in Ideology of the Young Lords Party, 1972
Palante, Sempre Palante!, Iris Morales, 1996
Em Outubro de 1969, os Young Lords ocuparam a primeira Igreja Metodista Espanhola, em Nova Iorque, para pôr em prática um programa alimentar comunitário, inspirado pelo trabalho realizado pelos Panteras. Cha Cha Jimenez, líder do partido descreve (no filme Palante, sempre Palante) o projecto como “um centro de dia para cuidar das crianças das mães necessitadas que precisam de ir trabalhar”. Estes jovens activistas viriam a ser brutalmente despejados da Igreja que albergava o seu serviço comunitário, numa ocasião de tal injustiça que a visibilidade mediática da violência envolvida só fortificou a causa porto-riquenha. Cha Cha tornou-se um símbolo do poder revolucionário juvenil e, apesar da sua dissolução em meados dos anos 70 (7), o legado dos Young Lords permanece até hoje como exemplo da capacidade da organização popular em responder de forma eficaz às faltas da comunidade que conhece. Nessas ocasiões em que se torna cruamente óbvio como os interesses do poder nem sempre correspondem aos das pessoas, pode decalcar-se de El Pueblo Se Levanta uma lição para servir estes nossos dias de tantas faltas.
1972. RED SQUAD
Pacific Street Films
(Howard Blatt, Steven Fischler, Joel Sucher)
Red Squad, Pacific Street Films, 1971
Os Red Squads, eram uma unidade especial da polícia norte-americana, especializada em infiltração, espionagem e recolha de informação relativa a organizações activistas políticas e sociais. A criação desta unidade remonta a 1886, e expandiu-se a partir do ‘First Red Scare’ – um clima disseminado de fobia de expansão do anarquismo e do bolchevismo, que atravessou os anos de 1919-1920 nos Estados Unidos. O fomento deste estado de paranóia revelou-se uma arma contra várias organizações sindicais, comunistas, anarquistas, comunitárias ou quaisquer outras consideradas dissidentes, método que ao longo da história da governação americana, conheceu incontáveis variações, e até hoje vai celebrando ainda os seus capítulos de fobia vermelha.
Em 1969, o colectivo Pacific Street Films era fundado por Steven Fischler e Joel Sucher, colegas na Universidade de Nova Iorque (NYU). Ao filmarem suspeitos agentes infiltrados em manifestações e protestos, enquanto projecto universitário, foram eles próprios perseguidos, vigiados e presos. A urgência de resposta materializou-se no seu primeiro documentário : Red Squad (1971), um projecto de contra-vigilância que ousa voltar o mesmo dispositivo de policiamento contra os polícias. E, da audácia de quem nunca sucumbe às contínuas pressões de que é alvo, brota o ímpeto reactivo que derrotou o medo. Red Squad é um exercício de ironia que circula entre perseguições, que denuncia o ridículo de uma monitorização desproporcionada (que atinge os estudantes em causa, a sua família, vizinhos, colegas) e que, em simultâneo, evidencia a capacidade de usar os mesmos instrumentos para replicar o ataque, transformando as presas de sempre nos caçadores.
Red Squad é um argumento vital da necessidade de viabilização do acesso ao filme, compreendendo o seu poder enquanto arma e compreendendo a justiça concedida a todo aquele que pode contar a sua própria história pelas suas próprias mãos.
“O poder nada concede sem luta. Nunca concedeu e nunca concederá.” Frederick Douglass, líder americano do movimento abolicionista
NOTAS :
(1) A “Teoria do Dominó”, promovida pelo governo americano entre as décadas de 50 e 80 para justificar intervenções armadas em vários cantos do globo, especulava que, assim que uma região ficasse sob domínio comunista, os países circundantes haveriam de se lhe seguir, como se apanhados num efeito de dominó. Assim, na perspectiva americana, se todo o território vietnamita caísse em mãos soviéticas, toda a Ásia seria contaminada pelo totalitarismo comunista.
(2) O “Agente Laranja” foi um herbicida usado pelas tropas americanas na Guerra do Vietname para eliminar a selva que a NLF (National Front for the Liberation of South Vietnam) usava para se camuflar, facilitando a visibilidade pelas tropas aéreas americanas. Só nos anos 60 se viria a demonstrar que o produto libertava dióxinas extremamente cancerígenas, responsáveis inclusivé por várias malformações genéticas que ainda hoje atingem inúmeras crianças vietnamitas. Segundo dados da Cruz Vermelha, estima-se que 3 milhões de pessoas tenham sofrido devido à exposição ao Agente Laranja ao longo de três gerações – e não se sabe quantas mais serão afectadas. Apesar da Convenção de Genebra ter estipulado a 17 de Junho de 1925 a proibição de armas químicas em tempo de guerra, o Agente Laranja era considerado um desfolhante, cujos efeitos secundários não eram ainda conhecidos. Apesar de, até 1993, o “Department of Veterans Affairs” ter compensado monetariamente 485 vítimas americanas do Agente Laranja, houve um total 39,419 queixas de veteranos que estiveram altamente expostos ao produto em serviço no Vietname. Não se assinalam até à data quaisquer compensações equivalentes ao povo vietnamita. Segundo a CNN, foi apenas este ano que, devido a pressões internacionais, os EUA principiaram um laborioso processo de limpeza dos agentes tóxicos lançados no territótio vietnamita nos anos 60 e 70.
(3) Bill Nichols, in “Newsreel: documentary filmmaking on the American left”, (1980)
(4) Allan Siegel in “Some Notes About Newsreel and its Origins”
(5) Robert Kramer, citado por Donal Foreman in “The filmmaker-activist and the collective”
(6) Robert Kramer, Norm Fruchter, Marilyn Buck, Karen Ross, “Newsreel” in Film Quarterly,1968/Dezembro 1969, Vol. 21, No. 2, pp 43-48, ( citado por Donal Foreman in “The filmmaker-activist and the collective”)
(7) Em resposta à “maior ameaça à segurança interna do país”, J. Edgar Hoover, líder do FBI, deu início em 1968 ao programa de contra-inteligência COINTELPRO, para travar a ascensão das alianças entre os vários grupos revolucionários, que seguiram as pisadas dos Panteras: o Peace and Freedom Party, Brown Berets, Students for a Democratic Society, SNCC, SCLC, Poor People”s March, Cesar Chavez, American Indian Movement, Young Puerto Rican Brothers, Young Lords e muitos outros. Com o objectivo de destruir os Black Panthers, o FBI dá início a uma agenda de assassínios cirúrgicos, que eliminavam os líderes do partido e apoiantes, assim como a um programa de pressão psicológica e de espionagem infiltrada. (Processo presente no filme The Black Power Mixtape 1967-1975, de Goran Olsson, 2011) O mesmo aconteceu no interior do partido dos Young Lords e noutras organizações similares.
(8) Durante a década de 60, a popular actriz Jean Seberg apoiou financeiramente vários grupos dos direitos civis, em particular os Panteras Negras, o que a colocou sob a mira do FBI. Ao abrigo do programa COINTELPRO, atingiram-na medidas de intimidação, monitorização e difamação, reveladas depois da sua morte em 1979, já longe da administração de Hoover. Seria um dos casos mais mediáticos da perseguição interna aos activistas dos movimentos civis nos anos 60.
(9) citação de Dan Georgakas, activista e fundador em 1966 do grupo anarquista Black Mask, in “Finally Got the News: The making of a radical film”. Neste artigo, Dan Georgakas descreve o clima de tensão ideológica existente entre os Panteras Negras e a Liga dos Trabalhadores Negros Revolucionários, em 1970.