A partir de certo momento, agastado pelo rótulo de criador do blockbuster, de realizador de entretenimentos ligeiros, Steven Spielberg não descansou enquanto não obteve a consagração do seus pares (a Academia), o que veio a acontecer com Schindler’s List (A Lista de Schindler, 1994). No entanto, mesmo depois do Óscar, essa sofreguidão não acalmou e a sua filmografia foi-se preenchendo de temas importantes e sérios com um intervalo ou outro para a aventura e ficção científica, géneros que lhe deram a primeira fama.
Esta conversa já é antiga e pouca gente a achará pertinente nesta altura da carreira de Spielberg. Lembro-me dela na medida em que não haverá figura mais importante e respeitável na mitologia americana do que a de Abraham Lincoln e, assim, era de temer que esta fosse pretexto para mais uma estucha bem intencionada do realizador de Amistad (1997) e Saving Private Ryan (O Resgate do Soldado Ryan, 1998). Não tanto por Lincoln em si, protagonista da obra-prima Young Mr. Lincoln (A Grande Esperança,1939) [mas até John Ford sentiu necessidade de pegar num herói puro e honesto, um advogado de província que haveria de ser Presidente dos Estados Unidos um dia e afastar-se dos momentos marcantes], antes pela reverência que poderia causar num cineasta tão reverente quanto Spielberg.
Não me enganei totalmente – a reverência é indisfarçável e indisfarçada (a estatura de Lincoln é literalmente gigantesca, acima de todos os outros homens; o Presidente é um monumento histórico ambulante, de quem toda a gente sabe citar de cor o discurso de Gettysburg) – só que Lincoln (2012) não é tão pesadão como antevia, graças ao argumento de Tony Kushner, ou, pelo menos, à maneira como aborda um dos tais “momentos marcantes”: a votação da 13ª emenda, que aboliu a escravatura de todos os Estados, incluindo os do Sul prestes a reunirem-se aos do Norte, depois da sangrenta guerra civil.
As intrigas políticas, os pequenos pecadilhos e corrupções, as trocas de favores (em paralelo com as recentes batalhas de Barack Obama) e, sobretudo, a mentira necessária de “Honest Abe” sabotam, ainda que não totalmente, a temida grandiloquência que o tema de racismo associado à figura de Lincoln suscita e, ainda assim, espreita aqui e ali: o sorriso do empregado preto no final, de reconhecimento pela bondade dos senhores brancos (o sonho molhado de qualquer activista de direitos civis), a contrapor com o sorriso do escravo de Django Unchained (Django Libertado, 2012) de Quentin Tarantino, de orgulho pelo sangue branco derramado por aquele anjo vingador. Se excluirmos as excrescências – principalmente, o estafado drama familiar com a mulher e o filho (excelente Sally Field, sofrível Joseph Gordon-Lewitt) -, Lincoln desenrola-se como um episódio avantajado de West Wing escrito por um Aaron Sorkin menos ingénuo. E isso, tendo em conta o assunto em mãos, é refrescante e aligeira a coisa.
Depois, há Daniel Day-Lewis, que constrói mais um delicioso boneco (com maquilhagem e andas, será?, a rigor), muito brando, muito calmo, muito astuto, muito sábio, que, qual Cristo, fala quase apenas por parábolas. Como vem sendo hábito, desde Gangs of New York (Gangs de Nova Iorque, 2002) de Martin Scorsese, passando por There Will Be Blood (Haverá Sangue, 2007) de Paul Thomas Anderson, Day-Lewis monta o próprio espectáculo dentro de filme alheio (fá-lo refém da sua personagem), com um prazer e à-vontade contagiantes.