Numa mesa redonda recente, que reuniu alguns dos cineastas mais “quentes” da actualidade em Hollywood, Quentin Tarantino denunciou o que entende ser a mais completa profanação da experiência de fazer e, mais ainda!, de dar a ver cinema. Para si, a projecção em digital nos multiplexes não é cinema mas uma forma de “televisão pública”. Este “devir televisão” por que passa o cinema a nível mundial está já anunciado no modo como a indústria de Hollywood vende os seus “pesos pesados”: desde logo, através de um processo – tipicamente televisivo – de “serialização” dos conteúdos. O realizador de Jackie Brown (1998) chega mesmo a afirmar, qual Marshall McLuhan, que se o medium de exibição se tornou televisivo, então o melhor que tem a fazer no futuro é dedicar-se em exclusivo à realização de séries, explorando assim ab ovo as virtualidades inscritas no ADN mediúnico, nomeadamente a capacidade de melhor “romancear” as narrativas filmadas, alongando-as sem que haja grandes constrangimentos de tempo.
A mudança começou nas salas com as sagas ou franchises ou filmes em capítulos ou episódios sucessivos, numa espécie de assimilação da linguagem que move e comove o espectador televisivo. O espectador, que é antes de tudo um expectador, não quer ser surpreendido para lá de um esquema narrativo e dramatúrgio que esteja, nas suas linhas fundamentais, já devidamente assegurado antes de entrar na sala de cinema. Neste ponto, como em muitos outros – cada vez mais, receio -, o expectador da televisão não difere em nada do expectador do cinema. Em Portugal, pude constatar isso olhando para todo o ano de 2012 a partir da programação de cinema preparada para os dias 31 de Dezembro e 1 de Janeiro. Como acontece em todas as passagens de ano, o cinema constitui o principal campo de batalha para os canais de sinal aberto, especialmente SIC e TVI. O que parece estar em jogo aqui é, por um lado, a fixação mais eficiente da uma imagem, ou melhor, de uma filosofia que seja coerente com aquilo que o canal foi, é e quer ser no futuro e, por outro lado, uma competição onde é testado o conhecimento acumulado ao longo do ano sobre aquilo que não só é o seu público, mas, mais que isso, sobre o que a maioria dos portugueses quer ver no pequeno ecrã. Talvez por causa desta convergência de desafios, as semelhanças entre as duas programações saltam mais à vista que qualquer uma das subtilíssimas dissemelhanças – subtilezas que, negligenciadas, poderão custar à estação a primeira meta que enunciei.
Desde logo, constata-se a tal paridade formal e substancial entre o que a TV produz para si mesma e o que a TV apenas veicula a partir de outro medium, para o caso, a partir do cinema. Os canais portugueses souberam aproveitar o “devir televisivo” do cinema norte-americano para programarem este quase com a mesma ligeireza com que programariam os episódios mais marcantes de uma série ou telenovela. Só em matéria de sequelas, passaram em sinal aberto, na televisão portuguesa, 10 títulos, aos quais se somaram dois remakes de obras populares (Karate Kid e Godzilla). Tivemos, então, 12 filmes em apenas 48 horas que, de um modo ou outro, replicam uma forma e uma fórmula já conhecida da maioria dos espectadores, mesmo daqueles que representam o grande público-alvo de toda a televisão como de todo o cinema: o público infantil e adolescente. Dito de outro modo: cerca de 46% dos filmes que passaram na televisão comercial, nos dias 31 de Dezembro e 1 de Janeiro, eram sequelas ou remakes. Deste universo importa destacar alguns títulos: na SIC, Spider-Man 3 (Homem-Aranha 3, 2007), Wild Things: Foursome (Ligações Selvagens 4, 2010), Open Season (Boog & Elliot 3, 2010); na TVI, Live Free or Die Hard (Die Hard 4.0 – Viver ou Morrer, 2007), American Pie Presents Band Camp (American Pie Apresenta – Campo de Férias, 2005) , Ice Age: A Mammoth Christmas (Idade do Gelo: Especial Natal, 2011) e The Fast and the Furious: Tokyo Drift (Velocidade Furiosa: Ligação Tóquio, 2006). O que têm em comum estes filmes? Todos eles estão para lá da primeira sequela do franchise que representam, em quatro casos (e incluo aqui a curta especial de Natal das aventuras de animação Ice Age) estamos para lá do terceiro capítulo. No período em análise, a TVI é o canal que mais aposta neste fenómeno de “serialização” do cinema, mas a diferença para a rival SIC é quase nula quando comparamos o nível de desgaste intrínseco aos franchises em questão.
Numa análise rápida que fiz de todos os filmes exibidos na televisão nacional em 2012, constato sem surpresa que a SIC repete-se mais que a TVI nos títulos escolhidos para a passagem de ano. Essas repetições premeiam, de algum modo, títulos que tiveram um bom comportamento em termos de rating ao longo do ano. Os exemplos mais notórios são The Prince of Persia: The Sands of Time (Princípe da Pérsia: As Areias do Tempo, 2010) – mostrado duas vezes, no dia 7 de Abril e 16 de Setembro, com ratings muitos bons de, respectivamente, 10,3% e 9,1% – e Magadascar: Escape 2 Africa (Madagáscar 2, 2010) – já exibido no dia 29 de Julho, com um rating de 8,7%. Pelos bons resultados obtidos, a SIC decidiu dar aos dois filmes o prime time do primeiro dia de 2013. Mas também acredito que, no segundo caso, acresce outra razão de peso, que decerto terá estado no espírito dos programadores da SIC e TVI: os resultados do boxoffice português em 2012.
Os números (nesta data, ainda não definitivos) publicados recentemente pelo ICA não deixam dúvidas: a grande fatia do bolo é de tamanho e de sabores familiares, sendo que quem faz a “encomenda” são sempre os mais novos. Se o cinema se “televisou”, a televisão parece programar à distância o que (se) passa nas nossas salas de cinema. Atentemos ao pódio: Madagascar 3: Europe’s Most Wanted (Madagáscar 3, 2012), Ice Age: Continental Drift (A Idade do Gelo 4 – Deriva Continental, 2012) e The Twilight Saga: Break Dawn – Part 2 (A Saga Twilight Amanhacer: Parte 2, 2012) – eis o cúmulo dos cúmulos, uma sequela dividida em partes! Será preciso acrescentar alguma coisa sobre o grau de coincidência entre as duas dinâmicas em análise, TV e cinema? Penso que não, apenas aponto outro dado deste ranking: temos de esperar pelo 12.º lugar, por sinal ocupado por um filme nacional e logo uma sequela! (Balas & Bolinhos – O Último Capítulo), para encontrarmos um título que não seja de produção norte-americana ou inglesa. O que aconteceu na passagem de ano? Apenas pudemos ouvir um filme onde não se fala a língua de Shakespeare: Rien à declarer (Nada a Declarar, 2010) de e com Dany Boon, comédia francesa relegada para a 1 hora da manhã na RTP1, quando ninguém tinha ainda feito a digestão das passas ou recuperado da tontura do espumante.
Estas duas tendências – serialização e americanização – do cinema dentro e fora do pequeno ecrã – mas, defendo eu, nascidas e estimuladas “a partir de dentro” – são também replicadas nos filmes que, ao longo de 2012, cativaram mais telexpectadores. Numa análise ligeira que fiz das audiências diárias dos principais canais, que, note-se, é susceptível de ser reconfirmada, concluo que a esmagadora maioria dos filmes mais vistos são de língua inglesa e ou são sequelas ou são primeiras obras de um franchise que, das duas uma, ou já se desmultiplicou ou se prepara para desmultiplicar em mais que um capítulo e/ou parte (The Smurfs: A Christmas Carol, Terminator, The Twilight Saga: Eclipse + New Moon, Angels & Demons, Cars 2, Avatar, Mr. Bean’s Holiday, etc.). No dia de Natal, a SIC – canal que investe mais em cinema, logo, que também se repete mais – viu Pirates of the Caribbean: On Stranger Tides (Piratas das Caraíba: Por Estranhas Marés, 2011) alcançar a marca dos 14,5% de rating e 33,1% de share. Terá sido senão o mais visto, um dos filmes mais vistos do ano pelos telexpectadores portugueses. O investimento que a SIC fez na saga Twilight e, homologamente, a TVI na série de filmes American Pie sublinha o sintoma já atrás identificado: é para adolescentes, ou mais precisamente para pré-adolescentes (10 a 12 anos?), que a televisão e o cinema nela ou fora dela, bem grelhado ou mal grelhado, são pensados.
Todos estes dados poderão despertar um sem número de reflexões interessantes, a maioria das quais convido o leitor a fazer e a transmitir neste espaço. De forma muito abreviada, apenas digo que a realidade portuguesa não será diferente da realidade internacional, que o expectador televisivo de filmes, de gostos informes (= ainda em formação), tendencialmente conservador e “seguidista” (ao estilo de um “querido líder”…), é o mesmo expectador que (ainda) vai às salas de cinema e que, por consequência, por cada decisão que toma, configura e reconfigura a realidade estética e temática de futuros universos fílmicos. Também me parece evidente que a serialização bulímica dos filmes, o monopólio da língua inglesa em objectos que raramente são mais velhos que quem os vê e a “repetição da repetição” de fórmulas conhecidas e de sucesso garantido não contribuem nem para a criação de uma comunidade de pessoas civicamente despertas, culturalmente exigentes e politicamente activas (como pode haver crítica sem memória?), nem tão-pouco as fará compreender o alcance dessa linguagem que, por não estar a ser exercitada, se encontra, de facto, em vias de extinção: o cinema.