Já estamos habituados ao indie-ozinho que todos os anos aparece, à laia de cota, na corrida aos Óscares (agora mais ainda com o alargamento a 10 nomeados). Umas vezes saem vencedores, outras nem tanto. Independentemente das estatuetas e afins prémios, e Beasts of the Southern Wild (Bestas do Sul Selvagem, 2012) não tem sido parco neles (Câmara de Ouro e prémio da crítica em Cannes, grande prémio do júri em Sundance e 4 nomeações aos Óscares, incluindo melhor filme e realizador), o que interessa são os filmes.
Beasts of the Southern Wild é sem dúvida diferente do que nos temos habituado, mas na sua essência essa diferença não é muita. Podemos incluí-lo nesta “vaga de cineastas rurais americanos” que nos tem apresentado realizadores como Kelly Reichardt, Debra Granik, Lance Hammer, Sean Durkin ou mesmo David Gordon Green (antes da incursão cómica). Cada um à sua maneira tem conseguido filmar uma América rural de gente pobre (ou muito pobre) que tenta encontrar uma forma de vida alternativa àquela que o sonho americano tem imposto: a casa, a sebe, a relva e a bandeira à porta. O filme de Benh Zeitlin (e o seu trabalho anterior que já abordara a devastação do furacão Katrina na curta Glory at Sea (2008), que alegadamente – não a vi – partilha linhas narrativas com esta primeira longa) cumpre todos os requisitos temáticos da “vaga rural”.
Mas ao contrário da maioria dos outros realizadores, Benh Zeitlin parece ser o mais empenhado politicamente e este Beasts é disso prova cabal. Talvez a estranheza que o filme possui venha da gente que filma: apesar de retratar uma comunidade ficcional nos arredores de Nova Orleans (A banheira) as pessoas são genuínas (a quase totalidade dos actores são não profissionais e habitantes dos locais de rodagem) e isso enche o filme de uma dose de realismo nada desprezável (ajudado pela câmara sempre ao ombro). Digo estranheza porque num mundo onde se discute acerrimamente os makers e os takers, a rede social e a dimensão do estado este filme retrata um conjunto de pessoas que, não só vive completamente à parte daquilo que damos como basilar na democracia, como despreza todas esses “direitos adquiridos” por batalhas civilizacionais. Na dita banheira não há assistentes sociais, nem esgotos, nem transportes, nem escola pública nem hospitais, nada. E ainda assim aquele gente vive feliz e cumpre os seus desejos de vida. Benh Zeitlin não deixa pois de nos questionar sobre o que é de facto necessário à vida em comunidade e de como podemos (e devemos) preservar tais componentes fundamentais.
A organização narrativa do filme é a da fábula (“Once there was a Hushpuppy, and she lived with her daddy in The Bathtub”), mas como se disse essa fábula está emoldurada por uma comunidade paupérrima que vive nos pântanos do estado do Louisiana, e que se depara um dia com uma inundação que alaga tudo e destrói quase tudo. Entre o realismo mágico e a perspectiva infantil de uma catástrofe natural vamo-nos deparando com as dificuldades dos sobreviventes; mas tudo isto vem embrulhado numa mensagem ambientalista. Embora me pareça que o filme pende por vezes num excessivo peso da mensagem (“se queres enviar uma mensagem não faças um filme…”) há um aspecto que não é de somenos: nunca existe um simbolismo acessório que induza uma sensação de pavoneio do realizador, muito pelo contrário.
A este respeito destaco dois momentos que me parecem exemplares disto: logo no primeiro plano do filme vemos uma menina (a nossa protagonista, a dita Hushpuppy, interpretada por Quvenzhané Wallis que é a mais jovem nomeada para o Óscar de melhor actriz principal na história da Academia, com apenas 9 anos) que agarra um pintainho e o leva ao ouvido para lhe ouvir o bater do coração. Este gesto repete-o várias vezes, com outros animais, com folhas e com o próprio pai. Diz-nos a menina: “All the time, everywhere, everything’s hearts are beating and squirting, and talking to each other the ways I can’t understand. Most of the time they probably be saying: I’m hungry, or I gotta poop. But sometimes they be talkin’ in codes”. Esta necessidade de ouvir o coração das coisas é evidentemente uma afirmação política sobre a distância entre os cidadãos e o Estado. Outro momento é a viagem que a menina e as suas amigas fazem em direcção à luz que se vê à noite no horizonte. Para começar, o capitão do barco que as leva chama-se Charon, em português, Caraonte, o barqueiro de Hades que transporta os mortos para a outra vida. Uma vez chegados à dita luz descobrimos que se trata de um bordel-restaurante de nome Elysian Fields. Eliseu é, na mitologia grega, o local onde vivem os mortos. É nesse mesmo local onde a menina encontra uma figura que se assemelha à sua mãe (já falecida), que lhe oferece crocodilo frito como o pai lhe descreveu que era hábito fazer. Ou seja, sem quebrar a sequência realista estabelece-se um discurso mitológico paralelo e complementar que acrescenta mais uma camada ao mil-folhas fílmico que é Beasts of the Southern Wild, doce e complexo.