Já não se fuma no cinema, nem os próprios malfeitores, os últimos a segurar um cigarro entre os dedos, dão baforadas maquiavélicas. Isto para não falar nos heróis: o tempo de Bogart passou e mesmo o Philip Marlowe de Elliot Gould [figura (peri)patética de The Long Goodbye (O Imenso Adeus, 1973) de Robert Altman], fumador compulsivo, seria difícil de encontrar nos filmes de hoje. Fuma-se muito em Mad Men, série de que transporta o telespectador para a década de 60, mais para mostrar os estranhos hábitos de antigamente do que outra coisa. Muitos defendem que a imagem de uma estrela a fumar no ecrã é demasiado sedutora para um jovem impressionável. E têm razão: eu comecei a fumar por causa de um filme – Blue in the Face (Fumo Azul, 1995), em que Harvey Keitel, Lou Reed, Jim Jarmusch e outros discorriam sobre as virtudes e malefícios do tabaco (e as primeiras ganhavam por larga margem: o cigarro é realmente sedutoramente cinematográfico). Mas qual é ao certo o poder do cinema? Será que a censura do “politicamente correcto” é justificável?
Estou a ver as vossas cabecinhas a abanar que não, não é. No entanto, se substituir fumo por racismo ou homofobia, talvez algumas mãos comecem a coçá-las. A verdade é que, por exemplo, os Westerns clássicos, tão queridos de tantos cinéfilos (e aqui me incluo), retratam os índios como assassinos incivilizados com uma sede de vingança contra os brancos inexplicável, esquecendo a história dos Estados Unidos. Esses pensamentos nunca me tiraram o prazer de uma boa cavalgada (salvo seja) mas será que deveriam? Será que seria possível fazer filmes assim agora? Provavelmente, não. Coloco outra pergunta: será que mesmo os que amam as cowboyadas de antanho veriam com bons olhos réplicas actuais das mesmas? E se se pensar nos incontáveis pretos do cinema clássico americano, sempre tão prestáveis e curvados, tão analfabetos e burrinhos, eternos secundários, alvos da perene paciência dos amos brancos. E se se pensar na palavra “preto”? Será que a deveria ter escrito? Será que não é demasiado ofensiva? (JL)
Se calhar é. Depois de Morgan Freeman ter dito que a melhor coisa que podiam fazer contra o racismo é deixarem de falar dele, Quentin Tarantino – que, por acaso, nunca blaxeplorou Freeman – quis pôr o tema na ordem do dia, começando, aliás, por julgar na praça pública nada mais nada menos que John KKK (!!!) Ford. Será que a iniciativa deixou o Freeman menos free e mais negro ou, usando aqui a palavra “inimiga número 1” da América, mais “nigger”? Spike Lee diz que o dito filme (que ele não viu) desonra os seus antepassados, mas o que achará ele de Ford? E, “muito pior”, de Griffith? E da patusca governanta negra de Gone With the Wind (E Tudo o Vento Levou, 1939)? E do primeiro “cantor de Jazz” audível da história do cinema? E…Entenda-se: Tarantino é branco e, como branco mais branco não há, ei-lo neste momento no centro do furacão, sujeito mesmo a ter de repetir ad nauseam o que sempre disse e toda a gente sabe: Hollywood sempre adorou estereotipar minorias, reduzir os vários massacres racistas da sua história a entretenimento para toda a família e, ao mesmo tempo, indignar-se com tudo isso. A América olha-se ao espelho e o espelho fende por todos os lados. (LM)
Mas lá está, Tarantino é branco e como tal não lhe cai bem comentários sobre os colored, no entanto Lee, nos seus filmes, fez vários dos comentários mais racistas, daqueles que não passariam incólumes se fossem feitos por um whitey. Só os pretos podem fazer piadas sobre racismo, só os judeus podem fazer humor com o holocausto (veja-se Mel Brooks), só os gays podem gozar com os elementos da “comunidade” (e todos podemos dizer mal dos ciganos). Armar a figura de proa de uma certa moralidade límpida que acusa de desrespeito à memória, ao sofrimento e ao trauma dos seus é algo que deve ser tão antigo como a própria existência do homo sapiens, que certamente já faziam pouco da caverna do vizinho (veja-se o último Herzog). Sendo o cinema uma arte que espelha aquilo que nós, como espécie, somos, é natural que nela haja toda esta malha de impropérios e afins maleitas da alma. A solução para evitar isso seria fazer pastelões anódinos (veja-se Ron Howard). (RVL)
Aliás não é por acaso que se fala por aqui de cavernas e de espelhos. Como bem se sabe é famosa a analogia entre a caverna de Platão e o mecanismo cinematográfico. Que princípio de distorção implica o cinema em dar a ver o mundo, que é sempre uma visão entre muitas possíveis? A questão passa um pouco pela confusão entre ética e moral estabelecida desde que a tradução latina do termo grego êthica para mores (moral) apenas contemplou o lado dos costumes, regras, assimilação social de valores. Ora no grego, o termo êthica tinha essa vertente social, éthos, mas indiscernível desta outra de dimensão individual, do agir e da intencionalidade do individuo, o êthos. Nesse sentido, Ron Howard ao espelhar nos seus filmes uma moralidade dominante ofusca essa sua dimensão individual, da forma de receber os preceitos culturais de uma moral num dado tempo e sociedade. E por isso produz filmes moralmente conformes e eticamente ofuscados de uma posição individual. “Ousar pensar”, no cinema, ou em qualquer outro domínio implica sempre essa tomada de posição face ao que já existe, ao cânone constituído pelo conjunto de todos os outros que estão em processo de agir. Por isso, ainda, escolher usar ou não o termo nigger, pôr as personagens a fumar ou qualquer outro elemento que possam chocar com o sistema de valores morais dominantes tem menos que ver com a produção de efeitos de ruptura face ao tecido dominante, e mais com a intencionalidade individual da ação. Ser ético, já dizia Kant, é tratar os seres humanos como fins em si e não como meios para qualquer coisa. O confronto entre a manipulação das acções e uma clareza ética quase torna impossível que o cinema seja, pela sua manipulação intrínseca, um produto eticamente “puro”. (CN)