A propósito da estreia de Lo imposible (O Impossível, 2012) de Juan Antonio Bayona proponho, em mais uma edição desta minha crónica mensal, analisar uma série de filmes espanhóis produzidos nos últimos anos e que têm conseguido ser tanto sucessos de bilheteira no seu país como filmes exportáveis para todo o mundo. No fundo, pretendo perceber (e dar a perceber) as diferenças entre lá e cá.
Para começar façamos um esclarecimento, chamar ao novo filme de J.A. Bayona Lo imposible espanhol é algo que não bate a bota com sítio dela. Para um filme todo falado em língua inglesa e protagonizado por Naomi Watts e Ewan McGregor o chamamento correcto seria The Impossible. Esta estratégia de trazer estrelas do cinema americano para filmes de produção (e rodagem) espanhola já não é uma novidade. Tivemos Los Otros (Os Outros, 2001) com Nicole Kidman realizado por Alejandro Amenábar, que também realizou o mais recente Agora (Ágora, 2009) com Rachel Weisz, ou, de modo ligeiramente diferente, Transiberian (2008) com Ben Kingsley e Woody Harrelson e Alatriste (Capitão Alatriste, 2006) com Viggo Mortensen. Semelhante estratégia já se tentou em Portugal, por exemplo com A Arte de Roubar (2008) de Leonel Vieira ou ainda o ano passado com a versão bilingue de A Teia de Gelo (2012) de Nicolau Breyner. Vistos os resultados de ambos os filmes (dentro e fora de Portugal) percebemos (em particular com o segundo) que não é apenas a alteração do idioma que trará mais espectadores. Mas antes de partirmos para o caso nacional, deitemos o olho à carreira dos dois cineastas referidos: Bayona e Amenábar.
O caso de Amenábar é particularmente interessante. Começou a sua carreira nas longas no género de terror com Tesis (Tese, 1996) sobre uma rede de snuff movies. Passou depois para outro género (mas mantendo-se nele), o da ficção científica, com Abre los Ojos (De Olhos Abertos, 1997) [que viria a ser americanizado por Cameron Crowe como Vanilla Sky (2001) com Tom Cruise]. Feitas as demonstrações de talento com esses dois filmes veio o referido Los Otros que com um orçamento de 17 milhões de dólares e lucro superior a 200 milhões. Mar adentro (2004) foi o filme de prestígio que se seguiu, que não só foi um sucesso dentro de portas (o segundo filme mais visto desse ano em Espanha, apenas ultrapassado pelo segundo tomo do Shreck), como no estrangeiro, fazendo um lucro bruto de cerca de 40 milhões de dólares (sendo o orçamento de 10 milhões). Com estes sucessos todos e estando Amenábar já certificado como um realizador que não falha, o projecto seguinte correspondeu a Agora, um enorme investimento de mais de 70 milhões de dólares. Embora tenha sido um sucesso em Espanha, isso não chegou para pagar o investimento, mais que isso, a receita bruta obtida em todos os mercados onde foi distribuído não chegou a metade do orçamento. Desde esse gigantesco flop Amenabar não voltou a filmar e não se anunciam novos projectos. Com a queda da armada invencível surgiu Bayona com o seu filme de estreia, El Orfanato (O Orfanato, 2007), que (não por acaso) era também um filme de género – terror da casa assombrada. O filme foi um estrondo de bilheteiras, rendendo perto de 40 milhões de dólares em casa e outros tantos no resto do mundo. E com esse sucesso juntaram-se as condições para que The Impossible visse a luz do dia, entenda-se: um orçamento de 30 milhões de dólares que (contando apenas com as receitas até ao final de 2012) arrecadou, apenas em Espanha, mais de 50 milhões de dólares, tornando-se no segundo filme mais rentável de sempre em Espanha [apenas ultrapassado por Avatar (2009)], ainda que não tenha conseguido ultrapassar (sublinho o ainda) os 6.4 milhões de espectadores de Los Otros.
Mas com tantos milhões de dólares, sujeitos aos movimentos da inflação, ficamos com uma visão enviesada do que é a importância do cinema espanhol em Espanha. A percentagem do rendimento em bruto que os filmes de produção espanhola tiveram em relação à totalidade dos lucros de exibição de cinema em 1994 foi de 7,1%. Cinco anos depois já era 14,3% . Em 2001, com o sucesso de Los Otros, essa percentagem subiu para os 17,8%. De lá para cá houve um decréscimo que demorou dez anos a ser contrariado: este ano o valor aproximou-se dos 18% (a maior percentagem desde 1984). Nos últimos dez anos houve onze filmes espanhóis que conseguiram estar presentes no top 10 dos mais rentáveis dos respectivos anos de estreia, desses onze, três são deste ano [para além de The Impossible, Las aventuras de Tadeo Jones (As Aventuras de Tadeo Jones, 2012) – que estreia em Portugal no final do mês de Fevereiro – e Tengo Ganas de Ti (2012)]. Ou seja, os resultados deste ano foram de facto excepcionais mas (como já tinha referido) há certos realizadores como Amenábar e Bayona, assim como Almodóvar e Santiago Segura (realizador da série Torrente que vai já no quarto episódio, o filme mais visto em Espanha em 2011) cujos filmes são invariavelmente sucessos de público. Para que esta situação se tenha tornado realidade foi necessário a instituição de um sistema de financiamento público que juntamente com o interesse dos privados e uma estruturada indústria cinematográfica permitiu que os resultados fossem os que agora apresento.
“No todas las películas cuentan con las mismas posibilidades de financiación: Las de carácter más comercial pueden encontrar fácilmente financiación en las preventas de los derechos de explotación y en préstamos de entidades financieras. Las películas más experimentales o de carácter eminentemente cultural deben apoyarse en las ayudas y subvenciones públicas sobre proyecto.” O relatório do ICAA (o equivalente espanhol ao nosso Instituto do Cinema e Audiovisual) refere que há três métodos distintos e convergentes para o financiamento do cinema espanhol: primeiramente, os empréstimos “blandos” (corresponderam a 29 milhões de euros para 35 filmes em 2010) associados a um sistema de garantias gerido pelo próprio ICAA; posteriormente, os dinheiros adquiridos pela venda dos direitos de exibição televisiva (para além de uma quota de filmes espanhóis nas televisões, há – como na nova lei do cinema nacional – a imposição de cada canal de televisão participar na produção de filmes nacionais); e, para terminar, os subsídios (de novo em 2010 houve um investimento de mais de 80 milhões de euros, dos quais dez milhões foram dirigidos para primeiras obras). Tudo isto culminou em duzentas longas-metragens no ano de 2010 (das quais 120 são de ficção). Desde 1995 não há um ano em que o número de filmes produzidos em Espanha não aumente, sendo que no ano de 2012 a média é de 15 filmes por cada milhão de habitantes (média superior a países como França ou Estados Unidos da América), ainda que 20% desses não chegue sequer a estrear em sala (muitos dos documentários estreiam na televisão – algo que também se passa por cá).
Se em Espanha este foi um dos melhores anos de sempre para os filmes espanhóis, por cá o sucesso de Balas & Bolinhos – O Último Capítulo (2012) e Morangos com Açúcar – O Filme (2012) fizeram semelhante função, mas façamos a apropriada comparação: em cada quinze espanhóis, dois viram o filme de Juan Antonio Bayona, sendo que em Portugal só um em cada 40 portugueses viu o filme de Luís Ismael. Os 18% de peso do cinema espanhol correspondem a 5,1% do cinema nacional e a média de 20 longas de ficção anuais (o ano de 2012 foi particularmente baixo nesse âmbito – oito – devido ao bloqueio dos concursos do ICA desde o final de 2011) compara-se com as 120 espanholas.
Poderíamos tomar todos estes dados (percentagens, milhões, quotas e rácios) e entendê-los como um comprovativo das fraquezas das políticas do nosso cinema. Não seria totalmente errado, porque o trabalho a fazer sobre o sistemas de financiamento e de exibição do cinema que se faz por cá é ainda muito, mas seria certamente manipulador. Portugal é um país de dez milhões de indivíduos e Espanha tem perto de 50 milhões; no que diz respeito ao cinema, o tamanho conta. Construir uma industria de cinema no nosso país é algo manifestamente difícil. Percebemos que em Espanha um filme com orçamento de dez a 20 milhões de euros tem a possibilidade de ser pago com as bilheteiras e direitos de exibição, enquanto que em Portugal um filme que exceda os 500 mil euros de orçamento está já no limite das possibilidades de lucro. Não há um número suficiente de espectadores para que uma indústria se possa estabelecer por cá (e só são exportáveis filmes que sejam sucessos no seu país de origem).
Esta situação tem permitido que o cinema nacional se tenha tornado naquilo que agora o mundo descobre aos poucos. Cada realizador tem tido uma liberdade artística total para fazer o seu cinema e isso tem permitido que nomes singulares tenham marcado a sua posição: Pedro Costa, Miguel Gomes e João Pedro Rodrigues são os mais sonantes. A ausência de uma indústria permitiu, portanto, que a visão do autor seja rainha e, como tal, o estabelecimento de um cinema virado para a criação artística acima de tudo o mais. Infelizmente, a ausência de uma indústria impossibilita que certos géneros de cinema sejam frequentes, em particular o cinema de terror, que na vizinha Espanha (pela existência de uma proto-indústria) é corriqueiro e esta ausência afasta os portugueses dos seus filmes. A indústria é uma escolha impossível e temos que fazer o melhor do estrangulamento em que vivemos, dos júris e dos concursos e de todo o sistema esquizofrénico de financiamento; os filmes vêm mostrando que o estamos fazendo.