Quando a historiadora belga Florence Gillet escreveu um artigo sobre a vida de André Cauvin para a CINEMATEK, intitulou-o Histoire d’un Passion Ambiguë pour l’Afrique. Bwana Kitoko (1955), o documentário que o cineasta realizou para documentar a viagem do rei Balduíno ao Congo e ao Ruanda-Urundi, é porventura o exemplo mais paradigmático daquilo que foi, entre 1938, o ano de De Melaatsheid (A Lepra) de Gérard De Boe e 1960, a data da independência do Congo, esta ambiguidade do cinema colonial belga.
Cauvin fazia parte de um conjunto de realizadores que, durante toda a sua carreira, trabalharam ao serviço do status quo, criando uma extensíssima obra conjunta que sublinhou e exaltou as supostas maravilhas trazidas pela Bélgica aos países africanos para os salvar da miséria e da barbárie. De todo este grupo, Gérard De Boe foi o mais influente, prolífico e poderoso, dirigindo mais de setenta filmes e morrendo dois meses antes da primeiras eleições do Congo independente. De Boe, trabalhando directamente para o Estado belga numa primeira fase, e, posteriormente, fundando a companhia Produktie, foi um sublime orquestrador de utopias, construindo no seu cinema um país irrealmente perfeito, marcado pelo progresso, humanismo e diplomacia dos seus protagonistas. Em L’Élite Noire de Demain (A Elite Negra de Amanhã, 1950), por exemplo, elege uma escola congolesa governada por missionários belgas e apresenta-a como um campo de treino para que toda uma geração negra se “civilize” e se aproxime das virtudes preconizadas pela moral de matriz judaico-crista. Dela sairiam, segundo a voz off do filme, as mais dedicadas e talentosas donas de casa e os mais viris e sapientes agricultores.
Em Formation du Personel Médical (Formação du Pessoal Médico, 1955), por sua vez, faz o mesmo para os estudantes de medicina, introduzindo-os como aplicados pupilos da ciência ocidental, opulentamente mimados pelas extraordinárias infraestruturas oferecidas pelo complexo da Faculdade de Medicina de Kalenda, fundada em 1949 na região do Kasai. Em Lovanium (1958) acompanha a construção de uma filial congolesa inter-racial da Universidade Católica de Louvain, erigindo cinematograficamente, através de uma mise en scène minimalista e de um trabalho cromático eminentemente estilizado, o espaço académico como um paraíso da pedagogia, da igualdade racial e de fraternidade entre os povos. Em En Cinquante Ans (Em Cinquenta Anos, 1958), finalmente, De Boe celebra epicamente a efeméride dos cinquenta anos da colonização da província do Alto Catanga, oferecendo um tributo à herança belga e contabilizando os esforços do progresso: as escolas, os hospitais, as maternidades e os orfanatos contruídos pelos europeus onde antes só havia mato ou areia.
André Cauvin não foi, sob nenhum aspecto, tão prolixo quanto De Boe, e, ao contrário do realizador de Soeurs Congolaises (Irmãs Congolesas, 1958), entrou no mundo da Sétima Arte por via da cinefilia e da crítica. As suas primeiras obras são, aliás, totalmente distantes da realidade colonial: dois filmes realizados nos anos trinta sobre arte flamenga, uma biografia documental de Hans Memling e uma análise pormenorizada da Adoração do Cordeiro Místico, o famoso políptico dos irmãos Van Eyck. O sucesso destes primeiros exercícios vai chamar a atenção do Ministro das Colónias, que lhe encomenda uma longa-metragem sobre o rio Congo. Ao desafio Cauvin responde com Congo, Terre d’Eaux Vives (Congo, Terra de Águas Vivas, 1939), uma narrativa simultaneamente nostálgica dos velhos hábitos tribais e entusiasta das novidades ocidentais introduzidas pelos belgas.
Durante a guerra, Cauvin combate na resistência, lutando contra a ocupação nazi da sua pátria e, a partir da Primavera de 1942, do exílio forçado em Londres. Lá reencontra Paul-Henri Spaak, um amigo de infância, agora ministro dos Negócios Estrangeiros da Bélgica. Spaak proíbe Cauvin de regressar ao país antes do fim da guerra e, sabendo do seu patriotismo enquanto resistente e o seu talento como cineasta, nomeia-o realizador oficial das colónias. A sua produção teria como objectivo convencer os americanos, que nutriam, durante a guerra, um profundo desdém pela política colonial do país, de que a Bélgica não estava a fazer mais do que levar o progresso às populações africanas, substituindo as “ténebras do passado” pela “luz de um mundo novo” e “tirando o continente negro do seu sono milenar”, como nos diz, convictamente, o comentário de Congo, Terre d’Eaux Vives. Neste período, para além destas obras cinematográficas, Cauvin comunicou também a sua propaganda através de outros suportes, como conferências, emissões de rádio, programas televisivos, livros ilustrados e, sobretudo, exposições fotográficas. Depois do fim da guerra, regressa ao seu país e retoma tanto a actividade de advogado como a de cineasta, realizando em África L’Équateur aux Cents Visages (O Equador dos Cem Rostos, 1948) e Bongolo (1951).
Bwana Kitoko, o seu projecto subsequente, apesar de partilhar com os filmes de De Boe um apagamento total de qualquer manifestação de dissidência e a vontade de construção de uma utopia audiovisual, é uma obra com algumas idiossincrasias significativas do ponto de vista cinematográfico e sociológico. É, em primeiro lugar, uma longa-metragem destinada ao circuito comercial, contrariando a tendência geral do cinema colonial, essencialmente concebido a pensar em exibições para públicos específicos e restritos ou para abrirem sessões com longas-metragens de ficção. Uma curiosidade, no entanto, acrescenta uma outra dimensão política a este aspecto: Bwana Kitoko é o título pelo qual hoje conhecemos o filme, mas Cauvin montou uma versão diferente, a que deu o nome de Le Voyage Royal. Enquanto que esta edição visava a exibição europeia, a primeira tinha como público-alvo os africanos. Apesar da diferença de pontos de vista, que nos suscita uma imediata analogia com o Letters from Iwo Jima (Cartas de Iwo Jima, 2006) e Flags of Our Fathers (As Bandeiras do Nosso País, 2006) de Clint Eastwood, o objectivo era o mesmo: provar, tanto a congoleses como a belgas, que as duas nações eram uma só e que a discordância não existia.
Por outro lado, o filme de Cauvin não é uma acção de propaganda pura. Nela desenvolve uma vertente etnográfica, profundamente eurocêntrica, complementando a reportagem governamental com aquilo que tinha tentado fazer, com alguma seriedade, em L’Équateur aux Cents Visages: um estudo dos hábitos e tradições das tribos congolesas. A sequência mais icónica desta linha é talvez a captura do ocapi, a especialidade da tribo de pigmeus que mais interessou a Cauvin. A cadência, absolutamente desproporcional em relação ao passo acelerado da visita real, é quase flahertiana, e a voz off assume o papel educativo dos intertítulos de Nanook of the North (Nanook, o Esquimó, 1922). Bwana Kitoko está também repleto de momentos de ironia, que colocam a voz enunciadora numa posição por vezes indecifrável em termos políticos. Uma das mais emblemáticas é a comparação entre a mulher congolesa, que continua a ostentar as vestes tradicionais, e o homem, que procura avidamente as roupas europeias para se aproximar da figura do habitante da metrópole. Esta pedagógica cena de coreografia vestimental dá-se, num soberbo enquadramento e com uma estridente utilização da Gevacolor (o processo cromático da firma belga Gevaert), em torno de uma fotografia do rei Balduíno, a força centrípeta de todo o filme. É, na verdade, para este “nobre senhor” (a tradução literal de “bwana kitoko”), que tudo converge, da penosa captura do ocapi ao extraordinário desfile de preparativos higiénicos e cosméticos, alindando os congoleses para o contacto com o rei e passando, sem qualquer corte ontológico, de planos onde se penteiam os chimpanzés e se lavam os elefantes para outros em que se arranjam o cabelo às crianças africanas. Seria esta uma das sequências que mais comprometiam Cauvin com uma visão paternalista e preconceituosa sobre os congoleses e que viriam a ser mais atacadas pelo activistas anti-coloniais.
Onde reside, então, a ambiguidade a que Florence Gillet se refere no seu artigo? Certamente à aparente contradição de quem filma apaixonadamente o progresso e, com igual entusiasmo mas com inconsolável nostalgia, os hábitos africanos que se estão a perder. A questão é, no entanto, ainda mais profunda. Quando em 1938 Gérard De Boe decide realizar a curta-metragem amadora De Melaatsheid, com vista a sensibilizar o governo belga sobre as terríveis condições de vida dos leprosos no Congo e contrariando, consequentemente, a imagem do progresso na área da saúde que o Estado tanto lutava por divulgar, a reacção foi, no mínimo, invulgar. Albert De Vleeschauwer, ministro das Colónias, e Léon Pétillon, seu chefe de gabinete, compram as cópias do filme de De Boe, pedem-lhe para não o exibir mais e, apercebendo-se das suas preciosas aptidões enquanto realizador, designam-no como cineasta do Gabinete Colonial, inaugurando a ideia de cinema estatal de propaganda ultramarina. De Boe passa assim, através de um simples acto ministerial, de genial contestatário a genial representante da mundividência oficial. Esta anedótica génese do cinema colonial belga provou que foi, frequentemente, apenas por circunstâncias históricas que estes cineastas mercenários trabalharam ao serviço do Estado, realizando contudo obras portadoras de uma marcada e rígida ideologia colonial. A produção de autores como De Boe, Cauvin e Ernest Genval seria assim, naturalmente, o principal inimigo das primeiras obras de René Vautier e Jean Rouch, que se ergueram como violentos manifestos contra a ortodoxia política e a estreiteza antropológica do cinema colonial.
Depois de décadas de invisibilidade, Bwana Kitoko está, juntamente com outras fascinantes raridades do cinema colonial belga, disponível no DVD Belgisch Congo Belge, editado pela CINEMATEK.