A verdade é que até hoje David O. Russell era um realizador que pouco me dizia, nunca percebi a paixão por Three Kings (Três Reis, 1999) e o recente The Fighter (The Fighter – Último Round, 2010) foi para mim um filme sem qualquer sedimento emocional, nada. E o que nesses filmes mais me incomodava era o facto de O. Russell trabalhar sobre a estética videoclip, contando cada interstício narrativo com uma musiqueta e umas câmaras lentas e uns grandes planos desfocados. Tudo já servido e requentado. Mentirei se disser que este filme é diferente, porque não é de facto. Aliás, este é o seguimento narrativo de The Fighter: a mesma família disfuncional, o mesmo protagonista meio atolambado, a mesma namorada desbocada e por aí fora. Parece que O. Russell descobriu um modelo de família (americana), e a forma como o filmar, com o projecto anterior e este aproveita-se de tal descoberta (capitalizando o conhecimento, tanto do realizador como do espectador). Mas o que importa perceber em Silver Linings Playbook (Guia para um Final Feliz, 2012) é a forma como essa capitalização funciona em perfeita consonância com a narrativa (e talvez isso já acontecesse em The Fighter, eu é que não terei alcançado). Para tentar espelhar esta ideia analisemos um plano muito particular do filme.
Antes de lá irmos, faço a sinopse assim como quem não quer a coisa, para que o dito plano não caia de pára-quedas no colo do leitor. Bradley Cooper um dia quando chega a casa encontra a mulher com um tipo e espanca-o quase até à morte; é internado e o filme começa no dia da sua saída do hospício; volta a casa e vive obcecado com a ex-mulher e em reatar a relação, até que surge uma vizinha (que recentemente enviuvara – Jennifer Lawrence mais uma vez mostra a sua fibra) que o ajudará a libertar-se da doença. Para isto convence-o a participar num concurso de danças de salão. Pronto, agora vamos lá. Num desses dias de treino os dois têm que ensaiar um pedaço de sapateado, para tal usam o iPod dela (com uma capa de lantejoulas cor-de-rosa) e vêem (naquele minúsculo ecrã) uma das cenas de Singin’ in the Rain (Serenata à Chuva, 1952). É esse o plano fundamental, quando as mãos dela seguram no pequeno aparelho que exibe Gene Kelly e Donald O’Connor, lado a lado, sapateando.
Silver Linings Playbook está todo ali. É o resultado de uma longuíssima filtragem de conteúdos clássicos que depois da tela e da caixa mágica e do VHS e do DVD aparecem agora em formato puramente digital e ainda para mais num mísero ecrã como o do iPod. Mas de qualquer forma chegam-nos. No entanto o filme de O. Russell não é apenas um meio ou um formato, é uma absorção dessas lições do cinema clássico. A tradição do boy meets girl está ainda aqui, só que perverteu-se o género batido da comédia romântica. Por outro lado, o pormenor das lantejoulas na capa do aparelho não é de somenos, a realização de David O. Russell é ela mesma cheia de enfeites e corzinhas e brilhos bonitos. Mas se era esse o principal problema dos filmes anteriores, aqui parece que esse mau gosto trabalha em favor dos personagens, no sentido em que eles são da classe trabalhadora que usa como banda sonora do Preço Certo o último álbum de canções do Tony Carreira. Ou seja, não só não destoa, como filmar aquela gente de outra forma seria fazê-lo com uma superioridade que só prejudicaria o fluir natural que a mão de O. Russell alcança.
Mas o que me interessa mais neste filme é aquilo que fez com que muitos desgostassem (que eufemismo) de Happy-Go-Lucky (Um dia de cada vez, 2008) de Mike Leigh, isto é: uma personagem que é incansavelmente feliz, tão feliz que contagia de felicidade dos que a rodeiam. O que David O. Russel (que é também o autor do argumento, o qual já estava escrito mesmo antes de The Fighter) faz é gritar aos sete mundos que está farto de que os filmes bons (os que recebem prémios e têm muitas estrelinhas) sejam, invariavelmente, dramalhões. A arte é sisuda e isso faz das gentes igualmente sisudas. Não é que Silver Linings Playbook seja um grande filme, mas ao menos tem a ousadia de atirar (literalmente) pela janela fora o Farewell to Arms do Hemingway, porque dos 47 finais diferentes que o senhor Ernest escreveu, aquele que acabou por ser publicado foi o que todos conhecemos. Não há mal nenhum em se ser feliz. Eu sou.