Segunda parte da entrevista com Adrian Martin, crítico de cinema australiano que veio a Portugal no passado mês de Outubro para integrar o júri do festival Doclisboa. A segunda parte da entrevista, também na companhia da crítica de cinema Cristina Álvarez López, anda à volta da lógica do dispositivo como nova orientação para a realização, tecnologias cinematográficas e o fim do mundo, porque não? Na primeira parte da conversa abordava-se a crítica de cinema, a natureza na cinefilia e ensaios audiovisuais, entre outras coisas.
Carlos Natálio: Escreveste recentemente um artigo chamado: Turn The Page: From Mise en Scène to Dispositif. A minha questão é: como todos estes discursos distópicos sobre a tecnologia pensas que esta transição para uma lógica de juntar imagens em movimento com base numa ideia de dispositivo afecta o cinema de uma forma negativa? Uma espécie de “derrota”?
Adrian Martin: Nada disso. Outra vez acho que é apenas um caminho, uma opção, o cinema dispositivo. Aliás, havia um exemplo notável deste tipo de cinema agora no Doclisboa: Sofia’s Last Ambulance (A Última Ambulância de Sofia, 2012) de Ilian Metev. Era um documentário clássico que seguia três condutores de ambulância na Bulgária enquanto apanhavam ou tratavam pacientes. E depois era um pouco como o Ten (Dez, 2002) do Kiarostami na medida em que muito do filme é rodado a partir de quatro posições de câmara fixas no interior da ambulância. Quando saem da carrinha é tudo filmado com câmara à mão e depois decidem nunca mostrar os doentes ou os feridos. Só vemos as pessoas a trabalhar. Ora isto é um filme dispositivo no sentido em que em que contém um conjunto de regras pré-estabelecidas sobre o que filmar e como. Mas não é um filme experimental. Pelo contrário, é algo que poderias ver na televisão e ficar totalmente envolvido. Tem um ritmo rápido e estás sempre a seguir os médicos e os condutores. Acho que é um filme que realmente desafia as nossas noções de documentário. A abordagem do dispositivo prende-se com a definição uma lógica formal rígida, um procedimento para a construção da obra. De certa forma, isso é o que leva a uma concepção diferente de estilo no cinema, designadamente daquela que é elaborada com base na mise-en-scène. Normalmente a mise-en-scène clássica centra-se numa matriz de fluidez, que segue os movimentos do momento ou que os estabelece numa base de desafio com a convenção. Esta não se preocupa tanto em construir uma lógica meramente formal. O cinema dispositivo, tal como o vejo, é uma forma particular do cinema moderno, talvez do cinema contemporâneo. E é diferente do cinema de autor artístico dos anos sessenta como em Bergman ou Antonioni, etc. Penso que a lógica do dispositivo tem mais a ver com a arte conceptual, vem daí… Mas o que é incrível é que, tendo presente esta ideia de formalidade muito vincada, acaba por construir objetos que não são necessariamente experimentais. Como referi o Sofia’s Last Ambulance não é uma obra experimental, é antes um documentário totalmente realista com uma abordagem dispositiva. Esta junção proporciona uma junção particularmente poderosa mas também um ponto de vista ético que se funde como tudo aquilo que o filme quer retratar.
CN: E nesse sentido talvez o medo de que se perca o elemento humano nessa passagem da mise-en-scène ao dispositivo não seja justificável…
AM: Certamente. Eu penso que o Kiarostami é mesmo uma figura central para pensar esta abordagem dispositiva. Quase todos os seus filmes mostram essa lógica. Por exemplo, um filme como Shirin (2012), um filme brilhante, começa com os créditos iniciais de um filme imaginário e depois no resto da obra apenas vemos o rosto de um grupo de mulheres que está a ver esse filme no cinema. No fim, regressamos aos créditos finais desse filme que elas vêem. Claro que o Kiarostami montou isto tudo de forma perfeitamente artificial: na realidade, não há filme nenhum e elas não estão a ver nem a ouvir nada. Depois montou os planos destas mulheres a chorarem, com expressões de emoção ou surpresa, construindo uma narrativa com base nestes rostos e nestas reações. E do filme resulta clara a intenção do realizador de trabalhar a noção do que é estar numa posição de espectador e o poder das imagens de um filme. Ao mesmo tempo é um filme tão humano, com essa dimensão extremamente envolvente dada pelos rostos daquelas mulheres, uma espécie de verdade registada como evento, de quando estão a ver aquele filme, que, como disse, é totalmente imaginário. É também um filme sobre coisas antigas como as tradições persas da narração de histórias e tudo isto dado pelo que de mais moderno existe no cinema digital. Mas tens razão, por vezes as pessoas pensam que porque o dispositivo vem da arte conceptual há nele uma verta abordagem “inumana”. Mas penso que não tem de ser assim…
CN: No livro Movie Mutations – The Changing face of World Cinephilia de 2008, que editaste com o Jonathan Rosenbaum, havia uma carta em que dizias que as diferenças significativas entre as várias culturas cinematográficas não estão ligadas a questões geracionais ou a novas tecnologias. E escreves: “there are priorities that cut deeper”. Que prioridades são essas?
AM: Uma vez o historiador de cinema Thomas Elsaesser escreveu que a cinefilia é geracional, como se existisse a cinefilia geração um, geração dois e por aí fora. Ora, eu discordo totalmente desta visão. E simplesmente porque eu enquanto cinéfilo me recuso a estar confinado ou ligado a uma dada geração. Além disso, ao longo dos tempos já vivi o suficiente para atravessar algumas alterações importantes no que diz respeito às tecnologias de exibição do cinema. Comecei por ver filmes no cinema e televisão, depois o início do VHS (tinha vinte e poucos nessa altura), o laserdisk, uma tecnologia que se perdeu, e agora o DVD, o video on demand, etc… No final de contas acho que não podemos definir uma geração apenas pela sua experiência tecnológica. E também, todos nós, que vemos filmes no cinema, na televisão, no computador, não me parece que estejamos confinados a apenas uma tecnologia ou uma experiência. No livro que referes, eu dizia que as prioridades ou as “guerras” culturais das discussões que se travam na cinefilia, como por exemplo o realismo versus artifício, acontecem atravessando gerações e tecnologias. Não podemos dizer que as pessoas que privilegiam a Cinemateca como local para ver filmes apenas valorizam o cinema realista, por exemplo. Ou que existe uma ligação entre ver filmes no computador e a abordagem dispositiva… Isso não se passa assim… A visão da coisas não é tão límpida. Particularmente, estou sempre interessado nos momentos em que há por exemplo, uma discussão ou divisão entre cinéfilos e estudantes de cinema. São discussão transversais que enriquecem a visão que temos do cinema. No final de contas, eu penso que essas prioridades de que falava no livro se prendem com uma noção de valor. Julgar o que tem valor, o que é importante ou interessante num dado momento para a história e cultura do cinema. Esse julgamento é sempre mais largo do que a geração de que se parte.
CN: Recentemente foi aprovado em Portugal um Plano Nacional de Cinema. Foi escolhida uma lista de filmes que devem ser integrados nos programas escolares e mostrados aos alunos. Na tua opinião o que é que deve ser tido em conta quando se escolhem estes filmes e o que é que se deve dizer aos estudantes na apresentação destas obras?
AM: De certa forma eu penso que essa é uma questão que tem a ver como todo o ensino do cinema. Para mim o importante é sempre arranjar estratégias de fazer passar a especificidade do objecto, o seu estilo. São importantes questões como a diferença entre cor e preto e branco, sonoro e mudo ou artificialismo e realismo.
CN: Mas mesmo para estudantes mais jovens? Como sabes, regra geral, muitos deles já vão várias vezes ao cinema. Mas quando lhes dizemos que este ou este filme é parte do programa escolar, o que é que lhes podemos dizer de diferente? De certa forma, é também uma oportunidade que vai além do cinema na medida em que esse é o momento em que lhes podemos ensinar a ler e a receber as imagens que estão com eles a todo o tempo, ser céptico em relação a elas por vezes…
AM: Sim, claro. Especialmente quando são muito jovens tens de conectar com eles tentando veicular uma experiência de excitação (thrill). Mostrar que podes tirar de um filme uma emoção sensual e sensorial. Esse é um plano muito importante para estabelecer a ligação com eles. Não podes dizer que um filme é importante porque pertence à história do cinema ou, sem mais, dizer que o Orson Welles foi o percursor dos planos sequência. Essa abordagem não produz efeito. Pessoalmente estou sempre muito interessado em constatar o efeito que produz nos meus alunos um filme experimental por exemplo. Normalmente porque são tão poderosos, viscerais, espetaculares que mesmo que não percebam nada do que está a ser dito, há uma lado de afectação que se produz muito importante. Algo fica com eles. E depois podes começar a desconstruir os filmes, desvelando as camadas históricas, estilísticas do objecto em causa. Mas é sempre um desafio. Por exemplo, eu acho muito importante dar o devido valor à comédia. Como sabes, elas são sempre um pouco descuradas nos estudos fílmicos. Todos nós adoramos comédias mas quando chegamos a estas listas como a da Sight & Sound quase nunca as encontramos lá. Parece que as pessoas entram numa espécie de modo de seriedade. E há comédias excepcionais como o To Be or Not To Be (Ser ou Não Ser, 1942) do Ernst Lubitsch, ou os filmes do Frank Capra ou do Jerry Lewis. Esse é outro plano em que podemos “agarrar” os alunos. Assim eles também ficam com a ideia que aprender cinema pode ser divertido, agradável e não apenas algo sério ou maçudo. Se ficamos apenas no nível da seriedade matamos a coisa muito rapidamente pois na cabeça deles começam a ligar a experiência do cinema a livros enormes e entediantes que eles não querem ler… Outro elemento importante é tentar encontrar ligações entre os filmes em cartaz e a história do cinema. Tentar descobrir e indicar-lhes essa espécie de ligação luminosa é muito importante.
CN: Voltando à seriedade… (risos) As pessoas costumam dizer que o cinema clássico foi histórica e economicamente “usado” para formatar a identidade ocidental. O que te pergunto é: como é que o cinema pode ser o “oposto”, como é que pode ter um potencial para introduzir a diferença?
AM: Esta é uma questão enorme. Para mim é precisamente aí que reside a centralidade do papel da teoria cinematográfica. O cinema é uma arte industrial? Será que o cinema é uma forma convencional que ensina um frame de comportamento às pessoas e lhes diz como devem ser “bons cidadãos”? Ou é o oposto? Será que o cinema tem em si o potencial específico para transformar as pessoas, para criar uma experiência transformadora? Bom, eu penso que não podemos negar nenhum dos lados deste problema. Eu lembro-me que num momento inicial da minha carreira estava muito interessado nesta questão. Basicamente eu acredito que os filmes podem ser transformadores de uma forma positiva. Se assim não fosse porque é que nos interessaríamos por eles? Se nós os três não acreditássemos nisso não estaríamos aqui agora. Se pensássemos que o cinema nos transformasse em robots, não estaríamos aqui, seríamos apenas robots e não haveria problema nenhum… Há alguns anos eu escrevi um artigo que abordava precisamente o poder transformador do cinema e obtive da parte de um leitor uma resposta extremamente forte. Ele dizia que o cinema é o local onde pagamos dinheiro, comemos pipocas, vemos o filme, saímos e nesse “trajecto” somos parte de uma experiência social. Por outras palavras o espectador de cinema seria uma cobaia da sociedade, enquanto fazendo parte de uma máquina cinematográfica de produção e consumo. E claro não há nada de libertador para nós nisso. E ele perguntava: “onde está a revolução? Quando é que os cinéfilos se insurgem, se revoltam para mudar o mundo?” Claro que não o fazem. E nesse sentido ele tem uma certa razão, pagamos o dinheiro do bilhete e somos parte da máquina. Mas eu não penso que o cinema seja apenas isso, assim como seria naif dizer que é totalmente transformador. Se nos transformássemos assim tanto cada vez que víssemos um filme seríamos todos deuses e deusas.
CN: Actualmente parece que somos incapazes de nos concentrar. Como é que o cinema pode ajudar a contrariar esta malaise contemporânea, esta attention deficit disorder (ADD)?
AM: Esta ADD vem no seguimento daquilo que se definiu como “cultura de distração”. Por exemplo, os meus alunos não conseguem ver um filme do início ao fim. Têm o computador, o telemóvel, estão sempre ligados a dez coisas diferentes enquanto veem o filme. Desta forma é muito difícil ter uma sensação da duração do filme. Eles têm esta coisa quase instintiva que os impele a interromper constantemente a experiência do visionamento através de outros inputs. Eu ficou muito irritado com eles. Mas isto está em toda a parte. Por exemplo aqui nos festivais de cinema é a mesma coisa. Sempre gente a entrar e a sair da sala, a atender telefones, a mandar sms. É um desafio interessante perceber que mecanismos tem o cinema para lidar com isto que é hoje parte da realidade contemporânea. Mas sobre esta cultura de distração também há elementos positivos. Por exemplo, de certa forma, embora a Cristina possa não concordar comigo, estes ensaios audiovisuais de que falávamos são uma espécie de expressão intrigante desta cultura onde existe uma necessidade premente de mover coisas, de manipular, de ser activo em relação às imagens, de as rearranjar de uma forma pessoal e expressiva. Não é attention deficit disorder mas…
Cristina Álvarez López: Obrigado! (riso irónico).
AM: Mas existe um lado pelo qual as pessoas pegam fragmentos, imagens e as rearranjam e que espelha essa compulsão para uma actividade distraída. Por exemplo, os meus estudantes ao experienciar essa distração são também potenciais praticantes destes ensaios audiovisuais. Eles apanham estes imputs todos, se depois fazem alguma coisa com eles essa já é outra questão. É estranho… Fico um pouco dividido com esta questão. Por um lado não a posso negar e vejo coisas positivas nela, mas por outro, gostava de poder ensinar às pessoas formas de se concentrar num filme…
CAL: Eu penso que acontece com toda agente, mesmo com os cinéfilos mais empedernidos. Às vezes por alguma razão que não sabes bem qual parece que não consegues concentrar-te num filme. E pode ser uma espécie de teste, para provar se afinal de contas um filme funciona. Isso afere-se sobretudo quando vemos um filme em casa. Com tantas coisas à disposição a todo o tempo, o facto de ficares a ver um filme sem interrupções, deve poder dizer alguma coisa acerca do seu poder. Claro que aqui também entram em linha de conta os teus gostos. Por isso seria sempre um teste subjectivo…
CN: Para fechar a nossa conversa estou curioso para saber a tua opinião sobre esta questão. Enquanto as pessoas ainda falam numa “morte do cinema”, ele não só continua a viver numa forma mutável a todo o tempo, como tende para retratar outro fim: o fim da raça humana. No teu último livro, Last Day Every Day: Figural Thinking from Auerbach and Kracauer to Agamben and Brenez, com base no Melancholia (Melancolia, 2011) do Lars Von Trier e no 4:44 Last Day on Earth (4:44 Último Dia na Terra, 2011) de Abel Ferrara, referes-te a esta tendência como o “apocalyptic thunder of the last day”. Porque é que achas que o cinema vai nesta direção?
AM: Esta questão apocalíptica do “final dos tempos” é muito curiosa. Talvez seja uma questão filosófica da contemporaneidade: a ideia de pensar para lá do humano. A ideia do fim do mundo como o início de um novo mundo que já não tem nada a ver com a humanidade. E qual seria a nossa posição, se alguma, nesse cenário? A dado momento é algo que vai para lá do que concebemos como pensamento humano: este fim absoluto e este inicio absoluto do cosmos. Penso que vem daí, embora não tenha pensado assim tanto nisso. No meu livro Last Day Every Day, cujo título parte de uma passagem de Giorgio Agamben, quero exprimir a ideia que para mim o último dia deve ser pensado como cada dia. O mundo, a vida, a matéria, as ideias são todas pensadas com base nesta dinâmica de início e fim. Mas há sempre um início a partir de cada fim. Não é algo melancólico, é uma espécie de impulso criativo pelo qual cada dia pode ser pensado como o último e a dimensão final deste, apenas poder ser captada a cada dia. Isto em vez de pensar em fins absolutos. Mas sim é um momento estranho na nossa cultura em que estamos tão obcecados com o final do mundo.
CN: Talvez esta ideia de fim possa também ter algo de reconfortante para nós porque só a partir de um tempo final é que podemos olhar para todas as coisas retrospectivamente e tentar fechar o significado de qualquer coisa…
AM: Sim. A ideia do fim impõe-se hoje como nunca na nossa cultura porque existe esta possibilidade de termos destruído o mundo. Mas o meu foco não é nesse fim. Embora tenhamos todos um tempo limitado na terra o que é importante é preencher a vida de coisas.