Adrian Martin é actualmente um dos mais reputados críticos de cinema mundiais. Para além de colaborar com variadíssimas publicações, quer no seu país, a Austrália (The Age, ABC TV), quer noutros países (Holanda, Espanha) desempenhou ainda um importante papel na transição ao digital com a co-edição da revista Rouge e, juntamente com Girish Shambu, da Revista LOLA. Para além disso, tendo completado o seu doutoramento em 2006 com a tese Towards a Synthetic Analysis of Film Style, prossegue também uma ambiciosa carreira académica enquanto professor assistente na Monash University em Melbourne. Já tem várias obras publicadas com destaque para Phantasms (1994), uma espécie de versão cinéfila das Mitologias de Roland Barthes, Que és el Cine Moderno? de 2008 e já do ano passado Last Day Every Day: Figural Thinking from Auerbach and Kracauer to Agamben and Brenez. A propósito da sua recente vista a Lisboa para integrar o júri do Doclisboa 2012, o À pala de Walsh aproveitou a deixa e conversou um pouco com ele, na companhia da crítica de cinema Cristina Álvarez López. Eis a primeira parte deste encontro. A segunda parte da entrevista anda à volta da lógica do dispositivo como nova orientação para a realização, tecnologias cinematográficas e o fim do mundo, porque não?
Carlos Natálio: Gostava que começássemos por falar um pouco de cinefilia. Qual é a tua opinião sobre estas votações que a Sight & Sound organizou recentemente para escolher os melhores filmes de todos os tempos?
Adrian Martin: Geralmente suspeito muito destas votações. Eu aprecio listas individuais, como aquelas que tu, a Cristina [López Álvarez] ou o [Jonathan] Rosenbaum fariam. Para mim são interessantes simplesmente para saber o que estas pessoas andam a ver e dá-me ideias de que filmes ver ou procurar. O que eu não gosto nestas votações, incluindo aquela que fazes referência, é uma noção de consenso, de cânone dos melhores filmes de todos os tempos, que tende sempre a ser algo conservador. Não interessa que tenhas as pessoas mais radicais a submeter as suas listas pois no final quando se gera esse consenso as escolhas mais interessantes acabam por cair. E, claro, ficamos com o Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941), o Vertigo (A Mulher que Viveu Duas Vezes, 1958), ou o 8½ (Fellini Oito e Meio, 1963), por exemplo. São tudo grandes filmes, mas não deixa de existir algo rígido sobre este consenso. Eu percebo que um cânone tenha uma importância prática para as cinematecas ou que os filmes destas listas sejam comprados e vistos em museus, usados em cursos, universidades, escolas e por aí fora. Percebo isso, mas as escolhas individuais continuam a ser mais interessantes.
CN: Na tua resposta a esta votação pareces ter privilegiado um critério de descoberta cinéfila. Fizeste isso porque pensas que a cinefilia em geral tende para o conservadorismo?
AM: Não acho que a cinefilia seja necessariamente conservadora. Penso é que estas votações salientam um certa tendência conservadora nas pessoas. Lembro-me uma vez um colega meu, crítico de cinema australiano, que foi convidado a escolher a lista dos melhores dez filmes e fez uma escolha absolutamente convencional. Estilo, Rashômon (Às Portas do Inferno, 1950), Citizen Kane, La Règle Du Jeu (A Regra do Jogo, 1939). E eu perguntei-lhe o porquê destas escolhas, porque eu sabia que ele gostava de outros filmes muito menos convencionais, filmes que lhe eram muito mais particulares. E ele respondeu-me “escolhi estes porque penso que são aquilo que devemos ensinar aos mais jovens”. E aí pensei, que atitude tão idiota. Quando ele começou a pensar em que é que os mais jovens deveriam ver, as suas escolhas tornaram-se conservadoras. Esta é a segunda vez em que participo do inquérito da Sight & Sound e na primeira tinha uma lista ligeiramente mais conservadora. Filmes como o Letter From an Unknown Woman (Carta de uma Desconhecida, 1948) do Ophüls, o C’era una volta il West (Aconteceu no Oeste, 1968) do Leone ou outros que penso que são obras-primas incontestáveis. Mas desta vez, dez anos mais tarde, para mim ter repetido essa lista seria uma espécie de gesto de morte. Nestas listas quase nunca vemos obras recentes ou novas descobertas. Desta vez, perguntei-me que filmes tinha eu descoberto pessoalmente na última década que me tinham impressionado mais. Por isso, incluí filmes de gente como Stephen Dwoskin [(Behindert (1974)], o Alberto Grifi e o Massimo Sarchielli, [Anna (1975)], Chantal Akerman [Nuit et Jour (1991)], Philippe Garrel (L’Enfant Secret (1983)] ou mesmo Eyes Wide Shot (De Olhos Bem Fechados, 1991) de Kubrick. Estas escolhas foram no fundo uma forma de dizer a mim mesmo que estava vivo, ainda a descobrir coisas e não apenas a perpetuar o mesmo cânone em prole das gerações futuras.
CN: De que forma é que o online contribuiu na tua opinião para esta questão da descoberta cinéfila, para esta “nova cinefilia” (para usar e desvirtuar a expressão do Skorecki)?
AM: Penso que as coisas mudaram muito. A experiência do online mudou a paisagem de toda a cinefilia. Por exemplo, nos anos setenta vi alguns filmes do fabuloso cineasta iraniano pré-Kiarostami Sohrab Shahid Saless e por muito tempo pensei que nunca teria oportunidade de rever os seus filmes. E lembro-me recentemente, enquanto professor, dizer nas aulas aos meus alunos com uma certa dose de saudosismo “ah, se ao menos estivessem estado neste ou naquele festival e visto os filmes do Saless…” No dia seguinte, um dos meus estudantes deu-me um disco e disse: “aqui tem, fiz o download ontem à noite dos filmes que falou na aula…” Isto foi uma espécie de choque para mim. Claro, actualmente, o download é uma rotina para quase todos nós. Aliás, hoje é frustrante querermos ter acesso a uma coisa e não a ter de imediato. A Internet ou os social media permitem pôr as pessoas em contacto e estimulá-las mais a descobrir novas coisas, a aceitar sugestões mais rapidamente. Há trinta anos cada cinéfilo tinha uma lista com os filmes que queria ver, sabendo que isso podia durar décadas. As pessoas viajavam para o outro lado do mundo para ter a oportunidade de ver determinado filme no cinema. Ainda hoje ver um filme no cinema pode ser uma experiência especial. Por exemplo, vi agora em Lisboa o D’Est (1993) da Chantal Akerman, filme que tentei não ver durante anos na televisão ou no computador. Queria vê-lo em grande ecrã e agora finalmente tive essa oportunidade. E foi uma experiência fantástica. Eu acho que ainda existe esse momento especial que podes retirar de um determinado filme, se te guardares para essa experiência como foi o meu caso. Mas regra geral sou completamente a favor da cultura do DVD, dos downloads através das quais tens acesso a tantas coisas tão diversas.
CN: Existe também este discurso mais ou menos purista que começa por salientar como ver um filme num ecrã de televisão e numa sala de cinema são experiências tão díspares. E a partir daí muita gente conclui que com DVDs, por exemplo, já não estamos perante cinema, que este fica preso nos ecrãs de televisão ou dos computadores…
AM: Eu discordo absolutamente dessa filosofia. Para mim, existe uma questão teórica interessante aqui que tem a ver com a relação entre a tecnologia e o objecto fílmico. Parece-me que ter um fetiche por película é um erro, porque esta é apenas uma tecnologia temporária cujo intuito é trazer o filme até nós. Aliás, trata-se da pior tecnologia alguma vez inventada: dez bobines, pesadas, difíceis de manejar, inflamáveis… O som é outra questão muito importante. Em muitos cinemas com projecção analógica a qualidade de som é muito fraca e não consegue transmitir toda a potencialidades sonoras da banda sonora. Quando vejo filmes antigos em DVD finalmente consigo ouvir o som muito melhor do que em cópias de 16mm, desgastadas por terem sido transportadas por esse mundo fora. E não concordo com esse argumento de que os realizadores queriam que víssemos o seu filme apenas em película… Penso que isso é completamente irrealista e pouco prático. É elitista de uma forma negativa. Eu não sou contra o elitismo necessariamente, mas esta ideia de que só podemos ver os filmes de Max Ophüls em cópias em película 35mm de há cinquenta anos parece-me uma idiotice. Para mim passar um filme antigo para DVD é a evolução natural da tecnologia funcionar. Estamos a dar ao filme um novo suporte, uma nova base tecnológica. E as bases tecnológicas estão sempre a mudar. Não podemos ficar congelados no tempo e dizer que são a película e a projecção as únicas bases tecnológicas válidas. Ao final de contas a minha teoria sobre isto é que o que realmente interessa é o filme que fazes na tua cabeça, aquela que te lembras. O filme que podes projectar vezes e vezes tem conta na tua memória. E não interessa se é uma cópia em 35mm com riscos ou outra coisa qualquer. Porque o que te lembras é sempre o filme perfeito. A tecnologia no teu cérebro é a única tecnologia final nesta constante mutação de suportes. A tecnologia do cérebro é a melhor [desde que o teu cérebro trabalhe (risos)]. No meu leito de morte quero ser capaz de recordar os melhores filmes que vi e é muito mais importante do que dizer: “leva-me a uma cinemateca antes de morrer”. O filme mais belo é aquele que transportas dentro de ti.
CN: Mudemos de agulhas para a crítica de cinema. Quais são as tuas intenções e os teus medos quando escreves sobre cinema? Ou, por outras palavras, o que é que pretendes que as tuas reflexões sejam?
AM: Boa questão. Primeiro tento não ter uma fórmula rígida para estas coisas, porque acredito no valor da espontaneidade da escrita. Também creio na importância dos sentimentos que tens quando vês um filme e depois os tentas veicular através da palavra. Tento sempre acarinhar esse desejo de exprimir algo sobre um filme. Quando escrevo tento sempre surpreender-me, seja tentando encontrar uma nova forma de começar um artigo, de o acabar, brincar com o título ou com a sua estrutura. Estou sempre à procura de um estilo ligeiramente literário de veicular as minhas ideias. Mas para responder à tua questão, o que tento fazer quando escrevo sobre cinema é exprimir um sentimento de ligação aos filmes. Uma ligação que seja viva, seja ela positiva, negativa ou nenhuma das duas. Quero ter uma ideia dos meus próprios processos de pensamento, do meu pensar, das minhas emoções e sentimentos ao longo do filme. E ao dar uma imagem deste percurso quero contar isso como uma espécie de história. Todas os meus textos têm algum tipo de construção narrativa. Não literalmente, mas pelo que entendo de ideias narrativas. Deves poder chegar ao fim do texto, mesmo um mais curto, e pensar que te levou a algum lado. O que tento não fazer quando escrevo é usar fórmulas em que vais despachando cada item. Do género, primeiro despacho o argumento, feito, depois tenho de dizer algo sobre a câmara, feito, agora os actores… e por aí fora. Tento evitar isso a todo o custo.
CN: Tentas usar o filme como uma ignição para ir para outro lado…
AM: Completamente. Ao final de contas acredito que as melhores textos de crítica cinematográfica são escrita criativa. E para honrar um filme deves tentar, não necessariamente mimar a sua estrutura, mas pelo menos escrever algo que esteja em sintonia com o seu espírito. Apanhar algum desse espírito…
CN: É curioso. Na comunidade da crítica cinematográfica portuguesa online despoletou recentemente uma discussão sobre se os escritos de gente como André Bazin ou Serge Daney traíam de certa forma os próprios filmes. Como se os textos já não fossem sobre os filmes mas os aprisionassem numa visão elaborada. O que é que pensas disto?
AM: Para já tenho que dizer que gosto muito desses dois autores. Eram ambos excelentes escritores, muito comprometidos com o que estavam a escrever e a descobrir. Tinham sempre essa espécie de entusiasmo jornalístico sobre a descoberta dos filmes. Eles viam este ou aquele filme algures no mundo e tentavam relacionar as obras com ideias, debates do que se estava a pensar ou a falar nesse tempo. Penso que quer o Bazin quer o Daney tentavam de certa forma resumir os filmes e a visão que tinham deles mas nunca numa perspectiva de fechamento. Eu penso que um filme abre-te qualquer coisa que deves tentar captar mas nunca fechar. Provisoriamente delimitas as questões para que possas pensar sobre elas, atribuir-lhes significado. E quando vês o filme de novo as questões abram-se e ainda há mais para pensar e para escrever. Por isso é que um texto crítico nunca é definitivo nem apresenta um fechamento de um filme. É antes uma afirmação provisória de qualquer coisa que quando revês o filme se abre e se reformula.
CN: Gostava agora de ler uma citação de Frank Capra que diz: “film is a disease. When it infects your bloodstream, it takes over as the number one hormone; it bosses the enzymes; directs the pineal gland; plays Iago to your psyche.” Alguns cinéfilos são acusados, alguns sentem-se mesmo culpados, de ver demasiados filmes. Alguma vez sentiste esta ansiedade por não estar, digamos assim, a “viver o suficiente”? E se sim, como lidas com isso?
AM: Confesso que já senti essa ansiedade uma ou duas vezes na minha vida, não muitas na verdade. Identifico-me muito com essa citação. Ainda hoje eu vivo completamente obcecado com a possibilidade de ver mais e mais filmes. Quando era adolescente, claro, o cliché apareceu: “será que estou a passar demasiado tempo no escuro? Será que não estou a viver o suficiente?” Tudo isso. Mas rapidamente me reconciliei comigo e com esses pensamentos. Ver filmes, ligar-me a eles, pensar, escrever, ensinar cinema é uma forma de vida. Como outra qualquer, da mesma maneira do que o das pessoas que lêem obsessivamente, dão passeios ou o que quer que seja. Existe um tipo de personalidade na cinefilia. As pessoas, por vezes, isolam-se e fecham-se na sua devoção ao cinema. Por vezes, conheço pessoas assim e também não deixo de pensar que deveriam sair um pouco mais, apanhar sol, falar mais com as pessoas. Mas quanto a mim encontrei um equilíbrio sobre o qual me sinto bastante bem.
CN: Gostava que falássemos agora um pouco do cinema contemporâneo. No teu livro What is Modern Cinema? usas a expressão “a camisa de forças do classicismo”. Achas que o cinema moderno é responsável por uma nova liberdade ou por uma nova camisa de forças?
AM: Claro que tudo, seja o que for que as pessoas reconheçam como moderno, pode facilmente tornar-se uma fórmula. E novamente isto liga-se à questão da crítica. É que estamos sempre à procura da fronteira do que é novo. E estas fronteiras podemos encontrá-las seja onde for, não apenas no cinema moderno mas também no cinema clássico ou avant-garde. Podes encontrá-la no cinema mais popular. O novo está em todo o lado. Somos muito sensíveis a qualquer vestígio do novo. Mas por vezes o novo é apenas a junção surpreendente de dois elementos comuns. Por exemplo, os filmes de género são incríveis não porque são radicalmente novos mas porque mexem com as fórmulas conhecidíssimas de forma interessante e revitalizante. Mais uma vez, não devemos ter um fetiche em relação ao novo porque o tradicional é igualmente inacreditável.
CN: Se pudéssemos operacionalizar o termo “contemporâneo”, como se fez por exemplo na história de arte, pensas que poderíamos encontrar traços estilísticos, ideológicos, temáticos no cinema feito hoje que de certa forma já não comunicaria com o chamado projecto do cinema moderno?
AM: Questão complicada… Eu sei que existe uma discussão em torno do termo contemporâneo sobretudo a partir da história de arte. O historiador de arte australiano Terry Smith tem um livro precisamente com o título What is Contemporary Art? e, claro, o filósofo italiano Agamben tem pensado muito sobre o assunto. No que diz respeito ao cinema não sei se percebo totalmente a questão. De certa forma ela tenta claramente identificar algo novo, que já não é clássico ou moderno. Outra coisa. Mas, de certa forma, isso era o que o movimento do pós-modernismo nos anos 80 queria também. Procurava algo novo que não fosse moderno. O pós-modernismo era, enquanto movimento, ideia, discussão, uma tentativa para voltar ao classicismo de uma forma renovada. Como fazia Godard nos anos 80 por exemplo. Mas era também uma nova forma de compreensão da cultura popular, uma nova forma de olhar para os teen movies, thrillers, filmes de género e procurar um novo ângulo de leitura e valorização. De certa forma era também um projecto para encontrar o contemporâneo, o novo na arte popular, algo que caísse fora do cânone modernista. Por isso, acho que actualmente a questão do contemporâneo é uma nova tentativa de fazer isto, algo que novamente se relaciona com o novo e como e onde o podemos encontrar. Para Terry Smith, é uma questão de olhar. Actualmente temos de situar todas estas questões do moderno, do novo, num mundo globalizado. Já não é uma questão de cada nação produzir o seu cânone moderno. Trata-se de um fluxo globalizado que se efectua através dos países, um mundo transnacional com trocas entre os países no novo espaço digital, na Internet. Acho que o contemporâneo procura definir esse estado de coisas. Os paradigmas clássicos e modernos foram constituídos e caracterizados por um intenso nacionalismo. A Nova Vaga francesa ou o neo-realismo italiano por exemplo. E os países eram representados pelos seus movimentos e autores. Actualmente o foco é muito mais em função de regiões. Nós não dizemos que os irmãos Dardenne são belgas. Ou alguém como Apichatpong, que é um dos principais emblemas do contemporâneo. Claro que podemos dizer que é um realizador tailandês mas o seu trabalho, embora profundamente envolvido na história e situação política do seu país, não se define pela sua nacionalidade. É uma obra que mistura influências locais, europeias, americanas, modernas, clássicas… Embora o Apichatpong filme a maioria dos seus filmes na Tailândia, temos a sensação que o poderia fazer virtualmente em qualquer parte do mundo. Todos os seus filmes são justapostos de uma maneira profundamente transnacional, começando mesmo pelo financiamento dos seus projectos. Penso que o debate do contemporâneo tem a ver com isto.
CN: Num livro de 2010, chamado Transiciones del Cine: de lo moderno a lo contemporaneo, o argentino Domin Choi refere que os filmes de Pedro Costa, Lisandro Alonso, Apichatpong, ao tentarem reanimar de forma nostálgica o realismo moderno e ao recusarem o paradigma neo-clássico, não são mais do que o cantar do cisne desse tal projecto do cinema moderno. Nostálgicos de uma promessa feita pelo cinema moderno mas que nunca se chegou a concretizar. Concordas com isto?
AM: Não li o livro, mas intuitivamente tendo a não concordar com esse modelo que vê o cinema contemporâneo como um falhanço do projecto do cinema moderno. E não concordo pois parte do que motiva o meu trabalho é manter aberto a todo o tempo a alternativa entre o realismo e o que poderíamos chamar artificialismo ou artifício. Penso que devemos manter esses dois caminhos abertos uma vez que sempre existiram no cinema. Parece-me um erro colocar o realismo como um propósito dominante na história do cinema e ver os outros como desvios. Se lermos um autor como André Bazin, embora tenha escrito muito sobre o realismo, reconhecia sempre essa duas vias: o realismo e o artifício. Por exemplo ele refere como Renoir chegava ao realismo através do artifício. Nos anos quarenta e cinquenta tudo era tão estilizado e artificial que podemos relacioná-lo com uma ideia expansiva do realismo. Eu e a Cristina pensávamos nisto ao ver A Última Vez que Vi Macau ( 2012) de João Pedro Rodrigues. Este filme é uma espécie de ponto cimeiro do artifício no cinema contemporâneo. E tem raízes próprias e bem identificadas no cinema em nomes como Sternberg, Michael Powell e muitos outros. De certa forma, os realizadores a que fizeste referência… Apichatpong mais uma vez é um bom exemplo. Não podemos circunscrever os seus filmes ao realismo. Caro que existem traços dele mas há também a magia, os efeitos especiais. Quando conheci o Apiachtpong falávamos de Sud Pralad (Febre Tropical, 2004) e eu perguntei-lhe sobre o orçamento do filme. Ele disse-me que 7/8 dele tinham sido para os efeitos especiais do tigre, incluindo os cinquenta canais de som sintetizado do mesmo. Lembro-me de pensar, wow, que ideia diferente daqueles realizadores realistas que ligam a câmara durante dez minutos para filmar o rio a passar. Quer dizer, ele também faz isso mas numa vertente de total mistura entre o realismo e o artifício. Também se passa o mesmo com o cinema do Pedro Costa. Ele filma como alguém que pertencesse aos subúrbios, mas depois a banda sonora é totalmente reconstruída para dar um efeito realista. Não que ele esteja apenas a captar o som nas ruas. O som das ruas é depois recriado, elaborado, mixado. Trabalha o artificialismo total para um realismo eficiente. Actualmente penso que a grande maioria dos cineastas faz isto: tentam chegar ao realismo através do artifício. Seja como for, penso que existe hoje no cinema contemporâneo um ênfase desnecessário no realismo.
CN: Para além de teres sido Júri na última edição do Doclisboa, vieste também a Lisboa dar uma conferência na Faculdade de Letras. Nessa conferência, defendeste os ensaios audiovisuais como uma nova e entusiasmante possibilidade de explorar o futuro da crítica de cinema. Podes dizer-nos algumas das suas virtudes?
AM: Para mim, é outra forma de explorar a crítica de cinema não apenas através das palavras. Podemos fazer imensa coisa com palavras e claramente não esgotámos as suas potencialidades na relação com a crítica de cinema. Na conferência, falei daquela frase do Godard que dizia que podias escrever sobre cinema, mas que chegava o momento em que tinhas de trazer as provas. Nesse sentido de convocar as imagens e os sons para provar o que estás a dizer sobre um filme. E como disse a Cristina na sua apresentação os artistas sejam eles Godard, Chris Marker ou Matthias Müller sempre foram à frente a trilhar-nos o caminho. Há já muitos anos que têm vindo a fazer vários tipos de colagem, filmes-ensaio, montagens líricas e por aí fora, mostrando formas diferentes de utilizar sons e imagens para refletir sobre outras imagens e outros sons. Quanto a nós, críticos, é um período de experimentação. Enquanto escritor, quero abrir a possibilidade de escrever dois parágrafos e depois, se quiser, ter uma imagem, uma sequência de imagens, um clipe de som. Esta opção modifica a economia do que escreves. A maioria dos críticos de cinema assume que o objecto está ausente, que o filme é um referente ausente que viste e depois tens de o recordar e de o descrever na sua ausência. Esta é a situação básica da crítica de cinema. Mas agora com estes ensaios audiovisuais podemos não ter o referente completamente ausente. Podemos ter o filme e, por isso, mudar o ênfase do nosso pensamento para algo lateral à descrição do filme, e usá-lo, montá-lo ou compará-lo em split screen.
Cristina Álvarez López: Do ponto de vista de quem faz um ensaio destes o efeito das imagens com as quais estás a trabalhar é totalmente diferente. Não melhor nem pior do que com o texto. Apenas diferente. Tens ali à tua frente a prova do que estás a tentar afirmar e depois depende muito do que queres dizer. Em alguns trabalhos usar as imagens directamente é um processo mais poético. Podes provar, mesmo para ti próprio, que o que estás a dizer é correcto. Ainda para mais em relação aos críticos de cinema, a maioria obcecada com o cinema e o poder da imagem e do som faz todo o sentido que esta seja uma forma de experimentar, argumentar e criar um discurso sobre um filme. A experiência é diferente desde logo pois estás a trabalhar com as mesmas propriedades do filme sobre o qual estás a pensar. Esse é um sentimento poderoso que enquanto estás a criar o ensaio te abre uma série de possibilidades.
CN: Não sei de será necessariamente um problema mas a questão que me vem logo à cabeça é: como distinguir estes exercícios críticos que usam imagens e sons dos filmes experimentais, dos filmes ensaios de gente como Godard ou Marker? Essa separação, a ser possível, é boa ou não?
AM: Acho que isso tem de ser avaliado caso a caso. Por exemplo se vires um site como o da Catherine Grant, Film Studies For Free, que junta vários destes ensaios, percebes que há muitos estilos diferentes. Alguns, por exemplo, usam uma cena e com uma voz off dizem, agora reparem neste plano ou nesta escala… etc. Esta é uma abordagem bastante pedagógica. Neste caso, é menos uma obra de arte e mais um instrumento de ensino. Eu acho que os ensaios nos quais eu e a Cristina estamos a trabalhar tentam obscurecer um pouco as fronteiras entre o objecto pedagógico e o objecto artístico. A nossa ambição é criar algo, seja um ambiente, um estado de espírito ou uma dada ligação entre pedaços da história do cinema. No meu caso, eu não sou um artista, sou um crítico de cinema por isso estou muito interessado no potencial destes ensaios de um ponto de vista pedagógico, algo para ilustrar argumentos, opiniões. Mas há sempre um ponto em que as linhas se começam a confundir e em que crias algo que esteticamente tem valor mas não deixas de tomar uma posição crítica sobre um objecto cinematográfico. Aí acho que criaste, de forma modesta, um pedaço de cinema, ao juntar todos aqueles elementos. Além disso, trabalhar com som, com a montagem, a precisão das várias camadas, só pode trazer aos críticos boas experiências.
CN: Não é esta uma tendência da teoria ir ao encontro da arte, partilhando os seus modos de fazer mas também as suas preocupações criativas?
AM: Tenho um amigo artista que é realmente um homem criativo e que uma vez me disse: “os críticos de cinema só começam realmente a compreender o cinema quando já experimentaram fazer um corte na montagem”. E ele queria dizer isto a todos os níveis: ao nível de construir uma ideia através da junção de duas imagens, ao nível da emoção estética, ao nível do elemento plástico, do ritmo. Todas estas decisões são as que levam a compreender a montagem. Por isso, acho que os críticos deviam sair da sua “zona de conforto”, de trabalhar apenas com palavras, mesmo que o façam muito bem. E esse momento em que te envolves com os materiais é uma experiência de humildade, pois percebes que é algo difícil. É difícil montar ou filmar uma cena. O que é realmente a mise en scène se nunca dirigimos nada na verdade? Há um lado prático que ajuda a compreender algumas questões. No final de contas estes ensaios servem ao crítico para estender a sua capacidade de análise.
CN: E também porque as melhores reflexões críticas acabam por se aproximar de verdadeiras obras de arte…
AM: Claramente. Um dos livros que li em jovem e que me influenciou muitíssimo foi o Theory of Film Practice (1974) do Noël Burch. Ele escreveu o livro quando já era cineasta e há nele momentos em que ele descreve várias cenas de filmes. Alguns anos mais tarde alguém lhe disse que ele se tinham enganado e que alguns elementos a que fazia referência, planos, enquadramentos, pura e simplesmente não estavam nos filmes. Ele tinha inventado esses elementos na sua cabeça. Mas o Noël decidiu não modificar o livro. Em vez disso, introduziu uma nota de rodapé dizendo que este ou aquele elemento não estava no filme e que tinha sido ele na sua memória a inventá-los. Mas, no final, dizia que tudo isso era justificável pois se ele conseguia descrever essas cenas era porque conseguia filmá-las. Aí está um exemplo de como pode ser estranha e criativa a relação entre a crítica de cinema e a realização.
CAL: Nos ensaios audiovisuais por vezes o que te lembras de um filme não é o que está lá. Por exemplo, acontece muito em filmes antigos lembrares-te de uma cena que pensas que era enorme e depois vais a ver e ela não é assim tão grande. Tem a ver com a intensidade emocional e com o impacto na tua visão do filme. Depois, quando tens de trabalhar com as imagens percebes estes gaps entre os filmes e a memória que tens deles.
AM: É muito importante o que a Cristina está a dizer, porque ao final de contas os filmes são mecanismos psicológicos, com momentos incrivelmente condensados e intensos. Sentes que se passa tanta coisa, tão intensamente e depois vais a ver e o plano que te lembras nem cinco segundos tem. Mas o mais provável é que todo o filme tenha construído a tensão desse momento particular, para produzir esse determinado efeito. Trabalhar com isso neste ensaios é complicado. Talvez tenhas de remontar o plano várias vezes, pôr algo antes ou depois, ou outra coisa qualquer para passar a experiência desse filme e dessa intensidade. Não é apenas uma questão de citar este ou aquele fragmento. Além disso, há nestes ensaios a ambição de reconstituir o trajecto que o próprio filme percorreu para chegar àquele momento em particular.
Fim da parte I