Um dia Kurosawa disse que nunca se ter assistido a um filme de Satyajit Ray é como viver no mundo sem alguma vez ter visto o sol ou a lua. Afirmação que, para além de lapidar, se enquadra perfeitamente no espírito desta obra-prima do realizador indiano, na qual a protagonista, a bela Charu, e o primo do seu marido, Amal, vivem uma história de amor sem sol e sem lua.
Amal chega a escrever um poema que se chama “Luz do entardecer sem lua”. É a luz das estrelas?, pergunta Bhupati, seu querido tio, homem sensato e culto que ama a sua bela mulher Charu (Madhabi Mukherjee) quase tanto quanto o som das rotativas que apressam a impressão do jornal político de que é proprietário, o Sentinela. Amal, encavacado, responde que não é astrónomo – até aqui este jovem recém-licenciado ainda se achava nascido para a arte da palavra escrita, tal qual a personagem Apu, que o mesmo actor, Soumitra Chatterjee, interpretara no último filme da famosa trilogia também realizada por Ray. Mas regresse-se de uma vez por todas ao filme que aqui me traz: Charulata (1964), obra que canta o amor à vida vis-à-vis a mágoa de se estar vivo, tecendo livremente a expressão mais depurada e inefável da “arte poética” de Ray.
Salvo erro, era Rivette que dizia que as maiores obras-primas do cinema são sempre, de uma maneira ou de outra, documentários sobre a sua rodagem. Charulata começa, logo nos primeiros minutos se não logo no título, por identificar o realizador do filme no filme: a própria Charu, a “mulher solitária” (= título inglês do filme) que, entre quatro paredes, inventa o seu próprio cinema, com o olhar delimitado pela janela de casa e socorrendo-se de uns binóculos. Com efeito, a portada da janela determina o que pode ver, produzindo “o quadro”, ao passo que o instrumento ocular faz o olho ver mais longe sem, com isso, o tornar mais visível. Pormenor: estamos em 1870, logo, o cinema privado de Charu, anterior ao cinema público dos Lumière, apenas se revela no imaginário. Para Charu, este cinema só do imaginário (privado, íntimo, lúdico) tem uma função, porquanto o voyeurismo se produz no interior para atenuar a fome que o corpo e o olho têm do exterior. Não é bem um regime de clausura, mas mais de “câmara escura” (sem sol e sem lua?), uma “chambre” onde Charu diz ter-se acostumado a estar só. O marido objecta que ninguém se pode acostumar a estar só, mas ele não conhece o mundo secreto de Charu e a sua curiosidade pós-cinéfila, pré-cinematográfica, pelo mundo.
Não se pense que Ray fez Charulata para denunciar, qual Naruse bengali, a situação de cativeiro em que vive a mulher indiana ou para produzir a crítica a uma sociedade arcaica e machista. Não, Bhupati é um homem moderno, sensível à solidão da sua mulher, mas incapaz de lhe fornecer a atenção devida. Esta “falta” angustia-o, sendo que não nega, brincando sem malícia, que o seu amor à política e ao jornalismo são as grandes rivais com que Charu se tem de bater. Bhupati é um homem cosmopolita e de bom coração que – espante-se! – ama e respeita de facto a sua mulher. É ele que a vai estimular a pôr em prática o seu amor às letras, é ele que se apressa em encontrar a companhia certa de que esta precisa. A confiança deste homem pela sua mulher é comovente e genuína, através dela o nosso fascínio por Charu tem tudo para ir crescendo à medida que ela vê, se dá a ver ou, em suma, revela a nós o filme, pelo seu olho nu de cineasta ou, de novo, mediada pelos binóculos que traz consigo. Charu é o alter ego de Ray aqui, é ela que produz as imagens do filme, é ela que encadeia a narrativa de amor, seja cosendo uns chinelos para Amal ou um lenço para o marido, seja desafiando a gravidade num baloiço – cena magnífica onde, já de olho livre (= sem binóculos), o plano da câmara de Ray volta a coincidir com a visão de Charu.
Revelação de um olhar a partir de dentro. É isso que este filme sublime nos oferece – na realidade, é isso que ele é. Esta dimensão interior, privada, cinéfila ou cinematográfica, sem lua e sem sol, cria uma paridade mais imediata com outra obra-prima absoluta de Ray, Jalsaghar (Salão de Música, 1958). Também aqui sentimos o isolamento ou a solidão não como a experiência de uma prisão mas antes como uma condição de se estar vivo no mundo; não como produto da sociedade mas como condição sine qua non de produção do lado mais (dolorosamente) humano do Homem – o amor não é a arte da distância? O cinema não é a arte da distância? Claramente, continuo a falar de um documentário das emoções feitas imagens. Já Wim Wenders, o teórico, traduzia imagens em movimento em (e)motion pictures. Curioso que Ray, no fim, resolva o choque existencial de Bhupati com o mundo, onde a confiança não passará de uma quimera, retirando o movimento (motion) à imagem e, com isso, isolando nela a emoção profunda associada a qualquer amor, mesmo – ou mais que tudo… – ao amor traído (emotion). Não há muitas palavras úteis que alguém como eu possa dispensar a um filme tão belo como este. Aliás, nem sei se merecemos um filme como Charulata. Há obras assim: infinitamente melhores que nós. Obrigado, senhor Ray.