A coreografia automóvel perto do final de Playtime (Play Time – Vida Moderna, 1967), já fazia adivinhar como seria o próximo filme de Jacques Tati. Como com qualquer filme com o Sr. Hulot, Tati constrói o filme seguinte a partir das promessas e sonhos dos filmes anteriores. Das ruínas, se quisermos. Assim, se Hulot acaba sozinho em Les Vacances de M. Hulot (As Férias do Sr. Hulot, 1953), em Mon Oncle (O Meu Tio, 1958) conhecemos a sua família e o sobrinho, Gérard, que é com quem mais se dá, como era com as crianças do final de Vacances que ele mais se sentia compreendido. Oncle acabava num aeroporto e Playtime começa num aeroporto. Hulot confunde-se agora com uma massa moderna e anónima, conseguindo ainda assim umas leves faíscas de empatia e calor humano: as flores que oferece a Barbara – a turista americana – e parecem possuir a paisagem e incorporar as luzes da auto-estrada enquanto anoitece, mais um dia, na cidade de Paris. A comédia e a melancolia andam de mãos dadas não só em Buster Keaton, Lewis e Chaplin, mas também em Jacques Tatischeff.
O método-Tatischeff
Tati assumia-se como um observador. Primeiro, como “mau aluno”, no canto da sala, onde dizia que podia ver o esconderijo de rebuçados do professor e como este podia coçar as pernas sem os “bons alunos” verem – percebendo já que a “pose” e a interpretação são instrumentos do quotidiano -, depois, e trocando (ou multiplicando) a sala pelo mundo, em silêncio, por restaurantes, pontes de auto-estrada, aeroportos e estâncias balneares, assistia aos pequenos nadas do trânsito da vida, os pequenos pedaços de poesia do quotidiano. Como Keaton e Chaplin, começou no vaudeville e considerava a pantomina como forma suprema de expressão. E disto tudo, nasce a filosofia de que se interpreta tanto na vida como no teatro ou no cinema (se calhar até mais) e recrutam-se os actores em bares e na rua. Suprime-se o diálogo, ou antes, o diálogo cronometrado, e orquestra-se um caos de sons e imagens enchendo-o de porções de acaso puro (os tais pedaços de poesia). Dos cães a percorrerem os subúrbios até aos portões da casa do Sr. e da Sra. Arpel em Oncle, à melodia do balão em Parade (1974), passando pela estrada feita parque de diversões em Playtime (o vidro roda-gigante e a rotunda carrossel).
Em Trafic (Sim, Sr. Hulot, 1971), Tati é fiel a tudo isto. O mote é tentar apanhar em película o teatro das frustrações e das coreografias estrada fora, de como se reage ao “ter que” enfrentar as filas de carros para o trabalho e de como se disfarça (ou não) o frete. A desculpa é uma exposição automóvel a que Hulot, Maria e o camionista têm que ir para apresentar o protótipo de uma caravana multi-funcional. Quando se tem algum talento e se quer ter também algum sucesso, o segredo é vender a “desculpa” como o “mote” para enganar os produtores e as distribuidoras. Pode ser que se consiga encantar algumas pessoas no processo.
Hulot e os outros
A personagem do Monsieur Hulot, disse Tati em Sur Les Pas de Monsieur Hulot (1989) – documentário realizado pela filha, Sophie Tatisheff -, foi inspirada num aprendiz de barbeiro que conheceu no regimento. Discreto e simpático com toda a gente, Hulot é muito terra-a-terra e alguém que todos conhecemos. Não deixa, apesar (ou por causa) disso, de parecer vir doutro mundo. Em Vacances, tomando reduto na clarabóia sempre que faz das suas e conseguindo manter as aparências na medida do possível, está sempre um passo à frente do olhar. Em Playtime, tem duplos, parece conseguir encarnar o próximo. O que faz sentido, porque se Hulot tem uma “fatia” dos outros, os outros acabarão também por ter uma “fatia” de Hulot. Em Mon Oncle, tem que passar despercebido durante a noite, para corrigir as “diabruras” do sobrinho, a uma casa que tem faro e olhos e, noutro dia, contamina com felicidade a fábrica de plástico “Plastac”, inocentemente, por perder o controlo das máquinas, acabando a noite em cantorias com os colegas de trabalho e quem mais conhecem pelo caminho, numa carroça. O mais incrível em assistir a isto, é que ele parece não ter mão em tudo isso, é como um dom ou uma maldição, são coisas que lhe acontecem e lhe são superiores. E se é verdade que ao longo dos filmes a personagem se vai tornando cada vez mais secundária (porque o cenário que tem que percorrer é cada vez maior) a sua importância não deixa de ser a mesma.
Como escreveu André Bazin em M. Hulot et le temps, “o que é próprio a M. Hulot (…), parece ser não ousar existir inteiramente. Ele é uma veleidade ambulante, uma discrição de ser. Ele eleva a timidez à altura de um princípio ontológico.” O que esta discrição acaba por construir, é o melhorar “o outro”. Quando acaba cada um dos filmes, Hulot evapora, e graças a ele, as pessoas com quem esteve resolvem as suas manias e os seus problemas. Tudo se transforma. Transforma-se a mulher que se despede muito sinceramente dele no final de Vacances, transformam-se o pai e o filho que sem nunca terem dado as mãos em Mon Oncle, dão-nas no fim. E os exemplos repetem-se. Hulot é portanto um homem com uma missão e que também passa por metamorfoses. Em Trafic a metamorfose fica completa: é passado o testemunho a Maria, a relações-públicas da “Altra” – a empresa em que trabalham os dois. É ela, aliás, o gatilho de todos os problemas de que se queixa muito incessantemente, culpando os outros. De terem que ser retidos pela polícia na fronteira alemã ao confundir um sinal do polícia para pararem por um aceno e do acidente na estrada ao passar sem notar no que manda o sinaleiro, é tudo culpa dela.
‘Morceaux de bravoure’
Se calhar, todo o filme precisa do seu ‘morceau de bravoure’; no caso da comédia, um pedaço de abstracção e virtuosismo cómico, como o número de pantomina ao som de Count Basie em The Errand Boy (O Mandarete, 1961) de Jerry Lewis, o ciclone e as acrobacias de Buster Keaton em Steamboat Bill, Jr. (O Marinheiro de Água Doce, 1928) de Charles Reisner e do mesmo Keaton ou a última das três cenas de Noises Off (Apanhados no Acto, 1992) de Peter Bogdanovich. Voltando a usar palavras de outro, agora Henry Miller, depois de aclamar The Battle of the Century (1927) com Stan Laurel e Oliver Hardy (curta que hoje não se pode ver completa, porque se perderam 8 minutos de película) como o melhor filme cómico já feito, “em qualquer arte a apoteose só é alcançada quando o artista ultrapassa os limites da forma de arte que utiliza (…). O mundo deve ser virado do avesso, esquadrinhado, confundido, para que se possa proclamar o milagre”.
Pode-se talvez dizer que a cena do restaurante e a do acidente automóvel funcionam como os “morceaux de bravoure” de Playtime e Trafic, respectivamente, mas os milagres se calhar só acontecem no fim. E no fim falarei deles. Quanto ao acidente e despistes de Trafic, nele, os carros desdobram e ultrapassam a sua forma: fazem cavalinhos, engolem pneus, rodopiam e vira-se tudo do avesso. Quando saem deles, as pessoas comunham espreguiçando-se e bocejando em uníssono, quase como que acordando dum sonho. Ou dum pesadelo.
Planear o ‘gag’
Os realizadores de filmes cómicos tendem a ser subvalorizados por se achar que o que fazem é divertirem-se, única e simplesmente. Ora, isto são tudo coisas que dão muito trabalho; os gags, como é óbvio, não aparecem feitos do dia para a noite. Têm é que parecer que aparecem. Cristalizados num estado supremo de revelação.
Tati, explicando as diferenças do seu cinema com o de Charles Chaplin, disse que Hulot, nos seus filmes, era a vítima do gag, enquanto que Charlot, nos de Chaplin, era o criador do gag. Continuava, dizendo que não podia dar essa possibilidade ao Sr. Hulot e talvez sejam essa inactividade e essa passividade que nos dão a impressão de que Hulot é doutro mundo.
A história do cinema mostrou-nos que quem faz da comédia um ofício, tende a reduzir o número de gags ao longo do tempo e a cada novo filme. Parece ser verdade para os grandes artesãos, porque aconteceu com Chaplin, aconteceu com Keaton, com Lewis e também com Jacques Tati. O que me parece explicar o fenómeno é que enquanto se evolui como comediante, passa-se a querer trabalhar as coisas com mais atenção e com mais método. Demora-se mais tempo a fazer um filme e os gags passam a ser momento previlegiado para retiro e contemplação. Faz-se da comédia espacial uma religião e começa-se onde o outro acabou, sendo justo dizer que no seu tempo, e talvez só com a notável excepção de Blake Edwards, Lewis e Tati foram os únicos a pensar a comédia em termos progressivos,em termos de evolução, como se de uma ciência se tratasse. Seja com o som (Tati) ou com a imagem (Lewis).
Todo o fim é um começo
No entanto, ainda nem se falou do que mais impressiona nos filmes de Jacques Tati. É no que dá escrever tanto, perde-se o rumo em direcção ao que é talvez o mais importante. Às coisas que parecem tomar a forma de milagre. O que é que se dá a um personagem que muito consistentemente parece perder tudo e que, a cada nova aventura, parece ficar com menos um bocado de si? Talvez um mar de oportunidades, como em Vacances e no final que “congela” nas águas daquele mar. Mas a cada filme que passa, tudo é negado a Hulot. O sobrinho pelo cunhado, que tem inveja da afeição que o filho tem pelo tio e Barbara pelo turbilhão e pelo trânsito urbano daquela Paris imolada e de plástico. Ele nem o ramo de lílios lhe consegue dar pessoalmente e tem que relegar a tarefa a um dos seus duplos. Dá-lhe a alegria de confundir aquele presente com o presente que é a vida e nem tem a satisfação de a ver aceitá-lo. Parte outra vez…
Mas todo o azar tem que acabar um dia e quando Hulot se despede de Maria, no final de Trafic, o turbilhão ordena as contas e redime-se. Começa a chover. Hulot desce as escadas para o metro de guarda-chuva aberto e a multidão leva-o de volta à “Sra. Hulot”. Os condutores vão em procissão estrada fora com um olho na estrada e outro no horizonte à espera de dias melhores. Aqui enfrenta-se a vida com assobios e melodias, olha-se para as rotinas mais como promessas e tem-se a revelação de que não há nada melhor que sair à rua e tomar um café ou um fino esperando a próxima aventura. Pode ser hoje ou pode ser amanhã. Mas há-de ser um dia… São os filmes de Jacques Tati.