Na conversa transcrita no artigo ‘Six Characters in Search ofauteurs: a Discussion about the French Cinema‘, que pode ser encontrado no volume Cahiers du Cinema The 1950´s: Neo-Realism, Hollywood, New Wave (editado por Jim Hillier, Harvard University Press, 1985), Jacques Rivette diz o seguinte: “Desafio qualquer pessoa (e acho que todos vão concordar) a encontrar uma concepção do mundo nos filmes de Clouzot(…)”. (p. 34) A frase é marcante por dois motivos: em primeiro porque sintetiza a opinião de uma revista onde, salvo o caso de Truffaut, Henri-Georges Clouzot nunca encontrou particular simpatia; em segundo lugar porque, arriscando-nos a contradizer alguém de tão sábio quanto Rivette, a frase acima citada não tem razão de ser.
Basta ver este raro e inicial L’assassin habite… au 21 (The Murderer Lives at Number 21, 1942) para perceber que o cineasta francês tinha uma vincada visão do mundo explanada ao longo destes virtuosos 78 minutos. Seria, porém, a visão que os turcos da Cahiers gostavam de encontrar num filme? Senão, vejamos: L’assassin habite au… 21 é o primeiro filme assinado individualmente por Henri-Georges Clouzot, depois de dois filmes em parceria feitos nos anos 30. Percursor do filme sobre serial killers [ou sucessor do M (Matou, 1931)de Fritz Lang, conforme o ponto de vista], é um filme vincadamente associado à estética expressionista, de que Clouzot foi um participante ao ter iniciado a sua carreira fazendo versões francesas de filmes alemães para a Continental Films. A história é simples: um assassino em série aterroriza uma cidade cometendo uma série de crimes de formas diferentes (arma branca, estrangulamento ou a tiro) deixando apenas um cartão de visita com o nome M. Durand; quando recebe uma dica de que o assassino mora na pensão Les Mimosas (o número 21 do título), o inspector Wens [Pierre Fresnay, actor, por exemplo, de La grande illusion (A Grande Ilusão, 1937) de Jean Renoir] infiltra-se, juntamente com a companheira que apenas quer ser famosa para poder ser cantora, como hóspede dessa pensão e começa a investigar os seus inquilinos. Acontece que, quando prende um deles convencido de ter achado o criminoso, logo se dá outro crime e o alegado perpetrador tem de ser libertado. A revelação final simultaneamente faz justiça à inteligência do protagonista como revela relações anteriormente ignoradas entre os inquilinos da pensão.
Ao longo do filme, são sobejamente visíveis as influências germânicas sobretudo nos momentos em que este sai dos interiores: logo no início, quando o ébrio vencedor da lotaria é assassinado, o crime dá-se numa rua húmida, desabitada e escura, o tipo de cenário que já conhecíamos, por exemplo, de The Lodger: A Story of the London Fog (O Hóspede, 1927) de Hitchcock (que, não por acaso, trabalhou na UFA, produtora, entre outros, de Murnau, no início da sua carreira); outros momentos, como aquele em que vemos o artesão Colin na prisão ou a sequência final, de noite num estaleiro onde se constrói um prédio utilizam a mesma iluminação estilizada e a mesma profusão de linhas que vemos nos filmes alemães da época. Porém, aqui, essas influências mesclam-se com as características que Truffaut indica, pejorativamente, no seu seminal artigo ‘Une certaine tendance du cinema français’: estamos, antes de mais, perante um filme que confia inteiramente no seu argumento (escrito a meias pelo realizador e pelo escritor Stanislas-André Steeman, em cujo livro homónimo o filme se baseia), nos diálogos velozes e literários e nas diversas peripécias organizadas de acordo com as regras aristotélicas de tempo, espaço e narrativa – não é por acaso que o momento de mise en abyme em que a pseudo-escritora menina Cluq enuncia a estrutura do filme é dada como o enredo para um thriller literário. Será esse um dos motivos pelos quais os turcos dos Cahiers desapreciavam Clouzot? Se for, é vincadamente incoerente: pensemos por exemplo no artificialismo do La Chienne (1931) de Jean Renoir e nos seus cenários de estúdio bem como no facto de ser uma adaptação de um romance de Georges de La Fouchardière e veremos o quanto é injusto prezar um pelo que se culpa no outro.
Talvez não seja essa a razão primordial do distanciamento. Olhemos então para outro aspecto: as personagens com que Clouzot e Steeman povoam a sua narrativa. O inspector não tem pejo em mascarar-se de pastor, aproveitando desavergonhadamente a confiança que um homem de fé possa inspirar nos inquilinos da pensão; o artesão Colin assoa-se constantemente e na sua voz podemos inferir a fleuma de muitos cigarros, para além de lucrar com o caso Durrand ao fazer bonecos do assassino; o fakir Lalah-Poor vive em constante auto-paródia, tentando fazer esquecer que “levantar” carteiras é uma das suas especialidades; a enfermeira do pugilista cego é demasiado liberal com os seus dotes (num momento de clarividência pré-censura o inspector insinua que tem o cérebro entre as pernas); e, num dos aspectos mais inovadores deste filme, vemos uma descrição literal de tortura policial quando o sinistro médico colonial confessa um crime que não cometeu perante um holofote apontado durante várias horas à cara. Como diz o artesão Colin, “as pessoas são cruéis”.Clouzot não deixa e não deixou nunca de o mostrar nos seus filmes mas, aqui, mostra-o sobre o manto diáfano da comédia e da irrisão. Pior, Clouzot responsabiliza directamente o espectador, desde o início com o plano subjectivo do assassino até ao plano em que o inspector Wens espreita pela fechadura em plano subjectivo.
Assim, a desmultiplicação do assassino em três, tanto quanto um artifício narrativo ou uma desmultiplicação de uma personagem à maneira modernista relaciona-se muito mais com uma tentativa de expandir o âmago do crime, aumentando a sua responsabilidade e o seu escopo. Se Clouzot ainda o mostrasse com laivos de tragédia, talvez a ousadia se lhe perdoasse; porém, mesmo o cena final tem a história da urina na garrafa de tinta e a forma como o inspector Wens põe os protagonistas a debitar monólogos e a discutir entre eles. Filmado durante a Ocupação na França de Vichy, L’assassin habite… au 21 é tão demolidor na sua imagem da sociedade francesa quanto La règle du jeu (A Regra do Jogo, 1939) – ficando, apesar de tudo, alguns furos abaixo da obra-prima de Jean Renoir. Numa época de novos começos por parte de uma geração que queria esquecer as agruras da guerra e criar um mundo novo das ruínas, Clouzot lembra que as ruínas tiveram não apenas consequências mas também causas e fá-lo sem qualquer ponta de humanismo à Rosselini. Será isso que nunca lhe foi perdoado?