Tirando o género “comédia à portuguesa”, que ainda hoje goza de estatuto especial dentro da nossa cinematografia – é verdade que tende a ser sobrevalorizado, até porque as grandes comédias contam-se pelos dedos de uma mão (sendo generoso), mas é inegável também que consegue despertar o carinho do público de todas as idades (incluindo daqueles que não tinham sequer nascido para o ver da primeira vez) -, o cinema português pré-Cinema Novo está bastante esquecido (o pós não o está muito menos, o que são contas de outro rosário). Percebe-se porquê: as revoluções (primeiro a estética, depois a política) aniquilaram o que estava para trás. Contundo, umas quantas obras escaparam a essa razia (porventura, as que mais mereciam). Maria do Mar (1930) foi uma delas.
José Leitão de Barros, realizador do filme, formou, com António Lopes Ribeiro e Jorge Brum do Canto, a primeira leva do cinema verdadeiramente português (ou seja, feito quase integralmente por portugueses, ao contrário do que se tinha passado nos anos 20, em que os realizadores e técnicos estrangeiros haviam dominado), um cinema, claro está, vinculadíssimo ao Estado Novo. Se essa geração, modernista e cinéfila, acabou a fazer pastelões históricos e adaptações literárias serôdias (por vontade de António Ferro, responsável pela “pasta”), teve momentos em que se soltou (e são exactamente esses que perseveram na memória dos cinéfilos).
Um ano antes de realizar A Severa (1931), o primeiro filme sonoro português e primeira incursão do realizador nas xaropadas (diz quem viu), Leitão de Barros foi à Nazaré [cenário a que os cineastas portugueses recorreriam, a partir daí, quando queriam mostrar a vida de uma aldeia piscatória: o mesmo Leitão de Barros em Ala-Arriba! (1942), Manuel Guimarães, o nosso neo-realista, em Nazaré (1952)], filmar um “documentário dramatizado”. Maria do Mar, nome do batel da grande desgraça e nome da protagonista, será “documentário” quando mostra os corpos queimados pelo sol das gentes da Nazaré, a massa de figurantes e personagens secundárias que dá a caução realista ao filme, mas é sobretudo ficção – a trágica história de duas famílias desavindas pelas mortes dos pais (em que as matriarcas, principalmente Tia Aurélia, a Ilhôa, interpretada pela extraordinária Adelina Abranches, subjugam todos ao seu domínio); a bela história de amor entre os filhos, Maria do Mar e Manuel.
E, acima de tudo, é cinema: os grandes planos dos rostos enrugados; as figuras negras (a Nazaré como terra de viúvas, as que já são, as que serão) no promontório, maus agouros, anunciando a morte dos pescadores; as reacções ao desastre que não se vê; as ondas calmas quando a vida sorri e se come uma caldeirada mais abundante; as vagas ameaçadoras quando o mar está bravo; Manuel a salvar Maria das águas, numa cena em que o erotismo é flagrante. Claro que, no fim, tudo acaba bem, as famílias reconciliam-se por causa do bebé comum, a ambição é castigada (o suicídio de Falacha, o arrais, que, acirrado pelo sentimento de culpa pelos que morreram pela sua ganância, devolve o corpo ao mar), e a inocência é premiada. No entanto, o gesto inocente e sincero de Leitão de Barros, num filme que tem “uma vontade enorme de cinema”, parafraseando o que Jorge Leitão Ramos disse sobre a geração dos modernistas, a propósito do último tomo do seu Dicionário do Cinema Português, também deve ser premiado.
Por isso, quem puder, desloque-se à Cinemateca Portuguesa no dia 8 de Janeiro, uma terça-feira, às 19:00, para ver esta pequena maravilha do nosso cinema.