O conhecimento de cinema taiwanês no “Ocidente” continua muito limitado às grandes obras de Hou Hsiao-hsien, Edward Yang e Tsai Ming-liang permanecendo outros tantos autores e filmes largamente desconhecidos. Hoje propomos revisitar aqui uma dessas raridades: Redai yu (Tropical Fish, 1995), escrito e realizado por Chen Yu-hsun.
Tropical Fish debruça-se sobre algo não incomum no cinema taiwanês: a infância. Desde os alvores do Novo Cinema Taiwanês, com Guangyin de gushi (In Our Time, 1982) e Xiao bi de gushi (Growing Up, 1983), que a infância e a adolescência mereceram a atenção dos realizadores na ilha Formosa – mas não só. Basta pensarmos em Les Quatre Cents Coups (Os Quatrocentos Golpes, 1959), de Truffaut, para a Nouvelle Vague. Voltando à ilha, tanto Hou como Yang revisitaram a infância (por vezes a própria) em alguns dos seus filmes, de Dongdong de jiaqi (A Summer at Grandpa’s, 1984) e Lian lian fengchen (Dust in the Wind, 1986), de Hou, a Guling jie shaonian sharen shijian (A Brighter Summer Day, 1991), de Yang. E esse particular interesse por essa época de suprema liberdade e grande (e, a espaços, dolorosa) aprendizagem não esmoreceu. Em Jiong nanhai (Orz Boyz, 2008), por exemplo, há ecos do que vemos em Tropical Fish.
O filme de Chen Yu-hsun, cujo trabalho mais recente foi um dos segmentos do filme colectivo Shi jia shi (10+10, 2011), onde também participava Hou Hsiao-hsien, foi há poucos anos objecto de reedição em dvd em Taiwan, numa caixa onde partilhava o espaço com Dust in the Wind e Kong bu fen zi (The Terrorizers, 1986). O filme acompanha o peculiar rapto de dois rapazes por um grupo de small time crooks. O protagonista, Liu Zhi-qiang, é apanhado por engano enquanto procurava, sozinho, os responsáveis pelo sequestro de outro miúdo mas acaba por se tornar no ponto de cruzamento de aspirações diferentes: as dos raptores que procuram apenas melhorar as suas árduas condições de vida, as dos seus pais (e de todo um “público”) que querem que passe um importante exame escolar apesar de ele ser um aluno sofrível, e até a de uma rapariga que fora forçada a desistir das esperanças no seu próprio futuro.
À semelhança de outros filmes taiwaneses, Tropical Fish pinta um fresco da sociedade de Taiwan de forma irónica e, ao mesmo tempo, terna, onde não há verdadeiramente ninguém mau mas onde existe um olhar crítico face a várias questões sociais – como a relação com a televisão e a proverbial obsessão com os estudos – que são abordados com mordacidade.
Em Tropical Fish convivem momentos de ridícula alegria e esperança juvenil (a escultura na areia, por exemplo) com outros de consciência triste do crescimento pessoal (as cenas com Ah Juan). O tom pode parecer leve (o que, eventualmente, será reforçado pelos interregnos animados – algo que Orz Boyz teria também, anos depois), mas há muito mais complexidade do que pode parecer evidente à primeira vista. Aliás, em Tropical Fish o que se vê, o que se diz e o que se ouve têm particular relevância nas dimensões do filme, onde o real convive com o fantasioso – e qual deles o mais verdadeiro? Não serão os sonhos (das cores de peixes tropicais) de uma realidade alternativa bem melhores, porque mais cinematográficos, ainda que sejam, ou exactamente por serem, impossíveis?
Esta maneira de tratar a sociedade, com tanta compreensão como ironia, tanto absurdo como empatia, é algo que se vê em vários filmes taiwaneses. Tropical Fish é um exemplo peculiar, porque é diferente das obras de gigantes, como Hou ou Yang, sendo, porém, suficientemente relevante para conseguirmos pressentir a sua influência até em obras mais recentes do cinema taiwanês como Baodao manbo (Formosa Mambo, 2011). Aqui, o rapto de um miúdo e um grupo de vigaristas parecem parentes de figuras de Tropical Fish.
Tropical Fish é, pois, um caso interessante da forma como o cinema taiwanês é genuinamente “de Taiwan” – as imagens dos espaços respiram-nos, a construção das personagens olha a sua humanidade, o uso criterioso da(s) língua(s) faz pontes com o real e as divagações de fantasia lembram-nos o poder do ficcional para transcender a nossa realidade. Mas o filme é também universal para ser compreendido de forma especial além das fronteiras. Perdermo-nos, mesmo sem querer, no cruzamento de expectativas de outros e descobrirmos os inesperados da nossa improvisada jornada dirão muito a muitos. E, tal como para o jovem Liu Zhi-qiang, o mais importante talvez não seja mesmo saber se se chegou a tempo ao grande teste mas aproveitar o caminho até lá.