Apesar de ser ou por ser norte-americano e um cidadão do mundo, a relação que Peter Hutton estabelece com a Big Apple é aquela que podemos ter com uma pessoa quase desconhecida ou com uma pessoa tão conhecida que nos estamos sempre a esquecer dos seus traços mais visíveis. O desafio é real, na medida em que este cineasta nascido em Detroit, viveu parte da sua juventude no alto-mar, acompanhando as actividades comerciais do seu pai, pelo que regressou aos Estados Unidos já adulto. Dessa experiência – uma experiência do “longínquo”, entenda-se – resultaram duas coisas: primeiro, um interesse em Hutton pelo desconhecido e, segundo, um interesse pela redescoberta das formas que conhece de cor (by heart). Essas formas podem ser a água, um barco, uma figura humana, uma estátua “icónica” ou um lugar de reconhecimento universal como… exacto: Nova Iorque.
Entre Images of Asian Music (A Diary from Life 1973-1974) (1974) e a sua trilogia de Nova Iorque (1979, 1981 e 1990), terá acontecido – como notam alguns dos entusiastas da sua obra – uma mudança crucial: o abandono do género – muito em voga no undergound norte-americano – do cine-diário para uma menos evidente forma de abordagem pessoal da paisagem. P. Adams Sitney nota isso num dos poucos artigos escritos sobre o cineasta norte-americano, «Le domaine de l’immanence: les films de Peter Hutton» (in Trafic, n.º 72, Inverno 2009) sublinhando aliás que essa passagem, que coincide com a primeira parte dessa trilogia, representa a conquista da maturidade do seu cinema. Sem se distanciar muito daquilo que experimentara, por exemplo, em Images of Asian Music, Hutton como que se “retira” totalmente dos seus filmes, sem que tenha atraiçoado – bem pelo contrário – a sua visão muito específica – e, nesse aspecto, muito pessoal – sobre as configurações das paisagens que vão vendo e que vão sendo vistas pela sua vida.
Se nesse filme passado no alto-mar, para os lados da Malásia, o principal objecto de (de)formação era a música na completa ausência de som, em New York Portrait Part I (1979) somos mais imediatamente assaltados pela força pictórica, ou melhor, fotográfica, ou melhor, escultórica das imagens que (só pelo título) reconhecemos pertencer a Nova Iorque. O gesto é semelhante: se em Images of Asian Music o título funciona como primeira proposta programática para a experiência do filme, aqui temos a ideia de retrato “tirado” à cidade mais representada, nomeadamente mais fotografada, do mundo. A tentação será fazermos todo o tipo de analogias com as fotos de Atget, Stieglitz ou, mais ainda, Brassaï: planos nocturnos interrompidos por contornos de edifícios e silhuetas de transeuntes, reflexos “acidentais” em poças de água na estrada de alcatrão, a vida urbana filtrada pelo nevoeiro ou pela falsa transparência da janela de um apartamento que não sabemos de quem é, céus como que desenhados a carvão… tudo se dá a ver sobre a escuridão profunda, um preto-muito-preto e um branco-muito-cinza que nos “pintam” formas mais ou menos identificáveis.
Na primeira parte, produz-se a ideia que Jon Jost escreveu num artigo intitulado «Image Conscious» (in American Film, Dezembro 1985): “Anyone familiar with New York can immediately sense its presence, even though many of the images edge perilously close to the abstract”. Contudo, é só na Part II (1981) que Hutton levanta um pouco “o véu” sobre a cidade que se anuncia no título mas que parece não estar lá, no filme: apreendemos melhor a agitação das ruas, reconhecemos os edifícios altos e detectamos – era inevitável – os sinais aos quais a Part I deste retrato tanto parecia evitar: Coney Island, a Estátua da Liberdade, o rio Hudson. Ao segundo filme, o espectador menos nova-iorquino já está convencido: isto é mesmo Nova Iorque. (Podia não ser, pela mesma razão que Images of Asian Music não tem som…)
Com uma maior presença humana nesta segunda parte, Hutton começa a produzir um jogo constante com a escala, logo, com uma certa redução do homem à sua posição relativa no espaço. Na realidade, parece que a perspectiva predominante (ainda) é a dos edifícios, ao ponto das pessoas capturadas na imagem se con-fundirem com eles. Este “devir pedra” das figuras naturais (como o Homem, a água e o céu) será, como veremos na Part III (1990), uma das mais brilhantes narrativas escondidas de toda a trilogia. A toda ela está obviamente associado o “fantasma da fotografia”, seguindo um pouco aquilo que David Campany, numa palestra recente dada a propósito dos 50 anos de La jetée (1962) na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, disse ser um dos primeiros traços ontológicos da fotografia, a saber: a sua capacidade para “animar os mortos e “ossificar” os vivos”. Da mesma forma, o que se passa com Hutton – que deve ser dos últimos cineastas a pensar o cinema “fotograma a fotograma” (e, para tal, o silêncio não é um pormenor) – é que ele anima o morto (por exemplo, as estátuas) e ossifica o vivo (por exemplo, as pessoas com que se depara na rua e que, provavelmente ouvindo instruções para tal, “congelam” os seus movimentos em frente à câmara).
A relação com a pedra, a matéria e a memória será uma dos pontos de contacto possíveis que alguns autores estabelecem entre o cinema de Hutton e James Benning – este último, aliás, não tem pejo em reconhecer o valor desta (in)voluntária “irmandade” temática e estética. Apesar dela, Hutton não é exactamente um cineasta da duração como é Benning, mas da “dura acção” da memória sobre o tempo. Benning, num filme como One Way Boogie Woogie/27 Years Later (2005), entre outros, também aprofunda a questão do tempo e sua acção corrosiva, mas Hutton – talvez menos político e mais “poético” – opera a partir da interioridade da memória, isto é, não confronta lugares no tempo, não questiona as suas transformações, ou talvez o faça mas sem sair da imagem mental/onírica do espaço… mas que espaço é este que se (re)cria e se (re)articula nos seus planos fotogramaticais? Um espaço interior com poucas ou nenhumas referências ao exterior tipificado pela cultura, como se pela via do sonho e da memória se pudesse aceder ao espaço expurgado dos significantes culturais, que teimam em reduzi-lo a meia dúzia de imagens-postais…. Enfim, a crítica habita o cinema de Hutton, mas não na literalidade máxima de um James Benning.
Essa “dura acção” talvez seja mais detectável na Part III do retrato de Nova Iorque ou no retrato que fez da cidade de Budapeste, Budapest Portrait (Memories of a City) (1986), dois filmes que nos lembram – nas suas insistentes imagens de pessoas imóveis, “ossificadas”, e/ou estátuas – a sua paixão inicial pela escultura, quando se formava no San Francisco Art Institute. Noutro filme, Boston Fire (1979), Hutton dá-nos uma espécie de Ralph Steiner em reverso despertando o lado “matérico” – o “traço” ou a “não fluidez”- da água que, num arco, liga os vultos humanos – de bombeiros – ao fumo interminável que agita os céus… De facto, nem tudo é pedra ou “devém pedra” em Hutton, nomeadamente na sua trilogia de Nova Iorque: o lado gasoso, não palpável, o “véu” sobre as formas que se fixam na película são os elementos fundamentais para emprestar a esta “visão” da cidade uma atmosfera onírica e “rememorativa” únicas – uma espécie de pátina produzida não pelo tempo, mas sim pela memória.
Há um plano incrível na Part III em que uma silhueta humana “prolonga” o preto do edifício para o céu cinzento – como se também ela fosse “efeito de obscurecimento” sobre a paisagem. Este obscurecimento será, também, o efeito da memória. Hutton trabalha-a no sentido de produzir no espaço, in loco, os efeitos da sua rememoração, logo, os efeitos da sua “afecção”. O onirismo é outro aspecto deste trabalho sobre a memória – isso parece-me indiscutível, nomeadamente nesta trilogia de Nova Iorque, mas também no seu retrato (que se diria, enfim, muito sebaldiano) de Budapeste. Lugares vazios, corpos ou “aparições irreais”, um preto demasiado preto e um branco demasiado cinzento para serem “documentais”, qualquer coisa verdadeiramente “expressionista” passa por aqui, devidamente filtrada pelo espírito de Hutton. Parece-me que falar em “sinfonia urbana” é muito insuficiente; fotogramaticalmente, talvez a referência mais exacta seja F. W. Murnau e o seu Sunrise: A Song of Two Humans (Aurora, 1927) ou Dreyer e o seu Vampyr (Vampiro, 1932) ou talvez hoje encontremos o mesmo preto-e-branco, o mesmo grão e a mesma atmosfera inefável em cineastas como Philippe Garrel ou Béla Tarr [será que este viu Budapest Portrait (Memories of a City), obra que foi realizada sob alçada dos Béla Balázs Studios? Acredito que sim]. Mas deixemos de nos espantar com toda esta genealogia especulativa e fixemos o essencial deste objecto arqueológico escondido debaixo do manto de imagens da cidade mais filmada, logo, menos filmável do mundo: Nova Iorque.
Lamentavelmente, o mercado home cinema não é generoso com o cinema de Peter Hutton. Contudo, há uma excepção muito curiosa: no DVD da Oscilloscope de Wendy and Lucy (Wendy & Lucy, 2008), são incluídos como extras os retratos de Nova Iorque e Boston Fire de Peter Hutton, duas obras comissariadas pela própria realizadora Kelly Reichardt. Uma aquisição win-win para qualquer bom cinéfilo.