Quando damos um jantar em nossa casa o mais provável é que no almoço seguinte tenhamos restos. Não me levem a mal, eu até gosto de restos – a comida requentada tem até um certo je-ne-sais-quoi. Mas nunca tem o mesmo sabor da do dia anterior. Ora, é a mesma coisa com The Hobbit: an Unexpected Journey (O Hobbit: Uma Viagem Inesperada), a adaptação da prequela da trilogia The Lord of the Rings, que Peter Jackson teve a “cozinhar” durante quase uma década em consequência do sucesso dos primeiros (Guillermo del Toro era suposto realizar este projecto, tendo-o abandonado por alegadas dificuldades económicas da MGM).
Aqui esta necessidade de fazer “mais do mesmo” tomou conta de todo o projecto e justifica opções no mínimo discutíveis: partir à força o romance que Tolkien escreveu em 36 (isto tem que dar uma outra trilogia dê lá por onde der) anunciando já os próximos filmes para 2013 e 2014; retomar todo o cast (a coisa acaba por nem resultar mal excepto o cameo estranho e desnecessário de Elijah Wood); ou o já estar agendado o lançamento da extended version com mais 20 minutos em cima. Dejá Vu? ou a máquina dos dólares. Agora escolha.
Despachado este ponto, é interessante pensar que foi também a popularidade de The Hobbit, que alguns referiam como plasmando de certa forma as experiências da 1ª Guerra Mundial, que levou Tolkien a criar a trilogia do senhor dos anéis. Mas enquanto que no escritor inglês o ímpeto foi para a expansão de um universo (que levou até retrospectivamente a alterar alguns pontos nas edições futuras de The Hobbit), no cinema o movimento foi inverso e a operação foi de rarefacção: um só romance, um só “tale” que gerará três objectos distintos. A questão é, o que haverá lá por dentro? Bom, é tempo para uma sinopse, embora ela não interesse assim tanto (é outra vez uma quest): sessenta anos antes da luta pelo famoso anel, o hobbit Bilbo Baggins (Martin Freeman) junta-se a uma companhia de anões sem lar (esse é o seu dilema) e a Gandalf (Ian McKellen) para procurar a Montanha Solitária (belo nome) e um tesouro roubado por um dragão de nome Smaug.
O que chama a atenção apesar de tudo é que o filme acaba por afirma-se como um objecto algo estranho. Por um lado, porque há que distribuir o “mal narrativo pelas aldeias” (leia-se, três filmes), o filme arranca num tom de auto-referencialidade que está nos antípodas de qualquer ambição de subtileza: o mecanismo “vou-vos contar uma história”, Bilbo a correr para se juntar aos companheiros dizendo que “vai viver uma aventura”, etc. Depois a aventura do “hobbit e os treze anões” é de um certo conservadorismo narrativo que justapõe episódios de batalha, coragem e testosterona (rodam os adversários: orcs, goblins, trolls) sob um fundo de honra, justiça e sobretudo de crescimento do herói/teórico Bilbo Baggins. Mas por outro lado, e também para compensar esta rarefação dramática, as “montanhas russas” do 3D, desta feita em vertiginosos 48 fotogramas por segundo (a cópia que a imprensa viu era em 24, contudo) que servirão para adensar a experiência sensorial.
Mas tirando essa curiosidade da antítese rítmica e dramática que permite ver Peter Jackson a duas velocidades, físicas e emocionais, a operação de requentamento do espírito da primeira trilogia raramente funciona e, excepção feita talvez ao reaparecimento de Andy Serkis e do seu gollum, a maior parte das vezes é mesmo preciso que o inesperado nos seja lembrado (como o “unexpected” do título), pois ele é, de facto, inexistente.
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O livro do Hobbit dividido em três partes? Fónix, chama-se a isto cinema mercenário, tal é a sede de dinheiro.
“…a comida requentada tem até um certo je-ne-sais-quoi.”
Pinderiquice e pretenciosismo.
A opção pela triologia é naturalmente discutível, ainda que a obra seja difícil de filmar em 2 ou 3 horas na totalidade. The Hobbit e O Senhor dos Anéis pertencem a um mesmo universo; é uma questão de linguagem, princípio que o cinema partilha com a música, literatura ou a arquitectura. Parece-me um argumento vazio dizer que estamos pertante “mais do mesmo” porque, no fundo, o princípio é esse.
Mas o que me assusta neste texto é encontrar uma falta de imaginação tão autista. As produções de Peter Jackson do universo de Tolkien envolvem quantidades pouco habituais de gente, dinheiro, logística; são uma ambição colectiva. Não percebo a facilidade com que se ignora esta qualidade, que lhes garante uma posição, directamente num outro extremo, oposta ao cinema de autor. Oposta, mas complementar.
Tenho pena que quem escreveu isto, fechado nesse casulo do tédio intelectual, não seja suficientemente feliz para desfrutar a fantasia de Jackson, e de não perceber o que o valor do cinema: uma forma de magia ,inexplicável, em imagens e sons, de contar histórias.
muito bom merce vários prêmios!