Foi logo em 1957, ano de lançamento de On The Road, que Jack Kerouac escreveu a Marlon Brando a propor que interpretasse Dean Moriarty, personagem chave no seu romance, enquanto ele faria de Sal, o protagonista e seu alter ego. A carta não obteve resposta. O mais importante, contudo, era outra coisa: era que até hoje sempre se teve a noção (o escritor foi o primeiro a tê-la) de que se tratava de um livro com um enorme potencial cinematográfico. Fosse a abertura ao espaço, ao excesso ou ambos. Começou pois um périplo enorme que nos traz até hoje ao filme de Walter Salles. Entretanto houve vários estúdios envolvidos (a Warner, a Paramount), realizadores (Joel Schumacher, Gus Van Sant, Francis Ford Coppola que comprou os direitos da obra em 79), argumentistas (Russel Banks, Michael Herr, o próprio Coppola e o filho Roman) e claro, actores, muitos actores (Brad Pitt, Ethan Hawke, Johnny Depp e Colin Farrell foram alguns nomes que chegaram a estar interessados ou mesmo envolvidos no projecto).
Ainda Coppola disse uma vez que era muito difícil escrever um argumento a partir do romance pois era importante tratá-lo como um “filme de época”. A estrada de Kerouac tinha uma época isso sabe-se: a reacção ao macartismo, a inquietação do pós-guerra, a dúvida, “como viver?”, a resposta à uniformização política, comercial e mediática, etc. A dúvida com Salles era então saber se teria conseguido, (ele que até “fez carreira” nos road movies: Central do Brasil (1989) e Diarios de Motocicleta (Diários de Che Guevara, 2004)] conceber um roaming pelo Estados Unidos que explicasse isso. Isto é, a importância de On The Road para a beat generation, que é como dizer, como é que Sal Paradise (Sam Riley) ou Houlden Caufield (A Catcher in The Rye) filtram para o seu interior a importância metafísica de uma experiência de crescimento na viagem, no excesso psicadélico, na afirmação de outro como objecto (homo) erótico.
A primeira intuição de Salles é correcta. Ao pegar no argumento de Jose Rivera, que contém os principais episódios do livro, talvez seja até um pouco conservador, no bom sentido, quantos aos ritmos do frenesim a que a obra convidava e invista antes no dourado, no amarelo dos exteriores em viagem e dos clubes de jazz, casas e outras bares por onde Sal, Dean (Garrett Hedlund) e Carlo Marx (a personagem alter ego de Allan Ginsberg interpretada por Tom Sturridge) vão passando.
Contudo, a câmara descritiva de Salles nunca chega a operar essa passagem do exterior (a vida a fervilhar, com as intermináveis festas com álcool, sexo e drogas) ao processo de incorporação de tudo isto ao interior de Sal, isto é, de Kerouac. Assim, fica a faltar a “viagem interior”. Permanecendo no exterior, as referências aos labirintos nietchianos, à viagem de Rimbaud a África, a Baudelaire, ao livro de Proust Du côté de chez Swann (não é um pormenor que o livro seja lido do início ao fim do filme por quase todos, ou por ninguém, e que este seja o início de À La Recherche; como se não fosse possível avançar…) não serão mais do que adereços que ajudam o cineasta brasileiro a filmar o charme rebelde da geração Beatnik, ficando os seus motivos (o drama do filme) na sombra face ao mítico da liberdade, da rebeldia, do sexo.
Não deixa assim de ser irónico que um símbolo da contracultura norte-americana seja hoje narrado indistintamente através de um sistema que assenta em alguns valores aos quais por certo hoje Kerouac se oporia. Embora a energia física dos actores de On The Road, (todos eles de uma disponibilidade espantosa) deixasse adivinhar o potencial do livro, os cigarros, os olhares, os sorrisos, os corpos, o sexo, o desejo, a dança que Walter Salles filma é de outro terreno. Índices de um aborrecimento burguês e contemporâneo que tem a juventude como obsessão e que são para o brasileiro meros pontos de chegada. Enquanto que para Kerouac, precisamente, esses eram pontos de partida. E quando se começava a escrever, finalmente, como no fim do filme, não seriam certamente os sons dos dedos sobre as teclas acompanhados de bits jazzísticos…