Para olhar de relance hoje a obra de Robert Zemeckis é obrigatório reflectir sobre duas questões. Antes que tudo é uma evidência que este é o “movie brat” que pior se desenrasca no digital. Basta espreitar esses desastres que são The Polar Express (Polar Express, 2004) e Beowulf (2007) para perceber que este não é um universo especialmente propenso a receber o lado humano-didáctico do seu cinema. Em seguida é preciso perceber que, como Joe Dante, a importância de Zemeckis se faz, fez, na segunda metade da década de 80, no tom da aventura familiar, divertida, e menos nas incursões dramáticas.
Por isso, filmes como a trilogia Back to the Future (Regresso ao Futuro, 1985, 89, 90), ou comédias como Death Becomes Her (A Morte Fica-vos Tão Bem, 1992), Who Framed Roger Rabbit (Quem Tramou Roger Rabbit?, 1988), ou mesmo esse Indiana Jones versão feira do relógio que é Romancing the Stone (Em Busca da Esmeralda Perdida, 1984) fizeram muito mais pela sua carreira do que obras como Forrest Gump (1994), Cast Away (O Náufrago, 2000) ou Contact (Contacto, 1997). É sobretudo nestes últimos filmes, com o seu tom bigger than life, que o facto de Zemekis ter sido sempre ofuscado pelo brilho de Steven Spielberg mais salta à vista.
Com estas bússolas de interpretação da sua obra em mente diga-se que Flight (Decisão de Risco, 2012) é o seu regresso ao live action (e isso é bom), mas também é um star vehicle para Denzel Washington, num drama sobre o alcoolismo (e isso não é tão bom). O filme, com um orçamento “comedido” de 30 milhões de dólares, baseia-se num episódio verídico de 2001, quando um piloto canadiano aterrou de emergência nos Açores um avião com mais de 300 passageiros devido a falta de combustível. Se houve aqui algum investimento criativo no primeiro acto do filme (a façanha do capitão Piché, aqui Denzel, aliás o piloto Whip), a segunda metade do filme é sobretudo um character study do herói a braços com um processo de consciencialização do seu problema com o álcool e da sua eventual responsabilidade nos afinados e kafkianos processos de averiguação das causas de acidentes de aviação.
Que dizer de tudo isto? Que é um regresso à comfort zone de Zemekis e que isso implica que quem não soubesse e entrasse na sala de cinema pensaria estar a viver os momentos de glória de dramas dos anos 90: os três actos muito bem definidos, a lentidão narrativa para fazer emergir o drama do protagonista, alguns efeitos inenarráveis (há uma caixa com seringas a cair ao chão em slow motion ao som de Red Hot Chilli Peppers…), escolhas musicais óbvias (Rolling Stones, Marvin Gaye, Joe Cocker) ou comic reliefs igualmente evidentes [John Goodman num papel ao estilo The Big Lebowski (O Grande Lebowski, 1998)]. Tudo isto a preparar um terceiro acto de tribunal, sub-género bem moribundo.
Daqui parte um lado agridoce em Flight. Sem nunca chegar aos grandes filmes sobre o tema como The Lost Weekend (O Farrapo Humano, 1945) de Billy Wilder ou mais recentemente Leaving La Vegas (Morrer em Las Vegas, 1995) de Mike Figgis, há uma capacidade de envolvimento extraordinário que Denzel Washington consegue proporcionar ao espectador. Extraordinário não por mérito de Zemeckis (pelo contrário há uma neutralidade aborrecida na forma como dirige o filme, e depois, decide-se a trabalhar a redenção das suas personagens com subtileza de grau zero), mas por capacidade do actor, centro humano do filme, e que transforma material mediano num filme passível de ser visto sem remorso. Este é o lado doce porque o que deixa um travo amargo é que tudo isto, tudo, sem excepção, já foi conseguido há, pelo menos, vinte anos. Nesse sentido, ver hoje Zemeckis é como assistir a um concerto revival: não interessa tanto a capacidade de produzir material novo, mas antes a possibilidade de evocar o passado. Como um jogo de nostalgia. “Welcome to the nineties. Again”, diz o onanista.