The Third Man (O Terceiro Homem, 1949) é uma conjugação de diferentes elementos pictoriais que se completam perfeitamente, como um puzzle onde todas as peças encaixam, criando uma das obras-primas do género. São vários os alicerces que sustentam este exercício de film noir: a localização – Viena, o vilão – o terceiro homem do título, a banda-sonora – uma inquietante e omnipresente cítara, a encenação – planos picados e sombras aumentadas, o argumento – uma morte misteriosa, e a mulher – o outro mistério da história.
Viena é a localização perfeita para ilustrar uma Europa em reconstrução. É nesta cidade dividida entre quatro países ocupantes, que nas suas ruínas e vielas expandem as sombras do filme, e nos interiores sumptuosos desajustados à realidade vive a memória de um passado recente, difícil de ultrapassar. O argumento, do escritor Graham Greene, é um tratado que combina o suspense do mistério com as dificuldades de manobrar a moralidade duvidosa de um mundo envolto em corrupção e valores egoístas. Trata-se de uma história sobre o conflito intemporal entre o bem e o mal, sobre a perseverança das convicções pessoais face à possibilidade da traição, e, por fim, sobre visões opostas do que será o amor. As escolhas de Reed na encenação ajudam a enquadrar o sentimento de desamparo e confusão que o filme procura demonstrar. Recorrendo inúmeras vezes a planos inclinados, Reed chega a alternar entre estes planos para acentuar a constante desorientação do espectador, que acompanha assim a desorientação da personagem principal.
Outro recurso é a utilização da distorção dos planos de grande angular, como nas sequências nos túneis de Viena, em que as sombras ganham dimensões sobre-humanas, e os movimentos são anunciados pelas manobras dessas sombras nas paredes, antes de o serem pelos próprios actores. Se a história deste filme nos ensina que não se pode confiar em ninguém, com a encenação de Reed aprendemos que nem se pode confiar no que vemos – nem tudo é o que parece, mas às vezes quando já não é o que parece, afinal até é. A toda esta inquietação visual é acrescentado um outro elemento particular do filme, que consiste no uso de uma banda-sonora pouco convencional, a cargo de Anton Karas, fugindo à tradição da música clássica, própria do género.
O filme, que começa e acaba com um funeral, conta a história da visita de um americano, Holly Martins, a Viena, a convite do seu melhor amigo. Holly mal aterra na cidade é confrontado com um facto perturbador: o seu amigo, Harry Lime, acabou de morrer num acidente. Mas Holly é uma personagem em constante desalinho, que não percebe o mundo à sua volta. Vê-se envolvido num jogo constante de dissimulações, de embustes, e não confia no que lhe contam. Decidido a desvendar o que aconteceu, contrariando os conselhos para se ir embora, acaba por encontrar Anna, a amante do seu amigo, e apaixona-se imediata e irremediavelmente. A história passa, então, a ser, não só sobre o mistério do terceiro homem, mas também sobre a relação entre Holly e Anna, particularmente na forma como definem a sua relação com Harry, o elemento comum entre os dois.
O filme deixa de ser sobre uma obsessão com uma morte, para passar a ser sobre uma obsessão por uma mulher. A cena final do filme é o código para perceber o que vai sendo exposto durante o filme. Enquanto existe uma possibilidade de romance entre Holly e Anna, estes, como as duas pessoas mais próximas de Harry, são afectadas pela forma como guardam a memória do seu amigo, como as suas convicções morais interferem com o que vão descobrindo. Anna é rendida a um amor incondicional, devota a Harry quase de forma religiosa, com um amor inatacável, porque nada que ela venha a saber vai alterar o que pensa sobre ele, algo que ela enuncia durante o filme. Holly não consegue compreender esta posição, porque apesar da sua amizade por Harry, o que ele descobre sobre as suas acções em Viena, modificam a sua percepção anterior sobre o amigo, influenciando até a forma como eventualmente colabora com a polícia para chegar a Harry. O conflito entre a resposta de cada um a este dilema ético revela como Holly e Anna vivem em planos distintos, em mundos opostos, daí que a resolução da última cena do filme seja essencial para decifrar as hipóteses remanescentes de um possível romance entre os dois.
São várias as impressões que The Third Man deixa na história do cinema, mas há momentos específicos que são inesquecíveis, quer pelo seu simbolismo, quer pela sua execução visual. Há uma ocasião surpreendente, em que o plano inclinado é estabelecido momentaneamente como pertencendo a uma criança, que infere o uso desse plano ao longo do filme como ligado a uma perspectiva travessa. Essa mesma criança origina mais tarde uma das sequências mais desconcertantes do filme, aludindo às várias alturas em que o uso do alemão sem legendas é utilizado para sublinhar a sensação de deslocamento de Holly. O momento da revelação de Orson Welles, sinalizando a reaparição de Harry, é um portento na utilização das sombras como factor de dissimulação, numa das várias inversões ilustradas no filme.
As duas sequências de maior carga simbólica estão ligadas à personagem de Harry, pelo modo como a sua mera existência altera a dinâmica do filme. Primeiro, um diálogo entre Holly e Harry, em que o primeiro confronta o segundo acerca dos seus motivos, marca o início da irreconciliação definitiva entre os dois. Filmado no interior de uma cabine de uma roda gigante, à medida que a distância aumenta em relação ao solo, cresce a ameaça de que algo perigoso possa acontecer, e essa distância em relação ao chão ajuda Harry a ilustrar como as pessoas transformadas assim de longe em pequenos pontos, são, na realidade, insignificantes para si. A segunda sequência, uma longa perseguição pela polícia a Harry, pelos túneis que atravessam a cidade, é simbólica pela condenação de Harry a esses mesmos túneis, uma metáfora do purgatório onde a personagem é julgada pelos seus crimes. Utilizando uma montagem acelerada, alternando entre planos que ora revelam as caras dos actores em busca de uma reacção, ora ofuscam a localização relativa de cada um dentro do espaço, Reed é rápido em estabelecer uma desordem claustrofóbica, relacionando essa desorientação espacial com a própria desorientação moral. Este estado é apenas suplantado pela imagem das mãos de Harry a espreitarem por uma sarjeta, onde este, encurralado, tenta sentir um último sopro de liberdade. É um gesto definitivo e um momento em que Reed humaniza o que resta da personagem, ao mesmo tempo que a enclausura ao seu destino – não há possibilidade de ascensão.
The Third Man será exibido dia 29 de Janeiro às 21h30 em Coimbra, pelo Fila K Cineclube, no Auditório Mosteiro de Santa Clara-a-Velha.