“Há muito muito tempo atrás, a energia de Gérard Depardieu, actor que privilegiava o corpo, atlético e imponente, como instrumento de trabalho e não se eximia de exibi-lo em obras mais ou menos arriscadas, transbordava do ecrã”, escreveria alguém com predilecção por imagens gastas, conceitos vagos, aliterações e pleonasmos. Olhando a sua figura agora, símbolo da gula que passa por “saber viver” numa certa maneira de ser muito francesa (o autor deste texto congratula-se por não mencionar a palavra “Rússia” e não procurar demonstrar quaisquer defeitos de personalidade de Depardieu, e, por sua vez, da dita maneira de ser muito francesa, através da sua recente fuga ao fisco… perdão, para a maravilhosa democracia do senhor Putin), o leitor atento, para além de censurar a escrita, concluirá que quem escreveu a frase não é bom da cabeça: Depardieu magro?
Para que serviu o parágrafo introdutório?, pergunta agora o citado leitor atento, depois de confirmar a magreza de Depardieu na fotografia acima, a começar a ficar agastado por ser metido ao barulho. Responde o autor: a transição de Depardieu de actor electrizante e vagamente perigoso a burguês bem instalado na vida empenhado em esconder as gorduras em filmes insípidos é a melhor metáfora das debilidades deste Les valseuses (As Bailarinas, 1974) [Os Colhões, em bom português]. Muito do seu tempo, os anos 70 do cinema (na Europa como nos EUA, com alguns anos de atraso em relação à sociedade), o filme de Bertrand Blier (adaptado de um romance do próprio) quer representar (ser o representante) dessa época de libertação sexual, recusa dos valores burgueses e rebelião face às várias autoridades. Mais do que a ingenuidade da demanda, o que mais incomoda o espectador (este, pelo menos), quarenta anos após a estreia, é saber onde foi parar esta “revolução”: a um aburguesamento (à falta de melhor palavra) decadente, portanto, à barriga de Depardieu.
Escrito isto, é difícil não simpatizar com as diabruras dos jovens malandros de Les valseuses, sempre em correrias, a furtarem-se àqueles que os querem apanhar e cortar-lhes os cabelos à hippie [eles são uma espécie de resposta francesa ao heróis de Easy Rider (1969)], a furtarem todos os carros e notas que apanham pela frente, gastando-os copiosamente, sem qualquer arrependimento, sem sentimentos de culpa, inventando mil e uma tropelias para desmanchar a sociedade e retirar o maior prazer da vida – uma ideia que esconde um lado pernicioso (há um preço para tudo e às vezes é bem alto), que apenas é aflorado na personagem de Jeanne Moreau, a ex-presidiária, que, sabendo que não haverá outro dia tão esplendoroso como aquele que passou com os malandros, prefere o suicídio (e talvez na arma, omnipresente, cujo alvo principal são os órgãos sexuais; contudo, esta também dispara tiros mágicos que não magoam ninguém).
E é impossível não sentir ternura pela vulnerabilidade de Patrick Daewere, que, ao contrário do companheiro Depardieu [com quem participara nos espectáculos do Café de la Gare, juntamente com Miou-Miou, a terceira protagonista de Les valseuses, objecto sexual e da misoginia dos rapazes até ela própria passar a ser “one of the guys”, quando deixa de ser frígida e tem um orgasmo – um triângulo amoroso à la Jules et Jim (Jules e Jim, 1962), sem a tragédia, mais uma vez, sem quaisquer consequências] e à imagem da ex-presidiária, preferiu cortar com a vida aos 35 anos com um tiro de caçadeira e assim se quedou como símbolo daquela liberdade e não da decadência que se lhe seguiu. Bem vistas as coisas, entre os dois, Depardieu teve, provavelmente, o destino mais trágico. Não esqueço algumas belas interpretações do actor francês, por exemplo a personagem titular de Bellamy (2009), só que mesmo essas são já símbolos de outro mundo. Aquele que Jean-Claude e Pierrot queriam destruir.