Ang Lee é um realizador difícil de encaixotar. Muitos há cujo trabalho, independentemente da sua qualidade, se pauta por uma lógica óbvia e que, para quem veja os seus filmes, se torna facilmente reconhecível. Lee não é desses. Quando um realizador filma desde o academismo floreado dos filmes de época britânicos [Sense and Sensibility (Sensibilidade e Bom Senso, 1995)] ao thriller de espionagem sexual [Se, jie (Sedução, Conspiração, 2007)], passando pela adaptação de banda desenhada [Hulk (2003)] ou ainda o western [Ride with the Devil (1999) ou na vertente homoerótica, Brokeback Mountain(O Segredo de Brokeback Mountain, 2005)], sem esquecer claro o filme de Kung fu [Wo hu cang long (O Tigre e o Dragão, 2000) ou na vertente de comédia dramática Tui shou (A Arte de Viver, 1992)] e o drama depressivo de subúrbio [The Ice Storm (A tempestade de Gelo, 1997)], então está visto que não há género que o contenha.
Sendo o encaixotamento difícil, é com igual dificuldade que extraio um veio temático que me parece estar presente em todos os filmes de Lee, quase sempre de forma bastante marcada: os conflitos familiares. Vejamos: logo no primeiro filme do realizador, Tui shou, descreve-se a incapacidade de uma família receber o pai, já idoso, de um dos cônjuges; em Xi yan (O Banquete de Casamento, 1993) conhecemos a dificuldade de um filho em confessar a sua orientação sexual aos pais; na sua primeira incursão europeia Lee foi logo adaptar a novela de Jane Austen que versa, toda ela, sobre as linhagens de sangue e as portas que se abrem (e que se fecham) por se pertencer a umas não a outras; Hulk é talvez o mais freudiana (e edipiano) dos filmes de super-heróis;Taking Woodstock (2009) aproveita a preparação do mítico festival para trabalhar a emancipação de um filho para com os seus pais.
Sendo assim, percebemos que Life of Pi (A Vida de Pi, 2012) não é excepção. Um adolescente, desejoso de acreditar na fé seguinte que lhe bata à porta, vive numa casa onde o conhecimento é todo fundado no facto cientifico e portanto um conflito natural gera-se entre patriarca e cria. No entanto, sendo esta a história de sobrevivência a um naufrágio, pouco espaço é dado a essa relação conflituosa pai-filho, pois rapidamente o filho fica separado de tudo e de todos.
Mas fora este aspecto (que de tão vago se poderia encontrar em quase qualquer cinematografia suficientemente desenvolta), o que notamos é que, em cada filme de Ang Lee, o que interessa é a história, e é ela quem comanda (incluindo cada uma das escolhas do realizador -se se filma o festival de woodstock tem que se recorrer ao splitscreen, se se filme o drama de época inglês há que filmar academicamente). Poderíamos dizer pois que Lee é um camaleão com uma câmara ao ombro, mas isso poderia subentender uma qualquer natureza reptiliana (que não é o caso), por isso altero a comparação para um empregado de mesa que, sempre impecavelmente limpo e com estonteante elegância, entrega os martinis ao seus clientes sem nunca entornar um gota que seja. Ou seja, Lee é um excelente concretizador – o tarefeiro ideal – que se sabe desviar de todas as curve balls que lhe lançam.
E se há curve balls, adaptar livro homónimo de Yann Martel (Man Booker Prize de 2002), é uma delas (ainda mais quando um dos seus colaboradores de longa data, James Schamus – produtor e co-argumentista de quase todos os seus filmes, deixa pela primeira vez de o ser). Sem o seu argumentista de serviço é-lhe apresentado o argumento de David Magee, e sendo este um filme de estúdio com um custo perto dos 120 milhões de dólares, há que acatar as decisões dos big bosses. É aí que o filme coxeia (mas também é só aí), numa obstinação por entrar em caminhos filosóficos mais que batidos e de forma completamente leviana, a armar ao chico-esperto com sermão de vão de escada (vais ouvir uma história que te fará acreditar em deus).
Mas se uma perna coxeia a outra ganha músculo para compensar; Claudio Miranda, que fotografa o filme, faz um trabalho deslumbrante. O director de fotografia vem especializando-se em filmes como este, onde o digital toma parte maior [The Curious Case of Benjamin Button (O Estranho Caso de Benjamin Button, 2008) e TRON: Legacy (TRON: O Legado, 2010)]. A mestria de Ang Lee é toda no sentido de contar a história da melhor forma possível e sendo esta a saga de um rapaz num barco com um tigre (e ilhas carnívoras repletas de suricatas), então está visto que o tom terá que ser fantasioso. O digital aqui é brilhante, as cores rebentam nos limites do contraste (será interessante reparar que quando o racconto termina, as cores esmorecem), o trabalho do CGI (na construção pixel a pixel dos animais e do oceano) nunca se sobrepõe à narrativa e é sempre meio para que ela progrida. Veja por exemplo os vários planos em que o céu e a água se fundem fazendo crer que Pi flutua em pleno ar – em total isolamento do mundo. Da mesma forma o uso do 3D vem acentuar o fantástico da história que se está contando (e é talvez Ang Lee o primeiro cineasta a perceber todas as potencialidades da terceira dimensão).
Não sendo o melhor filme do realizador é talvez aquele que revela, de forma mais explícita, o seu modus operandi; a história é rainha. Há a esse respeito um plano me parece digno de nota: o menino Pi, desejoso de aprender todas as lendas da deusa Vishnu, houve as histórias para adormecer que a mãe lhe conta e depois lê-as de novo em formato banda desenhada (ao que conta o mito, dentro da boca da deusa estava todo o universo); a câmara de Lee filma as tirinhas coloridas e de repente elas ganham dimensão. As duas dimensões do desenho viram as três do filme; a história do livro ganha vida. É isto que Life of Pi tenta e alcança, filmar o impossível com a candura de uma história de adormecer.