No final da sessão, uma pessoa muito mais sabida do que eu, que por diversas vezes teve o privilégio de ver o filme em película, comentava com desalento que na novíssima cópia digital da obra-prima intemporal de Alfred Hitchcock se perdiam as texturas da imagem e o som era quase irreconhecível. Penso que eu já venho de uma geração que terá descoberto os filmes de Hitchcock em DVD, antes de ter tido o supremo privilégio de os apreciar no grande ecrã. Quando ouvi essa pessoa que respeito muito e me apercebi da sua “indignação” ainda estava sob o efeito do meu primeiro visionamento em sala de Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958), pelo que as cores, a música e os temas persistiam em me obcecar. Depois, esfriando a cabeça, pensei: nestes tempos em que a película ameaça desaparecer em virtude da cópia digital, os que puderam experienciar qualquer coisa mais próxima do “original” estão também eles condenados, como o protagonista do filme, a (sonhar) refazer a sua Madeleine, ou melhor, a (sonhar) refazer o seu Vertigo.
Por isso, este filme, que foi considerado o melhor de todos os tempos há pouco tempo numa sondagem realizada pela revista Sight & Sound, também nos ensina como a cinefilia pode ser uma tara sem cura, uma obsessão sem fim e sem sentido. Como se o cinéfilo, como o protagonista no filme, também se “deixasse” perseguir (logo, torturar) por uma experiência tão recuada, tão difusa, que provavelmente nunca terá tido lugar. Em Vertigo nada se fixa e, nesse aspecto, o título é muito elucidativo, porque há vertigem em cada acção, em cada olhar, em cada toque. A imagem que traduz a acrofobia de Scottie, deslocando sempre o espaço para lá do seu alcance e com-preensão, serve de síntese perfeita daquilo que este filme nos oferece: o que não podemos fixar, agarrar e, repito-me, com-preender. Uma tensão maravilhosa que mistura a fobia das alturas com o desejo do mais fundo. Fala-se de sexo, de encantamento, de paixão, de uma espécie de amor demencial ao mesmo tempo que se fala de medo, morte, suicídio e vertigem…
Em certa medida, Vertigo é um filme de tantas faces quanto aquelas que o título português contraposto ao original nos sugere. Fala-se do tal “medo das alturas” do detective e poder-se-ia contar o filme todo tendo-o como linha condutora: Scottie do momento do trauma até à sua cura… igualmente traumática no momento da devastação amorosa. Ou pode-se contar o filme partindo, por exemplo, do interessante título português, A Mulher Que Viveu Duas Vezes. Neste caso, ter-se-ia de falar das personagens femininas do filme e da forma como o mesmo rosto se desmultiplica em “falsos-originais”. Há uma “ideia de mulher” que condena Scottie a uma busca sem fim , que começa em Madeleine, recua para uma tal de Carlotta, avança para uma Judy e que, não nos devemos esquecer, envolve a “amiga colorida” de longa data, Midge, e a verdadeira mulher do seu infame amigo, construtor de navios e maquinador de intrigas.
Posto isto, o título português também é esquivo e inexacto, porque “a mulher”, na realidade, não existe, ou melhor, por não se poder viver duas vezes aquela mulher não poderá ter existido. Esta é a explicação mais racional e decerto vingaria se Vertigo não fosse o filme em que Hitchcock se desracionaliza mais. A verdade é que falamos aqui de uma imagem que vai passando de mulher em mulher, mas que só existe na cabeça do protagonista. A mulher viveu, se viveu, tantas vezes quantas os rostos que Scottie procurou projectar em Judy. A dimensão traumática desta história aparece no início, o que não é nada por acaso (nunca nada é por acaso em Hitchcock, é preciso assinalar), na medida em que é ele que vai produzir uma espécie de “descoincidência” entre a face projectada e a face que serve de ecrã. O quadro mental de Scottie conduzirá este – e o filme consigo – a um universo nebuloso, mais ficcional que a própria ficção, como se tudo representasse uma espécie de flashback sem referência ao presente – de novo, cópia sem original. A primeira camada de imagens é produzida pela “vertigem”, pela neura, pela pulsão nervosa e sexual de Scottie, cujo quadro mental desenquadra ou “sobrepõe” a galeria de rostos femininos, mais ou menos angelicais e mais ou menos fatais, que lhe vão penetrando o olhar.
Vários exemplos podem ser dados desta “descoincidência” entre a projecção e os diferentes rostos-ecrãs pulsionais de Scottie. Um dos mais escondidos – do qual tomei nota agora, com este revisionamento – tem lugar no apartamento de Judy. Depois da transmutação final de Judy em Madeleine, Scottie pede para esta se aproximar, ao que ela responde “não, que já tenho a maquilhagem posta”, o que em inglês resulta na frase “I got my face on”. Parece-me irónico que a mulher a quem Scottie “roubou o rosto” não queira ser tocada para preservar a que diz ser a sua (supomos que real) face. Este jogo de máscaras, de ilusões permanentes, é a grande fonte de suspense, ou melhor, é o principal MacGuffin escondido (escondido porque já não está num objecto mas numa imagem mental desse objecto, isto é, numa ideia de mulher) neste filme de Hitchcock: até onde irá o delírio sexual do “impotente” protagonista do filme? Até quando as faces trocarão a volta às identidades das “suas” mulheres? Mas existe, de facto, alguma mulher aqui?
Há outro instante curioso: perto do fim, Scottie “desmascara” Judy, mas para depois a tratar por Madeleine, quando, de facto, não só Madeleine era uma cópia de Carlotta, como Carlotta é um retrato (cópia) da “verdadeira” Carlotta, como Madeleine é, na realidade, Judy… Scottie depois diz “És uma cópia, uma contrafacção” e depois massacra-a com acusações como antes a massacrara com beijos. Amor, sexo, morte, máscaras, suspense, nada é simples aqui, apesar da magistral simplicidade com que tudo se dá a ver, voyeuristicamente, ao espectador – e todos sabemos como Hitchcock gostava de apelar ao lado “peeping tom” de Jimmy Stewart, talvez numa tentativa de lhe roubar o rosto de “menino inocente” do cinema norte-americano e, ao mesmo tempo, numa tentativa de sujar com culpa o olhar do espectador na sala escura. Perverso/pervertido, o homem, domado pelos seus desejos, quer beijar a mulher para lá da máscara, mas não conseguirá, porque tudo aqui é provocação (tease). Hitchcock, “mestre do suspense“? Sim, mas antes: Hitchcock, mestre do erotismo.
Isto parece tudo muito abstracto, talvez demasiado abstracto para um cineasta aparentemente tão terreno como costumava ser Alfred Hitchcock, contudo, o delírio que sentimos é um delírio nascido da experiência – da visão – do herói, logo, trata-se de um delírio sempre “balizado”, sempre controlado pela câmara do realizador britânico. A confusão ou atordoamento extático de Scottie não contamina o filme para lá de um trabalho de composição meticuloso sobre as cores, os gestos e a paisagem. O muito engenhoso plot também “controla à distância” esta história, fazendo com que o espectador esteja sempre no limite desse precipício vertiginoso que é o sexo e o amor louco – de facto, Vertigo deve ser o mais arrebatado filme do mundo. A memória e a obsessão, os dois grandes temas do filme, são visíveis desde logo na estrutura narrativa, que a certa altura se parte em dois e se repete sobre si mesma (e todos sabemos como a figura do remake constitui outro dos traços obsessivos da identidade ou do “sintoma” hitchcockiano). A repetição como eterno “começar de novo”, trabalho dirigido a uma ideia impossível de perfeição, negação do próprio avançar da História e dispositivo da memória e do trauma… Hitchcock soube estruturar o filme a partir da desestruturação psíquica do protagonista – gesto moderníssimo vindo do mestre das “aparências clássicas”.
Também fora do filme a obsessão de Scottie produziu, ao longo dos anos, os seus efeitos. Apesar de não ter sido imediatamente percepcionado como uma obra-prima, Vertigo acabou por se tornar – como Madeleine no filme – dos objectos mais venerados e perseguidos na história do cinema. Realizadores como François Truffaut, Claude Chabrol, Chris Marker, Dario Argento e Brian De Palma são as vítimas mais notórias deste perverso/pervertido enfeitiçamento. O realizador norte-americano conseguiu mesmo atingir a literalidade máxima em Obsession (Obsessão, 1976), desfazendo ou refazendo num só filme Rebecca (Rebeca, 1940) e Vertigo. Este filme-tese faz todo o sentido, sobretudo se pensarmos que em ambos os clássicos de Hitchcock há como que a prevalência da imagem da ausência de uma mulher sobre a imagem da presença de outra mulher. Sobre este ponto, Slavoj Žižek, no seu livro Lacrimae Rerum, fala de um “olhar ausente” associado a um objecto não visível, que assim se fetichiza: “Uma vez que o sujeito não pode ver directamente este, o verdadeiro objecto de fascínio, ele realiza uma espécie de «reflexão acerca de si» através da qual o objecto que o fascina se torna o próprio olhar”. Ainda que ambos estejam assombrados por este olhar ausente fetichista (o olhar da Outra), Rebecca é como se fosse o pólo negativo de Vertigo, ainda que neste a suposta positividade seja levada ao paroxismo de um desejo suicidário (isto é, que provoca suicídios). Por outro lado, neste filme, subimos mais um degrau no edifício conceptual e matemático de Hitchcock: não é a cópia (retrato de Rebecca) vis-à-vis o original/real (Joan Fontaine/Mrs. de Winter) que assombra a história, mas antes a cópia da cópia (Judy-Madeleine) vis-à-vis o falso-original (retrato de Carlotta).
Com efeito, Scottie nunca chega a ter o que procura – e a questão de posse, na vida como na arte, sobretudo para o amante/coleccionador mais ávido, tem a sua importância. Scottie beija Madeleine quando esta está possuída (a posse, de novo…) por Carlotta e Scottie beija Judy quando esta está possuída (idem) por Madeleine. O mesmo é dizer: Scottie nunca beija a mulher que beija, ele toca sempre em cópias de cópias sonhando com um original que não existe. Em The Pervert’s Guide to Cinema (O Guia de Cinema do Depravado, 2006), Žižek situa a questão: “[No restaurante Ernie’s, na primeira vez que vê Madeleine] Scottie tem muita vergonha de olhar para ela de frente. É como se o que vê fizesse parte dos seus sonhos, como se fosse mais real para ele do que a realidade da mulher que está nas suas costas”. Com efeito, Rebecca, a outra mulher “fantasiada”, era um fantasma, mas tinha um (e quando digo um digo 1) nome, ao passo que a Mulher Que Viveu Duas Vezes é uma imagem complexa, desdobrável, incom-preensível, difícil de contar (1, 2, 3…). Numa palavra, trata-se de uma entidade sonhada e fantasiada sempre até ao fim. Mas, caro leitor, não se deixe tomar por este labirinto de ideias impossíveis, porque estou certo que não terá dificuldade de encontrar as coordenadas certas na sua vida, sobretudo se nela já fabricou a sua própria (primeira) versão da Mulher Que Viveu Duas Vezes.