Tao jie (A Simple Life, 2011) coleccionou uma série de prémios um pouco por todo o lado, de Veneza a Taipé. É um lembrete que o cinema de Hong Kong continua a dar cartas, apesar da tendência dos últimos anos para um “boom” nas grandes co-produções com a China continental e de um renascimento da popularidade regional do cinema taiwanês. O filme vai abrir a 4ª Mostra de Cinema de Hong Kong, que começa hoje em Lisboa. É a terceira vez que um filme de Hui abre a Mostra.
De certa forma, Tao jie é uma homenagem a muitos dos que deram vida a uma época de ouro do cinema de Hong Kong (embora os cameos e as private jokes sejam habituais no cinema da ex-colónia britânica), não só pela realizadora Ann Hui e pelos protagonistas Andy Lau e Deanie Ip mas pelas muitas caras, mais ou menos conhecidas, que vemos passar pelo filme: o realizador Tsui Hark e o actor Anthony Wong são os exemplos mais óbvios. Tao jie é, assim, uma espécie de ode a uma Hong Kong cuja identidade continua a ser tema de debate mais de uma década depois da transferência de soberania.
Será, no entanto, extremamente redutor olhar para Tao jie pelo que evoca e não pelo que mostra e como o mostra: Hong Kong e as suas gentes. Estão lá os preconceitos e as lealdades, o humor e a dedicação, o crime e o cinema, os valores familiares e o materialismo. Ann Hui conhece os cantos à(s) casa(s) e as idiossincrasias dos seres que povoam a cidade – e não só. Não é por acaso que Roger – a personagem a quem Andy Lau dá vida e que é inspirada em Roger Lee, produtor de Hong Kong cuja relação com a sua amah é a base do filme – passa o filme em trânsito, dividido entre a China e Hong Kong e a família nos Estados Unidos. Há todo um retrato social no filme, mesmo que seja o retrato humano que mais comova os espectadores. A fotografia de Yu Lik-wai, colaborador habitual de Jia Zhangke e ele próprio realizador, revela uma observação cuidada dos espaços, que nunca estão lá por acaso, e dos que neles se movem. Não é um bilhete postal de Hong Kong: não é feito por, nem para, quem olha de fora mas é um olhar que vem de dentro da cidade, que nasce de uma familiaridade com a sua realidade.
Tao jie poderia facilmente cair no melodrama telenovelesco. Ann Hui evita-o sabiamente, não sendo de ignorar as notáveis prestações de Ip e Lau. Tao jie é, sem dúvida, um drama mas não há nada de excessivo ou moralista. Há uma enorme contenção e, por vezes, algum distanciamento. Há, enfim, humanidade: amizade, família, memória, comida, trabalho, dinheiro, envelhecimento, doença, dever, mostrados como as partes da vida que são. A história da velha amah que adoece e da descoberta, pelo último membro que ficou da família que serviu durante décadas, da sua importância é tocante, mas é-o sobretudo pela forma como Ann Hui a sabe filmar: nunca negando a dignidade às personagens, com respeito pela forma como estão e por tudo o que não se verbaliza. A forma como as personagens se relacionam e, sobretudo, a subtileza com que a postura de Andy Lau muda, têm a fluência do quotidiano mas são sempre marcadas por uma certa aura de transitoriedade. O passado foi como foi e partir é inevitável. No presente há vida, há cinema.
Tao Jie é exibido hoje às 21:45 no Cinema City Classic Alvalade como filme de abertura da 4ª Mostra de Cinema de Hong Kong.
A Mostra inclui ainda: Overheard 2 (dia 10, às 21:45); Floating City (dia 11, às 19:00); White Vengeance (dia 11, às 21:45); Love Lifting (dia 12, às 19:00); The Great Magician (dia 12, às 21:45); The Detective 2 (dia 13, às 19:00) e The Cure (dia 13, às 21:45).