Há um gesto proibido inerente ao cinema que nos leva sempre a querer ver mais um filme, em deixar-nos levar pelas suas imagens e as suas palavras repetidamente. Esse gesto proibido é o atrevimento (corajoso ou insensato) de recriar a vida, numa tela, com todas as projecções de histórias que gostaríamos que fossem reais, histórias que ouvimos pelos outros e que gostaríamos que fossem nossas – de amor, de vida ou de morte. Ou simplesmente, a ousadia de recriar, em imagens, aquilo que não vivemos mas que gostaríamos de ter vivido – porque não tivemos a coragem para fazê-lo nos nossos dias, ou então porque preferimos, simplesmente, em deixar tudo isso para o prazer dos nossos sonhos, pour le plaisir des yeux. Ou ainda, sem grande atrevimento (porque o cinema é o reino dos fantasmas), em recriar vidas que já não vivem, em viver, por uma última vez, tudo o que já não existe e nos deixou um tempo já sem lugar nos nossos dias.
E quando nos deixamos perder nos sonhos – mesmo de olhos abertos e acordados, mas imersos num pensamento e numa projecção à qual apenas nós temos acesso – não é raro deixar-nos levar pela sua onda e imaginar-nos numa situação proibida. O que seria da nossa vida se deixássemos a nossa imaginação tomar conta dela? Talvez tenha sido para isso que se tenha inventado o cinema, o mundo onde os nossos sonhos comandam e a sua projecção apenas permanece viva enquanto for sentida, entre o gesto do realizador e o olhar do espectador, pela pura paixão.
Talvez por isso os nossos momentos de maior ardor sejam vividos, precisamente, perante uma proibição – ou uma impossibilidade. Quando o nosso maior desejo vive também porque existem obstáculos à sua volta, ou incompreensão e solidão pura. Como Monty Clift a procurar o seu A Place in the Sun (Um Lugar ao Sol, 1951). Personagem sempre solitária à procura do amor, de um beijo que parece sempre o primeiro. I’ve been wanting to do that for such a long time, diz ele depois de abraçar alguém que lhe afoga essa solidão. Alguém a quem ficará ligado também por um elo proibido, e que se torna num peso quando sente que esse sol, uma luz que procura para a longa travessia nocturna dos seus dias, não se levantará mais para ele.
Ainda só, Monty segue pelo filme com um ar erradamente entendido, no seu tempo, como desajeitado. Segue sim de forma solitária, tímida, uma postura que se torna nervosa quando Liz Taylor entra na sua vida – jovem, erradamente vista como desprendida, mas sim numa busca, como o seu par, de uma grande paixão. Quando os dois seres solitários se encontram num quarto de sua casa onde não foi parar mais ninguém, o diálogo inicia-se – mas são os seus olhos que falam. Monty quase não consegue dizer uma palavra, Liz não pára de falar – cada um na sua forma de timidez. Do I make you nervous?, pergunta-lhe ela, porque a timidez não lhe permite dizer que é ele quem a deixa assim. Dois seres longe um do outro nas suas vidas reais – famílias distantes, escalões sociais opostos, uma jovem sem idade para saber o que é o amor (como se este filme não provasse, precisamente, o contrário), um rapaz já comprometido, com outra mulher, num destino que ele não via chegar.
Mas quando os dois dançam, na mesma casa, colados um ao outro, é a imaginação que eles deixam tomar conta das suas vidas. Ou melhor – o sonho, a enorme paixão de viver dentro dos braços de alguém que nos fala pelo olhar. Com tudo o que isso nos permite e proíbe. Are they watching us?, pergunta Taylor, sempre inquieta, olhando quase directamente para a câmara antes de confessar o seu amor por Clift em voz alta. Na verdade, não precisava de dizê-lo – apenas o faz para nos tornarmos cúmplices.
E quando os dois fogem da multidão para se refugiarem na varanda, longe de tudo e de todos – mas tão próximos de nós e da câmara de George Stevens -, os dois parecem ainda dançar à volta um do outro, quase sem espaço para se mexerem. Ardem de paixão porque encontraram o seu desejo e decidem viver uma fantasia, mas também porque esse amor é solitário, logo, condenado – logo, proibido. E selam o mais belo beijo da história do cinema, um que não foi preciso ser filmado, que apenas imaginamos entre os seus ombros e rostos que nos tapam os olhos. Assim o é porque Liz e Monty já se tinham beijado cada vez que os seus olhares se cruzaram ou se deitaram sobre os seus corpos, tímidos e vestidos, jovens e sem outro mundo que não o deles. Olhares que nos beijam e que não se vêem por serem proibidos.
Nós também já vivemos esse lugar ao sol, invisível e apaixonado, ardente e criminoso. É o lugar do cinema: onde a nossa imaginação nos leva sempre para sonharmos mais um pouco, para vivermos um pouco mais. E deixar que as suas imagens nos beijem, até ao momento em que as vivemos no olhar de um outro corpo que também as pede, que também nos beija.